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Um novo espaço para as mulheres do cinema

O Itaú Cultural estreia coluna dedicada ao cinema neste maio de 2021. A jornalista Luísa Pécora assinará este espaço, que se voltará para a produção de mulheres no cinema e audiovisual

Publicado em 26/05/2021

Atualizado às 18:59 de 16/08/2022

Por Luísa Pécora

O Oscar 2021 foi diferente de todos os outros: realizado no final de abril, em tempos de pandemia, o prêmio mudou de endereço, reuniu poucos convidados e aplicou protocolos de distanciamento social. Mas a cerimônia foi incomum também por outro motivo: após um jejum de 11 anos, e apenas pela segunda vez em mais de nove décadas, uma mulher ganhou o troféu de Direção.

Foi a chinesa Chloé Zhao quem subiu ao palco para se tornar não só a segunda mulher, mas também a primeira mulher asiática e a primeira mulher não branca a vencer na categoria. Na mesma cerimônia, seu longa-metragem, Nomadland, tornou-se apenas o segundo trabalho de uma diretora a ganhar a estatueta de Melhor Filme.

Mulher asiática usa duas tranças nos cabelos longos e segura duas estatuetas do Oscar. Ela esboça um leve sorriso e usa um vestido bege com mangas largas e gola rolê.
No Oscar 2021, a chinesa Chloé Zhao subiu ao palco para se tornar não só a segunda mulher, mas também a primeira mulher asiática e a primeira mulher não branca a vencer na categoria "direção" (imagem: Matt Petit/A.M.P.A.S)

Seja qual for o seu grau de interesse pela maior premiação de Hollywood, ela é sintomática quanto aos obstáculos que as mulheres enfrentam na indústria cinematográfica de diferentes países do mundo. Obstáculos que, por sua vez, refletem aqueles enfrentados pelas mulheres em qualquer profissão, como menos oportunidades, salários mais baixos e resistentes estereótipos sobre o que sabem, podem ou devem fazer.

Foi justamente o Oscar que me levou a refletir sobre essas questões – não o de Zhao, mas o de sua antecessora, a americana Kathryn Bigelow. Em 2010, quando ela ganhou o Prêmio de Direção por Guerra ao terror, muito se falou sobre a desigualdade de gênero no cinema e os efeitos que a sub-representação nas telas pode ter na sociedade. Foi o início de um grande interesse que desenvolvi pelo assunto e que cinco anos depois me levaria a criar o Mulher no cinema, um site sobre o trabalho das mulheres na frente e por trás das câmeras. Agora, com este texto, inauguro um espaço mensal de debate sobre o tema também aqui no site do Itaú Cultural, dedicado exclusivamente às mulheres do cinema brasileiro.

É possível que o leitor se pergunte se tal recorte ainda faz sentido. Afinal, a vitória de Zhao no Oscar não seria justamente um sinal do avanço global em direção à igualdade?

Para responder a essa pergunta, compartilho alguns dados sobre a participação feminina na indústria cinematográfica, a começar pela americana: de acordo com a Annenberg Inclusion Initiative, ligada à Universidade do Sul da Califórnia, mulheres dirigiram 10,6% dos cem filmes que tiveram maior bilheteria nos Estados Unidos em 2019. Essa porcentagem, embora baixíssima, representa um recorde desde que o estudo começou a ser feito, há 14 anos. Até então, o maior índice era de 8%, registrado em 2008.

Passemos à Europa e encontraremos cenário melhor, mas longe do ideal. Segundo relatório do Observatório Europeu do Audiovisual, mulheres dirigiram 22% dos longas europeus lançados nos cinemas entre 2015 e 2018. Nas 72 edições do Festival de Cannes, o mais importante do mundo, apenas um filme dirigido por mulher recebeu a Palma de Ouro (O piano, de Jane Campion, em 1993) e duas diretoras ganharam o Prêmio de Direção (Yuliya Solntseva, em 1961, e Sofia Coppola, em 2017).

Brasil

No cinema brasileiro, a presença das mulheres na direção teve impulso a partir da retomada, acompanhando a criação e o fortalecimento dos mecanismos de apoio ao audiovisual. Segundo dados coletados pela pesquisadora Paula Alves, entre 1981 e 1990 as mulheres tinham dirigido apenas 3,27% de todos os longas-metragens produzidos no Brasil. Na década seguinte, justamente a da retomada, o percentual passou para 11,35%; entre 2001 e 2010, chegou a 15,37%.

A tendência positiva tem se mantido, mas é cedo para falar em igualdade. Entre todos os 167 longas-metragens nacionais lançados no circuito comercial, apenas 16% foram exclusivamente dirigidos por mulheres. O índice está ligeiramente acima dos 15% registrados em 2017, mas abaixo dos 22% de 2018.

