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Marcelo D’Salete concorre ao Oscar dos quadrinhos

O livro Cumbe é um dos indicados ao Will Eisner Comic Industry Awards

Publicado em 15/05/2018

Atualizado às 11:53 de 03/08/2018

por Heloísa Iaconis

Rua Sumidouro, bairro de Pinheiros, cidade de São Paulo. Você conhece essa localização? Consegue pescar o nome do logradouro na memória? Não se acanhe, procure no Google. O que, talvez, não venha de pronto ao lado da referência geográfica é certo fundo semântico. No passado brasileiro, “sumidouro” designava um poço desativado onde, não raras as vezes, escravos eram mortos e lá jogados para servirem de exemplos aos demais: por terem fugido ou cometido alguma “falta” (aspas muitas!), a punição comia suas vidas. O termo-castigo, escondido agora por camadas de concreto e fumaça, dá título a uma das narrativas de Cumbe (2014, Editora Veneta), obra de Marcelo D’Salete indicada ao Will Eisner Comic Industry Awards, prêmio norte-americano considerado o Oscar dos quadrinhos.

A HQ, contextualizada no Brasil colonial do século XVII, traz histórias de pessoas escravizadas que, em dado momento, se rebelam contra os seus carrascos. Contemplado na categoria Melhor Versão Americana de Material Estrangeiro, o livro apresenta, com lápis e sensibilidade, um retrato de uma época a partir da ótica daqueles que não contam com protagonismo algum no correr histórico de um país que, ainda hoje, externa atitudes racistas. Um prisma outro, questionador e necessário, ferramenta para que tramas e indivíduos não sejam, cada vez mais, arremessados em um sumidouro, poço de ignorância coletiva, margem da margem social.

Da lousa ao quadro negro

O encontro se deu, quando pequeno, nos fundos da casa, em uma lousa que ali havia, descoberta armada por incentivo fraterno: Marcelo aprendeu a desenhar com o irmão e, nesse momento embrionário, provou, testou, moldou traços por meio da cópia de super-heróis. A reprodução só se fez devido a outra paixão: antes do risco em punho, era já leitor de quadrinhos – tarefa também dividida com aquele que o instigou ao mundo dos balões. Moradores de São Mateus, zona leste da capital paulista, a dupla tantas vezes percorreu longas distâncias para achar uma banca de jornal que oferecesse o invento valioso. Cenas da década de 1980, vale dizer.

Ao passo que crescia, a vontade de construir uma voz autoral tomou corpo em D’Salete, corpo tamanho que guiou as escolhas do então garoto: no colégio, colocou-se em um curso de design gráfico. Nas aulas, conheceu gente inquieta como ele, pessoal alinhado a artes várias, do hip-hop ao grafite. “Percebi que existia uma possibilidade de me aperfeiçoar nesse caminho”, recorda. Chegado o tal do ensino superior, estudou artes plásticas na Universidade de São Paulo (USP) e, depois, na pós-graduação, versou sobre história da arte. A formação acadêmica, porém, é apenas uma das faces que edificaram o sujeito quadrinista, docente e pesquisador: o olhar político e cultural foi muito delineado por criações como Compasso de Espera (1973), filme de Antunes Filho com Zózimo Bulbul no papel do poeta Jorge de Oliveira; as rimas de rappers da metrópole acesa; os Cadernos Negros, série criada pelo Quilombhoje para divulgação, debate e aprofundamento da literatura de escritores afro-brasileiros; as trajetórias-símbolo de Malcolm X e Martin Luther King, inspirações irrestritas.

No âmbito das relações pessoais, o contato com Kiko Dinucci, Onestto e Os Gêmeos, por exemplo, reforçaram todo um arcabouço teórico e humano, calcado em vivências próprias, acerca dos contextos desiguais, periféricos e preconceituosos em que, ontem e hoje, a negritude é posta. Dessa multiplicidade de frentes veio o projeto íntimo enfim: desenhar a voz dos seus em um quadro que é, em sua inteireza, negro.

A imagem que fala

Marcelo D’Salete estreou em 2008 com Noite Luz e, dois anos para a frente, lançou Encruzilhada. Em Cumbe, livro de 2014, traduziu, para a linguagem de HQ, o período no qual a nação era uma colônia escravocrata, um emergir de uma narrativa que, no seio da dita história oficial, sofreu (e sofre) um apagamento sistêmico. “Houve tentativas, a todo custo, de eliminar a presença negra no Brasil, bem como a sua história e a sua cultura. Isso está em diversos escritos de políticos, intelectuais, pensadores que, no final do século XIX, importaram ideias de hierarquia racial em virtude da abolição”, explica o artista.

Ao se debruçar na pesquisa do tempo enfocado, deparou-se com conflitos inúmeros, pessoas escravizadas nas vistas de instituições repressivas. Esse investigar, trabalho de minúcia, teve mais um fruto: Angola Janga, de 2017, volume que aborda o quilombo dos Palmares.

Marcelo D'Salete | foto: Rafael Roncato

O primeiro retorno ao passado é, dessa maneira, o princípio de uma incursão maior: Cumbe é o início de um resgate, um recontar de versões, fatos e essências. De origem banto, vinda do kimbundu, de Luanda, o termo-título da obra traz o quarteto “luz, força, fogo, sol” em seu significado. Revolta e dor que explodem, por vezes, em formas poéticas. E ganham o globo: Portugal, França, Itália, Áustria, Alemanha – territórios onde o álbum se comunica em outras línguas. “Nos Estados Unidos, o livro foi publicado no fim de 2017. Teve uma ótima recepção, diversos textos elogiosos”, orgulha-se o autor.

Run For It: Stories of Slaves Who Fought for Their Freedom, edição norte-americana, ficou a cargo da Fantagraphics, editora que, para Marcelo, apresenta característica vital: publicar histórias elaboradas a partir de perspectivas não dominantes. O interesse pelo não mainstream se solidifica com a nomeação ao prêmio Will Eisner Comic Industry Awards. “Só a indicação já é algo extremamente significativo e mostra que a atual produção brasileira de quadrinhos é de qualidade”, comemora o desenhista, mestre de uma imagem que, por ela mesma, fala. E, se precisar, grita. Berra – o que, há mil gerações, prende-se na garganta.

Atento, alerta

Nega-se o solo discriminatório sobre o qual o berço esplêndido se ergueu. Opressão? Apartheid? Aqui? E há quem jure que isso é conversa da África do Sul somente, há quem atesta uma suposta doce harmonia. “Busco descortinar esse tipo de visão sobre a nossa realidade – visão que é extremamente frágil, imprecisa, equivocada, mas que ainda sobrevive, um fantasma no armário que lidamos a cada momento”, reflete o quadrinista. Atento, alerta: em relação aos discursos, às representatividades (pessoas complexas ou meros consumidores, personagens repletos de potencialidades ou marionetes que reproduzem o velho jogo?), a cada pedacinho dessa reconstituição coletiva que visa, no âmago, um viver livre e democrático – de fato.

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