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Literatura em tempos de pandemia

O escritor Luiz Ruffato indica leituras que podem nos ajudar a pensar o momento atual

Publicado em 19/04/2020

Atualizado às 18:44 de 24/02/2022

por Luiz Ruffato

A literatura não tem a pretensão de curar as dores do mundo; mas certamente ilumina caminhos. Não nos consola nem serve de lição para nada; porém, por meio das histórias, nos deparamos com dramas e tragédias que também são os nossos e, assim, nesse exercício de empatia, nos tornamos mais humanos.

Neste momento em que nos pegamos a pensar na nossa sobrevivência, não mais como indivíduos, mas como espécie, vale a pena olhar para trás e buscar na literatura algumas narrativas emblemáticas que, ao mesmo tempo que nos proporcionam prazer na leitura, nos fornecem elementos para refletir e seguir em frente.

A seguir, ofereço algumas opções de livros, limitando-me àqueles que tematizam, direta ou indiretamente, o enfrentamento, por parte do indivíduo, de um mal que ele desconhece – e, por isso, teme. São oito romances e um conto de fadas (sim, um conto de fadas!). Deleitem-se!

Luiz Ruffato (foto: André Seiti)

Desta Terra Nada Vai Sobrar, a Não Ser o Vento que Sopra sobre Ela, de Ignácio de Loyola Brandão

Publicado em 2018, é de uma distopia terrivelmente antecipatória do Brasil contemporâneo – do mundo contemporâneo, para ser mais preciso. Num país governado por um presidente sem cérebro, Clara e Felipe tentam sobreviver em meio ao caos de uma epidemia que dissolve os corpos, vigiados por câmeras instaladas em todos os lugares.

O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati

Publicado em 1940, é para mim uma das metáforas mais poderosas destes tempos de angústia em que vivemos. O jovem e ambicioso tenente Giovanni Drago é destacado para servir numa fortaleza nos confins de um país imaginário. Lá, ele aguarda um possível ataque dos tártaros, inimigos invisíveis e perigosos, que podem surgir a qualquer momento a partir da ampla planície desértica que se descortina além.

A Peste, de Albert Camus

Publicado em 1947, este romance descreve a mudança na vida dos habitantes de Orã, na Argélia, no momento em que a cidade é atingida por uma terrível peste transmitida por ratos. Narrado por Bernard Rieux, um médico envolvido nos esforços para conter a doença, o livro exibe as mais variadas reações diante da catástrofe, como solidariedade e oportunismo, solidão e burocratismo, egoísmo e compaixão. Um retrato da angústia individual ante o enfrentamento de um inimigo coletivo.

Um Diário do Ano da Peste, de Daniel Defoe

Lançado em 1722, misto de ficção e jornalismo, este livro descreve os horrores causados pela epidemia de peste bubônica que grassou em Londres em 1665, deixando entre 70 mil e 100 mil mortos. O autor empresta técnica novelesca para dar cunho realista às andanças do narrador pela cidade arrasada, tentando ao mesmo tempo expor objetivamente os acontecimentos e recriar subjetivamente o clima de desesperança e terror daqueles tempos.

A Aranha Negra, de Jeremias Gottheld

Lançado em 1842, conta a tragédia que se abate sobre os habitantes da aldeia de Sumiwald, nos Alpes suíços, no século XV. O senhor daquelas terras resolve construir um novo castelo e exige que os camponeses transplantem, em um mês, cem árvores de uma montanha próxima, trabalho impossível. Surge um “caçador vestido de verde”, que se propõe a realizar o serviço em troca de um bebê não batizado. Ele cumpre sua promessa, mas os camponeses não – então, uma aldeã é transformada numa aranha negra, que com seu veneno dizima a população.

O Castelo, de Franz Kafka

Publicado postumamente em 1926, não tem como tema uma epidemia, mas certamente se trata de uma metáfora da impotência humana diante do poder tirânico de algo desconhecido – que se constitui em épocas de exceção. Chamado para prestar serviços a um conde, o agrimensor K. estaciona numa aldeia ao pé do castelo senhorial e se perde em tentativas infrutíferas e incompreensíveis de penetrar para além dos muros do edifício.

Os Noivos, de Alessandro Manzoni

Lançado em 1827, conta a história de Renzo e Lucia. O ano é 1628 e o lugar é Milão. No dia do casamento, delinquentes a serviço de dom Rodrigo avisam que o matrimônio não pode se realizar porque o chefe tem interesse na moça. Perseguidos, Lucia vai para um convento em Monza e Renzo se refugia em Bergamo. Então, a peste negra se abate cruelmente sobre a região. Renzo sobrevive, encontra Lucia num lazareto, e eles finalmente se casam.

Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago

Lançado em 1995, narra a chegada de uma treva branca, uma cegueira que rapidamente se alastra sobre toda a população. Resguardadas em quarentena, as pessoas pouco a pouco manifestam os instintos mais primitivos na busca da sobrevivência – talvez a verdadeira essência dos seres humanos. A barbárie se instala e se impõe como ordem natural. Uma discussão a respeito de moral e ética, oportuna para os tempos que correm.

A Bela Adormecida, versão dos Irmãos Grimm

A história é bem conhecida – mas, para mim, trata-se de uma metáfora realista. Por mais que o rei e a rainha tentem resguardar a princesa, vítima de uma maldição, ela acaba sendo contaminada pela peste – o fuso da roca. A única maneira de lidar com a tragédia é fazer parar o tempo enquanto esperam a cura. Então, animais, coisas e pessoas adormecem. Até que um dia, passados cem anos, um príncipe consegue penetrar na mata fechada e, beijando a princesa, quebrar o encanto – e tudo volta à vida. Recomendo o texto publicado em Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos (Editora Cosac Naify), com tradução de Christine Röhrig.


Luiz Ruffato, escritor, publicou os romances Eles Eram Muitos Cavalos, De Mim Já Nem se Lembra e O Verão Tardio, entre outras obras.

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