Consideremos os dados de raça, intrinsicamente ligados aos de gênero, e teremos um panorama ainda mais desigual. As pesquisas do Grupo de Estudo Multidisciplinar de Ação Afirmativa (Gemaa), ligado à Universidade do Rio de Janeiro (Uerj), têm sido fundamentais para escancarar a cara branca e masculina do audiovisual brasileiro. O estudo mais recente analisou os filmes nacionais lançados entre 1970 e 2016 que foram vistos por mais de 500 mil espectadores e revelou que nenhum deles foi dirigido ou roteirizado por mulheres negras. Além disso, mulheres brancas representaram 36% dos elencos principais, enquanto mulheres negras ficaram em 2%.

Essa reunião de dados aponta para duas conclusões iniciais: que a desigualdade de gênero e raça não é exclusiva de nenhum país ou cinematografia e que o caminho ainda é longo. Isso não significa, porém, que não exista razão para otimismo. Acompanhando o tema de perto, não tenho dúvidas de que muitos avanços foram feitos – incluindo no Brasil.

Nos últimos seis anos, o debate sobre igualdade de gênero e raça se fortaleceu muito no país, ganhando espaço tanto na imprensa quanto nas redes sociais. Questões como disparidade salarial e assédio, antes mantidas a portas fechadas, se tornaram mais públicas. Profissionais se uniram em coletivos e grupos de debates, valorizando a mobilização conjunta. A Agência Nacional do Cinema (Ancine) passou a ter uma Comissão de Gênero, Raça e Diversidade, focada em políticas ligadas à inclusão e à igualdade de oportunidades. Editais com paridade de gênero foram anunciados. Estudos sobre inclusão entre críticos e curadores foram produzidos. Novos festivais foram criados e os que já existiam passaram a dar mais atenção à diversidade. Desta forma, ajudaram a recuperar trajetórias como a de Adelia Sampaio, primeira mulher negra a lançar um longa-metragem nos cinemas brasileiros e a colocar o público em contato com cineastas indígenas, como Patrícia Ferreira Pará Yxapy, Sueli Maxakali e Graciela Guarani.

Mulher indígena aparece de lado, em close, contemplativa. Ela está à beira de um rio.
Cena de "Teko Haxy – ser imperfeita", de Patrícia Ferreira e Sophia Pinheiro (imagem: Sophia Pinheiro)

Cautela necessária

Passos na direção certa foram dados, mas é preciso ter cautela antes de falar em mudança estrutural. Sem garantia institucional, todo avanço é facilmente revertido.

Eis um exemplo simples, mas significativo: em 2013, quando escrevi minha primeira reportagem sobre mulheres no audiovisual, procurei a Ancine em busca de estatísticas. A assessoria de imprensa me informou que dados de gênero não eram coletados e me enviou a lista completa de longas-metragens nacionais lançados no circuito comercial. Com tal lista em mãos, eu mesma contei, um a um, quais filmes tinham sido dirigidos por mulheres e quais tinham sido dirigidos por homens.

Dois anos depois, com a entrada da produtora Débora Ivanov na diretoria da Ancine, os dados de gênero passaram a ser coletados e divulgados anualmente. A agência caminhava para estudos mais aprofundados, reunindo estatísticas sobre raça e sobre outros cargos que não a direção, essenciais para qualificar o debate e mapear políticas públicas. No entanto, a troca de governo e a saída de Ivanov da diretoria colegiada tornaram incerta a continuidade das pesquisas. No site da Ancine, o último relatório é de 2018. Ao escrever este texto, eu me vi de volta à situação de oito anos atrás: contando, eu mesma, os filmes dirigidos por mulheres entre todos os lançamentos de 2019.

Mesmo quando os estudos seguem e os números crescem, é preciso estar atento às nuances. Uma delas se refere aos gêneros cinematográficos, já que mulheres têm muito mais oportunidades em dramas e documentários do que em filmes de ação, terror e animação. Da mesma forma, as cineastas costumam trabalhar com menos recursos e orçamentos mais baixos. Em um seminário realizado em 2019 em Auckland, na Nova Zelândia, a pesquisadora americana Stacy L. Smith foi questionada sobre qual cenário, notícia ou situação indicaria que a igualdade se tornou realidade. Sua resposta foi a de que talvez não exista um número ou porcentagem ideal. “O que realmente importa é ter acesso ao capital”, disse ela. “E que os indivíduos tenham os recursos para contar a história que quiserem.”

É essa a ideia que servirá de guia desta coluna mensal: a de que mulheres devem ter as mesmas oportunidades e a mesma liberdade dos cineastas homens para realizar qualquer tipo de projeto. Combinando análises e entrevistas, espero fazer uma ponte entre as profissionais e o público, e mostrar como a produção das artistas brasileiras é forte e variada. Sejam bem-vindos!

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