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“Não existe uma memória da cidade. Existem memórias, no plural”, diz pesquisadora

Em entrevista ao IC, Luciana Amormino fala sobre a relação das memórias individual e coletiva com os espaços sociais

Publicado em 11/08/2021

Atualizado às 17:13 de 16/08/2022

Por Milena Buarque Lopes Bandeira

Identidade, pertencimento, afeto e espaço são as primeiras palavras que vêm à mente quando Luciana Amormino pensa em memória. Ligada a esse tema desde o início dos anos 2000, a jornalista desenvolve, no momento, uma pesquisa de doutoramento que trata das tensões temporais em gestos de memória sobre a cidade de Belo Horizonte.

Mineira, nascida em Itaúna e criada em Azurita, Luciana desenvolveu toda a sua trajetória acadêmica e profissional na capital do estado. “Minha mãe, que é daqui, mudou-se para Azurita depois que casou. Eu fiz o caminho inverso quando vim estudar: saí de Azurita e vim para BH, em 1999, para começar a graduação em jornalismo na PUC [Pontifícia Universidade Católica] Minas”, conta.

Com o doutorado em comunicação social em andamento na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mesma instituição onde se fez mestre, a pesquisadora, em entrevista ao Itaú Cultural (IC), fala em “conexão afetiva”, ao olhar para as lembranças de família em BH, e também em conceitos como memórias coletiva e individual, identidade social, espaços de memória e suas possíveis relações.

Luciana Amormino veste roupas pretas, batom vermelho e posa para a foto com uma estante ao fundo.
Luciana Amormino (imagem: Maria Fonseca)

Luciana, a sua trajetória acadêmica e profissional é toda centrada em Minas Gerais. Você é mineira? Qual é a sua relação com Belo Horizonte ou com outras cidades de Minas?

Sou mineira, nasci no interior de Minas, numa cidade que se chama Itaúna, cresci em Azurita, mas a minha família toda é de Belo Horizonte ou do interior de Minas, de Azurita mesmo. Cresci por aqui e fiz a minha trajetória toda acadêmica e profissional em Belo Horizonte. Minha mãe, que é daqui, mudou-se para Azurita depois que casou. Eu fiz o caminho inverso quando vim estudar: saí de Azurita e vim para BH, em 1999, para começar a graduação em jornalismo na PUC Minas. De lá para cá, foi essa trajetória acadêmica, na PUC Minas, na UFMG, o mestrado, a especialização e, agora, o doutorado – em andamento – e o trabalho também.

Em sua tese de doutorado, você trata das tensões temporais em gestos de memória sobre Belo Horizonte. Como começou a pesquisar e trabalhar com o tema da memória?

Faço parte do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG, na linha de textualidades midiáticas. Poderia dizer que é uma continuidade dos meus interesses de pesquisa em memória.

Comecei a trabalhar com esse tema ainda na graduação, quando era estagiária da empresa Escritório de Histórias, aqui em Minas Gerais. Entrei no início dos anos 2000, e fizemos um trabalho na linha de memória institucional, na criação de centros de documentação e memória, histórias de família, histórias de empresa, projetos editoriais e expositivos. Foi um trabalho bem interessante para entender um pouco da memória na prática, como é que a gente lida com isso, uma abordagem que também se ancora na história oral.

No Escritório de Histórias, a gente desenvolveu um trabalho muito interessante, que acho que hoje reverbera também na minha pesquisa de doutorado, que foi a criação do chamado Museu Virtual Brasil, um museu virtual de bairros, cidades e lugares. A gente fez um trabalho de mapeamento, a partir de uma visão muito próxima dos moradores dos bairros, para observar como eles narravam as suas memórias, as memórias do lugar sob a perspectiva individual de cada um.

Estive mais à frente do projeto de um bairro aqui de Belo Horizonte, que é o Jardim Montanhês. À época, a gente fez uma parceria com a PUC Minas, por exemplo, com os cursos de turismo e jornalismo. Então, tínhamos uma formação de multiplicadores, formação de entrevistadores das pessoas, por meio de estágio, para fazer as entrevistas e coletar o material com os moradores. Fomos acionando uma rede, bem espontânea, das pessoas contando as histórias, suas lembranças, suas memórias sobre o bairro Jardim Montanhês.

A imagem é uma vista área da cidade, em sépia. É uma avenida, replicada em duas colunas verticais.
(imagem: Anna Carolina Bueno)

Uma memória compartilhada, não? Coletiva enquanto formada por essas individualidades.

Sim. Foi um trabalho muito interessante para pensar como é que essa história, maior que a memória de um lugar, que se inscreve no cotidiano dessas pessoas – uma memória social, de certa forma –, não é uma coisa à margem, à parte. Como esses indivíduos percebem ou constroem essa memória o tempo inteiro, nos seus fazeres, na sua relação com o lugar.

