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Mulheres de Palavra | Hip-Hop

Em Mulheres de Palavras: um Retrato das Mulheres no Rap de São Paulo, o principal desafio das pesquisadoras Renata Allucci, Ketty...

Publicado em 30/11/2016

Atualizado às 10:35 de 03/08/2018

Em Mulheres de Palavras: um Retrato das Mulheres no Rap de São Paulo, o principal desafio das pesquisadoras Renata Allucci, Ketty Valencio e Fernanda Alucci era dar visibilidade à grande presença feminina no universo do hip-hop. Renata e Ketty compartilharam conosco como foi desenvolvido esse projeto, abordando questões de gênero e de resistência.

Renata Allucci é doutoranda em urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, mestre em história pela PUC/SP e especialista em bens culturais: cultura, economia e gestão pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Pesquisa patrimônio cultural, urbanismo, festas populares e cadeia produtiva da cultura. É gestora e produtora cultural desde 1994.

Ketty Valencio é graduada em biblioteconomia e ciência da informação pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), especialista em bens culturais: cultura, economia e gestão pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e em gênero e diversidade na escola pela FESPSP. É proprietária da livraria Africanidades e integrante do projeto Mercado Negra.

Acesse a publicação e veja abaixo a entrevista.

(Arte: Divulgação)

Renata Allucci

Quais foram os principais desafios para realizar a publicação Mulheres de Palavra: um Retrato das Mulheres no Rap de São Paulo?

De minha parte, o desafio – muito prazeroso, por sinal – foi abrir minha escuta para um mundo bastante novo, com regras e vocabulário próprios, carregado de simbologias e de histórias de vida (que não estão desvinculadas do trabalho artístico) e decidir fazer uma publicação quase sem interferência: eu e as outras pesquisadoras, Ketty e Fernanda, praticamente desaparecemos do resultado final. E essa opção foi, sem dúvida, muito melhor para o que se pretendia, com um resultado mais rico e verdadeiro. Tivemos de trabalhar na edição dos textos para viabilizar o espaço, o que não deixa de ser uma intervenção nos depoimentos; afinal, o que entrou e o que ficou de fora foram escolhas nossas. Mas como participamos de todas as etapas, escolhendo as artistas, assistindo a apresentações ao vivo ou a clipes, acompanhando as entrevistas, as sessões de fotografia e de filmagem, ficou mais fácil elaborar o que elas mesmas ressaltavam nas conversas e nos depoimentos e, assim, escolher os trechos das transcrições que foram para a publicação impressa.

O hip-hop é uma cultura ainda “estigmatizada” e tida como apenas periférica. Como você vê, no campo das políticas públicas, as propostas que são pensadas para essa área? Ou não são pensadas e acabam ficando por conta das articulações das próprias artistas?

Se o hip-hop é estigmatizado, como acho que de fato seja, o hip-hop desenvolvido por mulheres sofre um duplo preconceito – e muitas vezes entre os próprios artistas do movimento. É muito visível como o machismo ainda atua: nas letras dos raps, no comportamento ofensivo nas batalhas, na desvalorização do trabalho das mulheres, na assimetria de oportunidades. Não vejo políticas públicas atuantes para a área; vejo projetos pontuais (apesar de ter essa opinião para a cultura em geral). Para as mulheres do hip-hop, a articulação que eu conheço é realizada pela Frente Nacional de Mulheres no Hip-Hop que, desde 2010, trabalha de forma institucionalizada pela união, especialização e divulgação do hip-hop feminino no Brasil, tendo representantes em vários estados brasileiros. A frente é um “coletivo de coletivos” e promove eventos, oficinas e debates para impulsionar a participação, produção e organização das mulheres no movimento.

crédito: Ricardo Dutra

Com o avanço das novas tecnologias, as formas de divulgação e compartilhamento hoje são diferentes. Como as artistas utilizam as redes sociais para divulgar sua produção?

