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Meow!

"Meow!", criado em 1976, refilmado em 1981, ganhou notoriedade ao receber o prêmio especial do júri em Cannes. O curta atraiu os olhares para a animação nacional, uma prima pobre do cinema brasileiro – que é majoritariamente voltado para dramas e comédias, quase sempre acompanhados de uma mensagem social.

Publicado em 18/09/2017

Atualizado às 14:55 de 21/09/2018

Por Andrea Ormond

por Andrea Ormond

Na história do cinema, pioneiros são aqueles que inauguram movimentos, experiências técnicas e tudo o que nos remeta à criação da pólvora cinematográfica. Sob esse adjetivo largo, os pioneiros carregam o manto da invenção, especialmente em uma arte como a do cinema, criada com o avanço da tecnologia e a partir de fenômenos óticos – entre eles, a persistência retiniana e a capacidade de enxergar a vida através de quadros por segundo.

As animações brasileiras costumam ter como ponto de partida o icônico Macaco Feio, Macaco Bonito (1929), de Luiz Seel e João Stamato: primeiro curta-metragem de animação efetivamente preservado, diferentemente dos registros perdidos da era silenciosa. O pioneirismo aparece, aqui, pelo aspecto cronológico. 

A estética de Macaco Feio, Macaco Bonito pode lembrar tanto os traços de J. Carlos quanto os da turma da Betty Boop, do Gato Félix ou do ratinho Mickey. Aliás, Félix e Mickey são citados explicitamente no curta. Não se vê o estilo gótico e surpreendente de Roberto Rodrigues nem uma reinvenção da roda. Vê-se um deboche. A trama gira em torno de um macaco brasileiro que sai do zoológico e ganha a liberdade. Algo que o violonista Ricardo Coração dos Outros, de O Triste Fim de Policarpo Quaresma, talvez aplaudisse.

Marcos Magalhães nasceu no Rio de Janeiro em 1958. Portanto, três décadas depois do curta de Seel e Stamato e às vésperas de a capital migrar para o centro do país, já invadido pela televisão. Eis o geist que alimentou sua infância e sua adolescência, quando se trancou no quarto e desenhou, em papel vegetal, A Semente (1974) – futuro super-8. 

Por aquela época, o que era um mísero ratinho preto havia se transformado em um império debaixo dos bigodes de Walt Disney. Impérios expandem-se além do próprio território e abraçam o mundo. O tal “destino manifesto” norte-americano não resultou apenas em bombas, mísseis e napalm. Também criou épicos como Fantasia (1940), um pule de dez para legitimar artisticamente o roedor Mickey e o entourage de profissionais que ajudaram a transformar a animação em uma arte “respeitável”. Mesmo antes do fim da Segunda Guerra Mundial, o escocês Norman McLaren tornava-se referência internacional no National Film Board (NFB) do Canadá. No NFB, Marcos Magalhães criaria Animando (1983), ponto alto de sua trajetória. 

Somadas as criações dentro e fora do Brasil, bem como a evolução de costumes que varreu a segunda metade do século XX, pode-se dizer que Magalhães concebeu em Meow! (1981) um símbolo pioneiro da animação nacional. Catapultou-a para o mundo, congregou gerações em torno do curta-metragem, que traz crítica ideológica, humor, jazz e a doce figura de um gato. Bichos costumam ser ótimos porta-vozes de mensagens difíceis.

Meow! (assista aqui) havia sido criado em 1976. Refilmado do super-8 para 35 milímetros (1981), ganhou notoriedade ao receber o prêmio especial do júri em Cannes. O curta atraiu os olhares para a animação nacional, uma prima pobre do cinema brasileiro – que é majoritariamente voltado para dramas e comédias, quase sempre acompanhados de uma mensagem social. 

Os oito minutos de Meow! são fruto dessa inquietação política. Na história, um simpático gato azul rejeita o refrigerante que colocam no seu pires. Comerciais aparecem de repente, misturando prazer ao gosto do refrigerante. As cores do Tio Sam fazem a linha do Big Stick, bem mais próximo de Theodore Roosevelt do que da era Carter. Em vez da tranquilidade de Ricardo Coração dos Outros, os jovens do super-8 estavam diante dos dilemas de José Carlos de Oliveira e do romance niilista Terror e Êxtase (1978), que denunciou a violência urbana e uma sociedade que se acreditava “prafrentex”.

A iconoclastia apareceria para valer em Estrela de Oito Pontas (1996), fundado na loucura e no inconsciente. O curta-metragem é uma parceria pungente entre Magalhães e o artista plástico Fernando Diniz, interno do hospital psiquiátrico Pedro II e pupilo da doutora Nise da Silveira. Temos cartolinas contendo palavras – algo raríssimo na trajetória do diretor – e desenhos de Diniz. Estrela de Oito Pontas reporta-se ao ofício da animação cinematográfica, assim como Animando. Neste, porém, a ênfase se encontra no próprio amor de Marcos Magalhães por sua profissão, a ponto de se fusionar com o curta, em metalinguagem. 

Animando é um momento de grande brilho, em que Magalhães constrói uma criatura de vasta cabeleira, alto, magro, deambular – característica de vários personagens em animação, mas com um diferencial: a criatura toma consciência de si própria, levando esse jogo ao limite. Temos novamente uma animação sem diálogos, como em Meow!, e novamente coadjuvada pelo jazz como elemento de imersão.

A magreza, o cabelo e as pernas longas do boneco reaparecem de relance em Pai Francisco Entrou na Roda, que narra em poucos minutos uma história sobre desigualdades sociais e racismo. Tem Boi no Trilho (1998) vai além, com extrema simplicidade, colocando transições de sonhos, elementos que emocionam e superam o que pareceria mero polaroide da vida no campo. A história do gado cortando os morros, tocado por um capataz, possui um especial encanto.

Percebe-se na obra de Marcos Magalhães que o diretor é absorvido pela imagem, por sons, formatos, relações espaciais, sem a necessidade de uma dramaturgia tradicional. Em Estrela de Oito Pontas as cartolinas dão a chave bastante rápida para que o espectador ingresse no mundo de Fernando Diniz. Em Meow!, o grunhido do gato; em Animando e Tem Boi no Trilho, apenas a música-base; em Pai Francisco Entrou na Roda, as cantigas. O fenômeno se confirma em Dois (1999) – experimento em computação gráfica criado durante uma visita à Universidade do Sul da Califórnia. 

Até que aparece um ponto de ruptura: Homem Estátua (2007). O curta é realista e se mescla ocasionalmente com a animação, aproveitando os traços de vários desenhistas. A animação é residual. Com roteiro e música que lembram os filmetes silenciosos de Georges Méliès – mais uma prova de que a palavra não é essencial, mas antes o som –, um rapaz estátua viva convive com os passantes de Copacabana, trazendo no peito a camisa do América Futebol Clube, o segundo time do coração de várias tribos cariocas. Homem Estátua é a observação das ruas. E novamente a imagem como protagonista. Sempre.

Os louros de Meow! poderiam trazer comodismo para Marcos Magalhães, o que seria o beijo da morte. Ele preferiu continuar a atitude pioneira na animação, aprofundando parcerias, garimpando técnicas e estabilizando o caráter profissional que é necessário para a continuidade da arte. Até hoje permanece nesse universo espectral, que forja um pacto: as criaturas da tela não são necessariamente de carne e osso, mas acreditamos no que fazem, nas tramas em que se metem, e dividimos o mesmo barco. Despretensiosamente, Meow! entregou-se para uma globalização que lhe fez bem e, mais ainda, à animação brasileira.

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