Foi muito interessante perceber na fala dos moradores, nessa dinâmica de uma perspectiva individual atualizada por quadros sociais que a gente vai perceber nessas falas, o desejo de um comum compartilhado, experienciado nesse dia a dia, e ao mesmo tempo como a visão dos moradores, às vezes, difere de uma visão mais institucional.

A gente fez um trabalho de revisitar o mapa oficial da prefeitura da cidade que delimita formalmente os bairros e ver que as práticas atravessam essas fronteiras. A pessoa, às vezes, está em outro lugar, que não é necessariamente o bairro Jardim Montanhês, mas se considera como parte pelas relações que são dadas naqueles lugares.

Você poderia falar um pouco sobre a pesquisa que está desenvolvendo no doutorado? Também, quem sabe, contar-nos a respeito do seu mestrado?

Nesse contexto de um trabalho com memória como jornalista, entrevistadora, escritora dos livros e das publicações, produtora de conteúdo e coordenadora do Museu Virtual Brasil, fui então para a especialização em história da cultura e da arte, na UFMG, e lá fiz um trabalho derivado também de uma pesquisa do Escritório de Histórias, que foi com uma comunidade quilombola de Pontinha.

Estava muito interessada em ver a relação entre a memória de um lugar, de uma comunidade quilombola, a partir da perspectiva dos narradores e da narrativa mais oficial dessas lendas sobre a fundação da comunidade, do seu mito de origem, olhando para os narradores que contam esse mito, que recontam esse mito, muito fundado na tradição oral. Esse artigo de especialização virou também uma pesquisa de mestrado.

No mestrado, fui pesquisar um pouco essa questão, olhando para Narradores de Javé, da diretora Eliane Caffé, como um produto audiovisual e pensando nessa questão da memória, da constituição da memória, a partir dos narradores. Estava interessada em analisar essa narrativa fílmica e entender como é que, de certa forma, ela traz questões ou ajuda a gente a ampliar o entendimento de uma memória coletiva. Olhei para os narradores e percebi um modo de narrar, que é o modo contemporâneo de narrativas encaixadas, quase uma mise en abyme, em que uma narrativa puxa a outra, um contar dentro do recontar. Pensar nesse jogo, nessa disputa entre esses narradores, disputa pela memória que a gente vê reverberar hoje.

Daí, dez anos depois, volto para o doutorado, no qual estou tentando observar as tensões temporais presentes nesses gestos de memória sobre Belo Horizonte.

Uma composição abstrata com imagens de prédios. O todo parece tremido, as imagens se sobrepõem e algumas figuras se repetem.
(imagem: Anna Carolina Bueno)

Por que gestos de memória?

Estou tomando esse entendimento de Jean Duvignaud. A memória não está dada, mas a gente tem sempre uma agência por trás. Estou tratando por gesto de memória todas as narrativas da memória que correm na cidade, que são paralelas.

Tenho cinco projetos interessantes para a gente tentar entender. Uns se centram nesses depoimentos de moradores, outros vão olhar para os vestígios do passado na cidade. São projetos de naturezas muito diversas, mas que de certa forma vão dizer um pouco dessa memória de Belo Horizonte. Entre eles ainda consigo pensar um pouco nas fricções temporais, essas extensões temporais que se dão na memória, e também repensar um pouco desse entendimento de uma memória de caráter coletivo da cidade.

Por qual razão olhar para Belo Horizonte?

Belo Horizonte tem uma história muito singular em relação à memória. É uma cidade relativamente nova, construída sobre um arraial que já existia, o arraial de Curral del Rey, e, basicamente, se assenta nas bases de um esquecimento, então começa com gesto de esquecimento para se fundar.

A cidade de Curral del Rey era um arraial, mas com 3 mil pessoas. Tinha uma efervescência, uma vida pulsante, mas é praticamente destruída, poucas casas ficam para dar origem a Belo Horizonte. Era uma nova capital para Minas e, de certa forma, rompia com o que Ouro Preto simbolizava de um passado mais arcaico e colonial brasileiro que a República vinha também rever.

O tempo inteiro a gente presencia historicamente um fazer-se e desfazer-se e, daí, coloco para Belo Horizonte uma imagem de uma cidade Penélope, retomando a Penélope de Ulisses, que faz e desfaz, e em que ao mesmo tempo, nesse fazer e desfazer, interessa o processo, interessa esse lidar com o tempo também, e aí ela se faz e se desfaz o tempo todo.

Ela [Belo Horizonte] foi batizada quando fundada, em 1897, de Cidade de Minas e, pouco tempo depois, trocou o nome para Belo Horizonte; o tempo inteiro ela está nesse “autoapagamento”. Diante disso, a gente tem o pulsar dos próprios moradores, de fazer frente a esse autoapagamento, que é justamente tentar, de certa forma, registrar sua memória.