A internet e as redes sociais são essenciais para a divulgação dos trabalhos das MCs. Hoje há uma variedade de blogs especializados, mas o que percebo é que as rappers utilizam veículos que tenham a combinação hip-hop + feminismo, porque também nesse setor elas encontram barreiras para sua divulgação. Trabalhos artísticos de homens têm maior destaque e preferência nas pautas. Por isso, elas conseguem maior visibilidade quando aliam os dois temas e quando, por trás da escolha do que vai ser divulgado, existe uma pessoa que tenha sensibilidade para dar espaço ao trabalho delas.

Você acredita que eventos como a Virada Cultural, que contempla apresentações de ritmos e estilos diferentes, são uma forma de promover culturas que são mais invisibilizadas? Existem outras possibilidades?

Qualquer evento que trabalhe a diversidade cultural – mas não somente eles – é propício para que as artistas se apresentem. Podem ser pocket shows, rodas de conversa, batalhas de rimas, shows tradicionais. Mas o problema, muitas vezes, é anterior, pois aqueles que fazem a programação desconhecem o trabalho das MCs e, frequentemente, dizem que não há muitas artistas, o que não é verdade. Há um avanço, mas ele é muito lento. Elas ainda dependem muito de homens que assumiram o comando dessa situação – e que não estão muito dispostos a abrir mão desse suposto lugar de liderança. Na Virada Cultural, acompanhei a história de um palco que estava destinado apenas às rappers, mas que foi cancelado. Não tenho conhecimento dos motivos desse cancelamento, porém elas enfrentam situações assim com bastante frequência. Já presenciei boicotes velados em apresentações, com a perda do material que elas enviaram, microfones que não funcionavam repentinamente ou atrasos que as prejudicaram. Elas são muito talentosas, guerreiras e conscientes do que enfrentam. Assim, tenho certeza de que a visibilidade e o reconhecimento virão.

crédito: Ricardo Dutra

Ketty Valencio

Vocês fizeram um recorte com dez depoimentos de mulheres MCs. Pode comentar como fizeram esse mapeamento? Como construíram esse diálogo com artistas?

O momento de seleção foi realmente crucial e bem difícil, pois existem muitas mulheres talentosas participantes do movimento hip-hop, principalmente no elemento MC. Durante alguns meses eu tive o privilégio de participar dos fóruns regionais de mulheres no hip-hop pelo interior e litoral de São Paulo, promovidos pela Frente Nacional de Mulheres no Hip-Hop, como ouvinte. E foi uma experiência incrível. Nesse evento eu pude conhecer a maioria das artistas participantes da publicação e, a partir dessa experiência e também de idas a alguns shows, nós (eu, Renata e Fernanda Allucci) fizemos diversas listas de nomes, com análise do histórico profissional, pessoal e do estilo musical. No entanto, o que realmente foi determinante para a escolha foi a disponibilidade da agenda de cada rapper. Depois disso, entramos em contato com elas pessoalmente, pelo Facebook ou pelo WhatsApp, e assim construímos os nossos encontros de entrevistas.

Qual o impacto dessa publicação como forma de dar visibilidade aos trabalhos artísticos dessas mulheres? E como forma de registro histórico?

A intenção é que o impacto seja positivo. Porém, infelizmente ainda precisamos de ações específicas voltadas apenas para o gênero feminino, para assim demonstrar que há mulheres em todas as áreas, inclusive fazendo rap. Esse projeto consiste no fato de que essas artistas são mulheres inspiradoras que quebraram paradigmas e romperam o silêncio com sua arma mais preciosa: a palavra, matéria-prima para a transformação da sua vida e do seu redor.

Essa publicação também visa contribuir para a problematização do machismo dentro do movimento hip-hop, e assim dar mais visibilidade para essas mulheres que são exemplos de representatividade e resistência. Elas e outras artistas não participantes do projeto merecem ser vistas, escutadas e que seus trabalhos profissionais sejam reconhecidos com respeito.

Outro ponto importante é que esse trabalho é um documento histórico, já que as mulheres normalmente sempre foram dizimadas e invisibilizadas pela história e, nas produções textuais, foram impossibilitadas de ser autoras das próprias narrativas, de ter protagonismo, principalmente as mulheres negras, que são vulneráveis ao epistemicídio, ou seja, à anulação da sua contribuição de intelectualidade e conhecimento, segundo Sueli Carneiro.

