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Isabel Wilker, um certo alguém

“Acho que sinto saudades de habitar ou de revisitar pessoas que eu já fui e que deixei para trás”, diz a artista

Publicado em 05/11/2020

Atualizado às 16:55 de 26/10/2020

Qual é a história da sua maior saudade?

Recentemente, eu me deparei com uma expressão que me marcou. Estava lendo O Brilho do Bronze, de Boris Fausto, e em um trecho ele fala de "tempos de nunca mais". Quando penso na minha maior saudade, a primeira coisa que me vem à cabeça é sempre meu pai, que faleceu em 2014. Mas ao mesmo tempo ele está sempre em minha cabeça. Às vezes sinto uma falta mais aguda, mais sofrida, outras vezes sua presença em meus pensamentos me faz companhia, me alegra. Penso sempre nele, habitando desde 2014 esses tempos de nunca mais. De onde as coisas não voltam. E penso também em todas as outras coisas já vividas e passadas que estão lá com ele nos tempos de nunca mais. 

Acho que sinto saudades de habitar ou de revisitar pessoas que eu já fui e que deixei para trás. De existir em algum lugar ou momento em que eu sentisse alguma espécie de tranquilidade de pensamento; sinto falta de habitar minha infância, esse lugar que na minha memória está marcado por um pensamento mágico, curioso, livre, menos doído. Adulto pensa doído? Parece-me que não só, mas também. Nosso presente está especialmente dolorido. 

O que a emociona no seu dia a dia?

Absolutamente tudo me emociona. Eu, antes de ser qualquer coisa, sou uma observadora inveterada – gosto de ser espectadora do mundo, de assistir ao tempo e às coisas. De ouvir. Escuto os vizinhos neste momento de isolamento social e me emociono com as conversas pela metade, com o vizinho (ou a vizinha) que há meses treina e tenta aprender a tocar trompete – ele (ou ela) toca muito mal, desafina, mas, no dia em que consegui finalmente reconhecer a música que estava vazando pela janela, me emocionei profundamente e vibrei muito: era “Anunciação”, de Alceu Valença. Eu me emocionei tanto com isso que eu mesma tirei meu clarinete da caixa e comecei a fazer aulas, venho tentando tocar “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga. 

Meu cão, Emílio, com seu afeto incondicional e fiel, me emociona. As roupas no varal, o sol no quintal, cada livro que termino, o vento que faz bater minhas venezianas, as refeições que cozinhamos e compartilhamos aqui em casa, as conversas por telefone com a minha mãe, os vídeos com os amigos que já não vejo há longos meses, o cansaço, as mortes. Eu choro e rio; há dias mais alegres que outros, nos quais o tempo passa menos pesado. Eu tento aprender com tudo que me passa pelos olhos, pelos ouvidos. 

Como você se imagina no amanhã?

Sempre tive dificuldades em imaginar o amanhã. Ou eu dentro dele ou dentro de uma ideia realista de futuro. Sonho muito, imagino mil coisas, mas não se trata de nada muito prático. Sempre me pergunto, por exemplo, se teria coragem de fazer uma viagem espacial – caso isso fosse viável. Ver a Terra do espaço, estar no espaço, que grande loucura. Eu já quis ser astronauta quando criança. Não faço planos, exatamente. Tenho vontades, mas não sei ao certo se são vontades que conseguirei saciar. Confesso que a ideia de torcer por ou contar com um futuro e não conseguir vivê-lo me apavora. Mas, ainda assim, sonho com muitas coisas. Eu me imagino caminhando, descobrindo lugares novos, sempre em movimento. 

Quem é Isabel Wilker?

Eu me faço essa pergunta diariamente. Nunca consegui chegar a uma conclusão definitiva. É como se ao acordar eu precisasse refazer um caminho – desperto, vou recuperando os sentidos, entendendo onde estou, quanto tempo se passou desde que me entendi por mim mesma pela última vez; ainda estou aqui, sempre repito. Por algum acaso cósmico ou cármico, ou seja lá qual for, não morri, ainda estou aqui. 

Não sei se muitas pessoas sabem, mas Wilker não é um sobrenome. José Wilker é um nome composto, dado (ou inventado, não sei bem) ao meu pai pela minha avó. O fato de eu ter Wilker como sobrenome foi pensado, uma intenção premeditada – não por mim, mas por meus pais. De todo jeito me parece haver aí uma escolha, da minha parte, em ser esta pessoa, com este nome: Isabel Wilker. O que isso quer dizer exatamente eu ainda não sei, acho que a busca talvez faça a identidade, o processo, o caminho, a passagem do tempo, tudo isso junto cria a noção que tenho de mim mesma, ou cria uma projeção de quem eu quero (ou poderia) ser. 

Lembro-me de um livro que li há anos – A Fórmula Preferida do Professor, de Yoko Ogawa –, que conta a história de um matemático que, após sofrer um acidente de carro, tem a autonomia de sua memória reduzida a apenas 80 minutos. Ele precisa então escrever lembretes e carregá-los consigo o tempo todo, nos bolsos do seu casaco, para se localizar no tempo, no espaço, dentro da própria casa e poder reconhecer as poucas pessoas que convivem com ele. Sinto que quem eu sou é uma espécie de espelho dessa imagem do livro: um casaco cheio de bilhetes, post-its, pequenos mapas, informações talvez vagas (atriz, artista visual, escritora, curiosa, 35 anos etc.) que indicam um caminho de volta para si. 

Isabel Wilker (imagem: Divulgação)

Um Certo Alguém
Em Um Certo Alguém, coluna mantida pela redação do Itaú Cultural (IC), artistas e agentes de diferentes áreas de expressão são convidados a compartilhar pensamentos e desejos sobre tempos passados, presentes e futuros.

Os textos dos entrevistados são autorais e não refletem as opiniões institucionais.

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