Uma rua coberta de pedras pretas entre as casas históricas brancas e azuis. O céu está nublado e ao fundo se veem montanhas onduladas e verdejantes. No horizonte, também está uma igreja.
Vista de Ouro Preto, 1962 / Acervo Banco Itaú (imagem: João Luiz Musa/Itaú Cultural)

Qual é a importância, então, de fazer esses registros de memória?

O que esses projetos fazem me parece dizer muito mais de um gesto de presente e de uma intenção de futuro do que propriamente de uma volta ao passado. Mas o passado vira esse lugar de tensionamento; olhar para esse passado é fazer essa fricção temporal na própria história da cidade. É dizer de interesses de agora, do que se quer construir para a cidade, do que se espera, porque, de certa forma, são projetos que têm escolha, também agenciam essa memória de algum lugar.

Tentar entender a memória da cidade como esse lugar de memórias, no plural. Acho que é interessante a gente salientar isso, porque, por mais que a gente tente, existem projetos variados, múltiplos. Eles não dão conta de dizer de uma memória da cidade, porque não existe uma memória da cidade. Existem memórias da cidade, frutos de disputas também o tempo inteiro, de quais memórias têm direito de existir como tais, quem tem direito de falar pela cidade, quem pode registrar essas memórias.

Na sua visão, qual é o papel da memória como ferramenta de constituição de uma identidade social, uma identidade coletiva, nesse sentimento de pertencimento?

Acho que é fundamental, porque, quando a gente se sente parte, quando conhece a história daquele lugar, quando você se coloca como parte dessa história, está construindo isso. É uma forma de a gente pertencer mesmo, de despertar esse sentimento de pertencer a partir do conhecimento sobre os lugares, a partir dessa memória que é compartilhada, que é produzida.

É uma memória que passa por essa relação com os lugares, com o espaço. Pertencer a um território, sentir-se parte dele, sentir-se como agente também dessa história no tempo presente, é fundamental. E isso diz respeito à identidade, saber quem sou e para onde vou, não esquecer essas bases. Podemos pensar isso tanto na identidade subjetiva, a formação de subjetividades, quanto nas identidades culturais, de pertencer a grupos. A gente partilha o mesmo tempo, tem experiências diferentes, mas tem um tempo comum e um espaço comum.

Essas tentativas que a gente viveu, e vive o tempo inteiro, de homogeneização são terríveis, significam desconsiderar diversidades, desconsiderar diferenças como parte desse comum. Acredito que é um comum dotado de diferenças, de tensões, que se dá nessa própria fricção.

Quais são os maiores desafios de lidar com as memórias individuais, com a história oral desses diferentes relatos, que se misturam não só com a história da cidade, do lugar, mas também com os afetos?

Essa relação individual e coletiva a gente pega lá do sociólogo Maurice Halbwachs, que foi quem escreveu a memória coletiva, e os quadros sociais da memória. É um entendimento bem interessante para pensar que as memórias, mesmo as individuais, já estão de certa forma contaminadas por esses quadros sociais.

Acho que também dizer da memória é falar desse lugar que não tem como a gente dissociar. É até difícil colocar dicotomicamente memória individual versus memória coletiva, memória versus esquecimento, porque são quase faces da mesma moeda. Ao mesmo tempo, você também não tem como pensar na memória sem pensar no esquecimento, porque, ao lançar luz sobre alguns pontos, alguns lugares, algumas falas, outros são deixados de fora naturalmente, e isso é parte do processo de lidar com a memória.

A questão é só sempre nos perguntarmos quem estamos silenciando, quem sempre foi silenciado, e como fazer emergir também para o coletivo essas memórias que foram apagadas, invisibilizadas historicamente, de um bairro, de uma cidade, de um lugar comum.

Para finalizar, o que você entende por espaço de memória? Como seria um local ideal nesse sentido, pensando no registro das memórias de um lugar?

A gente tem espaços de memória que, às vezes, tendem a cristalizar certos pontos. Os museus são importantes espaços para pensarmos memória e para levantarmos questões sobre ela. Acredito que é necessário um processo de abertura dos museus, do que se faz, de quais narrativas são construídas ali, de quais outras questões a gente pode mobilizar, que de repente vão estar refletidas no programa educativo. São lugares que precisam estar constantemente se perguntando sobre o seu papel na sociedade.

Acho que isso é uma forma de mantermos o museu sempre como espaço de memória, mas que não está ancorado no passado, que responde às questões do presente, porque a isto é que serve: a gente olhar para esse passado, mas lançar as nossas questões do presente e tentar projetar futuros, construir futuros, imaginar futuros possíveis. Então, ele tem de estar sempre pulsante, senão acaba sendo morto, vira um museu de coisas mortas, e isso não responde a nada e não atende a nada.

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Memórias Capitais, Belo Horizonte (imagem: Divulgação)
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