Equipe Mulheres de Palavra (da esquerda para direita Ricardo Dutra, Samuel Malbon, Renata Allucci, Ketty Valencio e Fernanda Allucci)
crédito: Ricardo Dutra

Questões relacionadas a gênero, identidades, ancestralidades, empoderamento vão se destacando em várias áreas, mesmo que tardiamente. Você percebeu isso no universo do hip-hop? Você conhece alguma ação ou evento que as mulheres/rappers estejam fazendo para fomentar essas discussões?

Apesar de o movimento hip-hop ser o reflexo da sociedade, e assim reproduzir o machismo, ele é um movimento de vanguarda que acaba sendo algumas vezes contraditório, porém libertador.

As primeiras mulheres MCs, como a rapper Sharylaine, em suas letras já descreviam a questão do empoderamento, do feminismo, da identidade e da ancestralidade. Eu, como consumidora de hip-hop, iniciei meu processo de politização e de negritude por meio do rap, isso na década de 1990. Hoje em dia, o movimento continua revolucionário, com construções sobre a evolução do papel de negros e negras, da mulher e de outras questões. Infelizmente, algumas pautas passadas não se modificaram, mas esse processo iniciou-se com os/as artistas do passado e os/as artistas contemporâneos/as foram influenciados pelo legado. Uma característica interessante desta geração do movimento hip-hop, na parte das mulheres, é que elas atuam em grupos, em coletivos, com o lema influenciado pelos diversos tipos de feminismo, que é “uma sobe e puxa a outra”.

Alguns projetos que possuem esses atributos são da Frente Nacional de Mulheres do Hip-Hop, que é um coletivo que possui todos os elementos do hip-hop protagonizados pelas mulheres. Sua atuação ocorre em quase todos os estados do Brasil, embora tenha sido iniciado no Sudeste, em São Paulo. Essa organização valoriza e apoia os trabalhos de todas as mulheres participantes e também fomenta a cena do movimento hip-hop com livros de própria autoria, site, cursos, oficinas, palestras, eventos em geral e com os fóruns regionais e nacionais que geram encontros da nova e da antiga geração de artistas mulheres, com rodas de conversa, shows e ações de formação para cada rapper usar como suporte na carreira artística. O objetivo final é de acolhimento: demonstrar que, independente do lugar onde essas artistas estiverem, elas não estarão sozinhas, pois a luta é coletiva.

Outros projetos interessantes são o Coletivo Rima Mina, no Nordeste – que incentiva as mulheres a ocupar, por meio da música, da poesia e da cultura, o seu lugar de direito no movimento hip-hop –, e o projeto Donas da Rima, que realiza videoclipes de mulheres artistas do rap do Distrito Federal. Nos dois casos, a maioria das componentes, ou mesmo todas, fazem parte da Frente Nacional de Mulheres do Hip-Hop.

O grafite é uma expressão artística do universo do hip-hop. Panmela Castro, da Rede Nami, por exemplo, o utiliza como ferramenta para empoderar e conscientizar mulheres nas comunidades do Rio de Janeiro. No seu ponto de vista, a representatividade pode ser a chave para combater não só questões de gênero, mas também de preconceito racial, religioso etc.?

A arte e o rap salvam, ressignificam vidas e o microfone associado às mulheres é extremamente libertador. Com certeza a atuação dessas mulheres é uma ferramenta fundamental para a desconstrução e prevenção de diversos tipos de preconceitos, principalmente ligados às questões de gênero e racial. Essas artistas – que possuem um histórico marcado de armadilhas limitadoras do sistema, apenas pelo motivo de serem mulheres com diferentes marcadores sociais – mesmo assim conseguem expressar seu talento e suas experiências pela sua arte. Deste modo, diversas mulheres se identificarão e também terão a possibilidade de reflexão e de ser o que elas quiserem. E os homens poderão aprender a naturalizar que ser mulher não é significado de inferiorização, pois a maior diferença entre um homem e uma mulher é a oportunidade. Por isso é importante nós mulheres e meninas termos mais referenciais para a construção de equidade de gênero em todas as áreas, inclusive no movimento hip-hop e na arte em geral. Isso mostrará que nada é impossível e o caminho ficará bem mais fácil para todas/todos nós.

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