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Memórias de Adriano: a consciência de ter ido até o fim

Em março, a peça Memórias de Adriano – adaptação do romance homônimo da escritora belga Marguerite Yourcenar, com direção de Inez Viana,...

Publicado em 21/03/2016

Atualizado às 01:18 de 06/09/2018

Por Duanne Ribeiro

Em março, a peça Memórias de Adriano – adaptação do romance homônimo da escritora belga Marguerite Yourcenar, com direção de Inez Viana, atuação de Luciano Chirolli e música de Marcello H – contou no Itaú Cultural uma história de vida relembrada no leito de morte: no espetáculo, o imperador romano Adriano, em uma carta, narra ao seu sucessor o seu percurso, a sua política e os seus amores.

[caption id="attachment_90082" align="aligncenter" width="537"]O ator Luciano Chirolli em cena de Memórias de Adriano [/caption]

 

Adriano estabeleceu uma política conciliatória no império e incentivou a cultura. Apaixonou-se por um adolescente, Antínoo, e, em luto por ele, fez com que todo o domínio romano soubesse do seu nome e da sua imagem. Ao fim da vida, recupera a sua trajetória com a intenção de “entrar na morte de olhos abertos”. Por meio desse material, o monólogo dialoga com temáticas atuais – como a homossexualidade – e, fundamentalmente, fala da vivência humana.

Segundo a diretora, “Memórias de Adriano foi finalizado em 1951; [a autora] levou quase 30 anos escrevendo, reescrevendo o livro. O [produtor] Felipe Lima teve a ideia de transformar esse livro, que foi muito emblemático sobretudo nos anos 1970 e 1980, quando houve um boom da obra por aqui”. O original foi entregue a Thereza Falcão, escritora e diretora teatral, que “adaptou o livro de uma forma lapidada [...] Ela o condensou. São passadas as questões mais importantes em 50 minutos. O Luchi [Luciano Chirolli] é quem sofreu, por ter de decorar todo ele [risos]”.

Chirolli acrescenta: “É um dos raros livros com um conteúdo histórico e político que se tornaram best-seller. Ele é gostoso de ler, mas é um tratado, e por isso ela demorou 30 anos para escrever. Aqui no Brasil virou moda quando foi lançado, em 1966; chegou a esbarrar [em quantidade de vendas] no Sidney Sheldon”. Para a diretora, esse sucesso se deve à abordagem do personagem: “[Marguerite] trata desse imperador de uma forma muito humana; ela consegue detalhar os seus sentimentos, os seus pensamentos. Traz a intimidade desse homem”.

“Eu queria muito trazer a montagem para os dias atuais”, continua Inez, “porque tem tanto a ver com o que estamos vivendo... [O livro] fala de liberdade, de justiça, tem um olhar sobre as mulheres, sobre os escravos, sobre a homossexualidade. É tão atual, é até uma lição para os políticos de hoje.” Ainda segundo ela, “[Adriano] pensa na humanidade. O maior medo dele é morrer sem deixar um sucessor que olhe para o povo – o que, hoje em dia, é absolutamente diferente: os nossos políticos, a maioria deles pelo menos, não fazem isso; não existe alteridade, é uma coisa mais egoísta”.

Em complemento, Chirolli comenta que sentiu uma proximidade particular com o personagem. Ele afirma que, no trabalho do ator, “a gente não tem como escapar de imprimir uma individualidade. É o Adriano que está falando? É. Mas se eu não me colocar...” . No caso de Memórias de Adriano, esse processo “foi mais fácil” por uma semelhança com a criatura. “Eu me identifico com tudo o que ele fala.”

A peça foi construída coletivamente, absorvendo improvisos. O pano de fundo do cenário – um grande mosaico de chapas de raio X – surgiu assim. Inez conta que propôs um exercício: “Luchi, quero que você me traga uma composição, uma improvisação direcionada. Ele veio com muitas velas no chão e uma paredinha com meia dúzia de radiografias. Quando eu olhei aquilo... Isso tem de estar na peça, gente”. A trilha sonora, conforme afirma o músico Marcello H, também foi composta aos poucos. “Fui criando esses climas para ele, uma cama sonora, tomando cuidado para nunca passar do texto e do autor.”

Mesmo depois da estreia, o espetáculo se modificou por um acaso. O cenário tem também uma série de objetos metálicos dependurados em toda a sua extensão. O ator, em uma cena de um Adriano angustiado, os golpeou. “[Senti] uma raiva de mim mesmo, empurrei. Depois, eu pensei: caramba, mas e se isso não for seguro? Me deu uma coisa. Nunca fiz isso. Vai que cai na minha cabeça?” O gesto acabou sendo incorporado. Como os objetos soavam como sinos, uma pessoa do público chegou a comentar: “A cena do campanário é maravilhosa”.

Em suma, afirma Chirolli, Memórias de Adriano “é a consciência do homem que se propôs a ir até o fim. Ele quis o poder, atingiu o poder”. Com uma empostação de quem declama no palco, o ator lembra uma frase da peça que descreve Adriano – “Apenas um homem que procura cumprir com todas as suas obrigações antes de morrer” – e, assim, compreende o seu final. “Saber esperar aquele momento que é reservado a você é uma sabedoria. A morte é um momento reservado a você. Você não vai ver de olhos abertos?”, conclui ele, com um riso curto, como aquele de alguém que aceita uma verdade dura e simples.

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