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Maria Lúcia Silveira | Políticas para as mulheres

O Observatório conversou com Maria Lúcia Silveira, assessora de ações temáticas da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres, de...

Publicado em 09/10/2015

Atualizado às 10:17 de 03/08/2018

O Observatório conversou com Maria Lúcia Silveira, assessora de ações temáticas da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres, de /São Paulo, especialista em políticas públicas de gênero e doutora em sociologia pela PUC/-SP.

Na entrevista, ela comenta sobre a atuação da secretaria e o debate de gênero e apresenta a primeira sala feminista fundada na Biblioteca Municipal Cora Coralina – espaço de encontro para as mulheres da zona leste de São Paulo.

Qual o papel da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres no que diz respeito à inclusão do debate sobre gênero e ação cultural? A partir de que momento a cultura passou a fazer parte das pautas e das ações da secretaria e quais são as mulheres que se considera mais urgente atingir?

O debate sobre a cidadania cultural das mulheres não vem de agora. Desde a primeira Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres, havia essa preocupação. No cotidiano de trabalho, observávamos que as mulheres não tinham oportunidades para produzir nem espaço para fruição da cultura nas periferias. As lideranças femininas dos movimentos diziam que os homens tinham o futebol, os bares; e as mulheres ficavam com o serviço doméstico, no máximo tinham tempo para a novela. Havia poucos lugares onde poderiam compartilhar as atividades culturais junto às outras e no coletivo.

A partir de 2002, o debate cresceu nas outras três conferências municipais – realizadas, respectivamente, em 2004, 2007 e 2011. Agora, com a retomada de uma gestão democrática e participativa na cidade, realizamos a 5ª conferência (setembro de 2015). Havíamos feito atividades bem interessantes, como o projeto São Paulo em Versos Femininos, no aniversário de 450 anos do município, abrindo um concurso de poesias sobre a cidade produzidas por mulheres e divulgadas no jornal do ônibus.

Desde que foi criada a Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres (SMPM), na gestão de Fernando Haddad, o órgão passou a ter uma Assessoria de Ações Temáticas (AAT), pensando projetos para diferentes áreas, como cultura, educação, saúde, direitos sexuais e reprodutivos e, intersecção de gênero e raça/etnia, entre outros. Procurei a Secretaria Municipal de Cultura (SMC) – quando o secretário ainda era Juca Ferreira e prontamente aceitaram que implantássemos uma temática feminista no Sistema Municipal de Bibliotecas. Aliás, é bom lembrar que isso foi inspirado na biblioteca temática feminista de Paris, que existe desde os anos 1970. A ideia estava na cabeça há alguns anos, uma proposta para oferecer obras introdutórias de referência de feminismo e gênero dentro da política de bibliotecas públicas.

No projeto que elaboramos em parceria com a diretoria de fomento às linguagens da SMC, escolhemos uma biblioteca que comportasse o acervo temático na periferia, onde o movimento de mulheres tem uma tradição de lutas. Escolhemos a Biblioteca Municipal Cora Coralina, que, além de levar o nome da poetisa goiana, possuía um espaço amplo que precisava de reformas. Isso tudo levou dois anos e pouco.

Nosso projeto previa que, além do acervo, deveria ser feita uma conexão com oficinas, cursos, saraus, rodas de conversa com escritoras e artistas etc. Por fim, a biblioteca funcionará como um polo cultural. Pelo menos é o que garantem a secretária municipal de política para as mulheres, Denise Motta Dau, e o atual secretário municipal de cultura, Nabil Bonduki.

Você poderia falar um pouco sobre como foi o processo de pensar esse projeto? Havia alguma mobilização anterior ou atividades voltadas para a discussão nesse espaço?

Nessa escolha tivemos muita sorte. Primeiro escolhemos a zona leste, celeiro de muitas lutas feministas, depois fomos atrás de bibliotecas que levassem o nome de escritoras e vimos que havia a Biblioteca Cora Coralina –, que, além disso, tinha um espaço interditado à espera de reforma e um auditório onde se podem passar filmes. Daí, partimos para a autorização da coordenação de bibliotecas, que prontamente assumiu a reforma do espaço, mesmo com recursos escassos. A equipe da SMC foi bastante caprichosa e prestativa. Lá também já havia uma atividade com jovens feministas, que colaboraram assim que souberam do projeto. O sarau do grupo Juntas na Luta já acontecia na Cora Coralina. Além de Guaianazes, nas regiões do entorno há outros grupos culturais que participavam da programação da biblioteca. Todos os ingredientes estavam presentes: movimento de mulheres, jovens, e as obras da Cora Coralina.

A SMPM também colaborou captando para o acervo de livros esgotados e se responsabilizou pela contratação de uma artista plástica, Biba Rigo, que coordenou a ambientação da temática feminista conforme as demandas das secretarias parceiras. Ela organizou uma ambientação coletiva, com mulheres da região. No espaço há fotos de mulheres do bairro, dos movimentos sociais feministas; um mural pintado coletivamente na parte externa; exposição de xilogravuras e autorretratos pintados pelas mulheres da região, além de vidros decorados com frases de Cora Coralina.

Inaugurado o equipamento cultural, quais ações estão previstas para atrair o público-alvo e para manter e ampliar esse espaço de reflexão e discussão?

Queremos ampliar o acervo, contratar monitoras que sejam jovens estudantes dos núcleos de gênero de universidades e ONGs para fazer a conexão dos temas das obras com a programação de oficinas temáticas, saraus, encontros com escritoras etc. Deve haver também uma busca ativa de formação de público nos próximos dois anos.

Por exemplo, há uma demanda de oficinas sobre a imagem da mulher na mídia e na propaganda e ; sobre a visibilidade das mulheres na história. Temos um projeto escrito em conjunto com a SMC para apresentar às instituições interessadas. Nele, incluímos um grande debate ou ciclo de debates sobre gênero e feminismo para atingir e atualizar essa problemática em diálogo com toda a cidade.

Os Centros de Cidadania da Mulher (CCMs) são espaços de qualificação e formação para mulheres de diferentes idades e raças, que permitem organizar e defender os direitos sociais, econômicos e culturais. Você poderia comentar como são pensadas essas formações?

Os CCM's, como o nome já diz, têm como objetivo promover a cidadania das mulheres e funcionar como braços regionais da SMPM, colaborando com a constituição dos Fóruns Regionais de Mulheres na cidade. Além de realizarem oficinas culturais, os centros fazem ações preventivas contra a violência doméstica, em parceria com a Defensoria Pública. Agora, começa também um curso de formação em gênero e economia solidária, para incentivar grupos produtivos de mulheres de acordo com a vocação das interessadas. Os cursos estão no início e a ONG que vai ministrá-los é a Sempre viva Organização Feminista (SOF), selecionada via edital público para esse projeto de dois anos de duração.

Quando foram inaugurados, entre 2005 e 2006, foi realizada uma formação sobre gênero, cidadania e políticas públicas para gestoras da sociedade civil em cada um deles. Agora é hora de uma atualização porque novas mulheres e propostas surgem e se aproximam dos CCMs. Esses centros podem ser uma caixa de ressonância para a diminuição das desigualdades. O tema deve ser explorado pela Coordenação de Autonomia Econômica da SMPM.

Atualmente, existe uma delicada discussão acerca do feminino como gênero, principalmente quando entra em pauta a condição das transexuais. Alguns problemas cotidianos, como o uso de banheiros públicos, evidenciam a condição das transexuais e seus desafios diários. Há alguma discussão a esse respeito na Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres? Existe alguma demanda por parte das mulheres transexuais?

Penso que há uma diversidade de correntes teóricas do feminismo. Não há dúvida que todas e todos somos natureza/corpo e cultura. Podemos, sim, estabelecer um denominador comum de que as relações entre os gêneros são histórica e socialmente construídas. Embora predomine na academia a teoria queer, cuja principal teórica inspiradora é Judith Butler – sou uma das que acha que a autora deu uma valiosa contribuição, especialmente ao demonstrar a existência de uma heteronormatividade –, não penso que é só no plano da sexualidade que o gênero se expressa. Considero relevante a discussão de que existe uma masculinidade hegemônica que subordina as mulheres e as outras identidades de gênero, como travestis, lésbicas e transexuais.

Porém, existe também uma divisão sexual do trabalho, que é a base material da opressão das mulheres. Assim, trabalho, sexualidade, educação androcêntrica pesam tanto quanto as sexualidades. Esse é um longo debate que não cabe em poucas palavras.

De concreto, com relação às trans, a SMPM e a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) formalizaram recentemente uma parceria no programa Transcidadania, para iniciar um processo de concretização de direitos para as transexuais. As “trans, como é comum falarmos, demandam não serem expulsas da escola e querem ter emprego. A maioria não quer ficar na prostituição. São empurradas para essa atividade porque são discriminadas na escola e não são aceitas no trabalho. Mas já há avanços nesta gestão. O decreto que permite o uso do nome social nas escolas e instituições públicas foi um avanço.

O artigo Feminismo como Provocação, de Márcia Tiburi (revista Cult, n. 185), cita Judith Butler – filósofa norte-americana e uma das principais pensadoras sobre gênero da atualidade. No seu ponto de vista, qual é o maior desafio para criar um diálogo entre políticas públicas e gênero?

Como disse – em minha opinião, como estudiosa –, considero o discurso como elemento fundamental da constituição dos sujeitos, mas existe uma realidade socio- histórica concreta que não se restringe a ele. Há várias correntes do feminismo, e a que pessoalmente partilho é a do feminismo da igualdade, do feminismo político, com toda sua diversidade. Cito outras autoras, como as filósofas espanholas, Célia Amorós e, Alicia Puleo e a cientista política Nancy Fraser, oriunda da Escola de Frankfurt. Também a historiadora norte-americana Joan Scott acentua a questão do discurso e do gênero como construção social. Butler radicalizou a questão da corporeidade e das sexualidades, da existência de uma inteligibilidade cultural de gênero, com o que concordo. Mas não creio que a categoria gênero já tenha explodido. Falta combinar com a realidade. O que existe é uma visibilidade maior da diversidade sexual, conquista iniciada pelo feminismo e depois pelo movimento LGBT. Creio que há uma imbricação do patriarcado com o capitalismo que ainda exige muita luta para ser desfeito.

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