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O colonialismo e a beleza do outro

Decolonização: o ato de virar o mundo de cabeça pra baixo. Confira o texto do colunista Alexandre Ribeiro

Publicado em 09/03/2020

Atualizado às 17:13 de 16/08/2022

Por Da Quebrada Pro Mundo com Alexandre Ribeiro

Decolonial. A consciência escura – ou clara, se você quiser – da narrativa construída pelos europeus. O consenso entre os colonizados contra a hegemonia dos países europeus e dos Estados Unidos em três setores: do poder, do ser e do saber. No atual momento, essa é uma das minhas palavras favoritas e mais importantes. Na coluna #DaQuebradaProMundo de hoje eu explico o porquê.

Decolonização: o ato de virar o mundo de cabeça pra baixo (imagem: Ilustração por Fobos92)

Estar morando na Alemanha me mostrou outro lado do colonialismo – "pera" aí que esse pano eu vou passar com lustra-móveis e tudo –, o lado do “colonizador”. E agora, sete meses vivendo em outro país, eu consigo entender um pouco mais dessa dificuldade de aceitar e entender o outro. De enxergar a beleza alheia. E o que se pode fazer para combater a colonização das mentes?

O colonialismo se perpetuou pelo mundo através da guerra de narrativa em três focos: o saber, o ser e o poder. O saber, ao negarem o conhecimento dos povos colonizados. O ser, quando transformaram as culturas e as vidas em sinônimos de inferior, demoníaco ou, na pior das hipóteses, produto. E o poder, esse que vai além do domínio político e econômico, mas também o domínio epistemológico – através da repressão, da escravização e da dizimação do não branco europeu.

Uma vírgula nos livros de história, porém a raiz do “ser brasileiro”. Segundo a organização Slave Voyages, a estimativa é que o número de escravos embarcados nos navios negreiros no mundo todo entre 1501 e 1866 seja de 12 milhões – destes, 5 milhões tiveram o destino final em terras brasileiras.

E não podemos deixar a história passar em branco. Você sabia que a Alemanha também teve colônias? Não? É por isso que a "amnésia colonial" deve ser combatida.

Durante o final do século XIX, o imperialismo cresceu até dar de encontro com a Primeira Guerra Mundial. E foi a principal ferramenta de fortificação das nações que hoje são consideradas “de primeiro mundo”. (A gente usa os recursos e a mão de obra deles e depois de anos a gente nega qualquer tipo de visto, ok? Somos muuuuito educados.)

Entre as colônias da Alemanha estavam Togo, Camarões, Namíbia, Tanzânia e três territórios que atualmente se encontram na Papua-Nova Guiné. Havia também alguns outros territórios, mas eu queria focar em contar um pouco do primeiro genocídio do século XX. O genocídio da Namíbia.

Entre 1904 e 1908, militares realizaram uma campanha de extermínio de duas etnias locais, os Herero e os Nama. De um total de cerca de 100 mil integrantes dos dois grupos, é estimado que pelo menos 80 mil homens, mulheres e crianças foram assassinados. Desses mortos, centenas de crânios das vítimas foram enviados à Alemanha para ser analisados em estudos sobre diferenças raciais. Essa pseudociência que buscava provar a superioridade dos brancos, lembra?

Em entrevista concedida à BBC Mundo, Reinhart Koessler, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de Freiburg e acadêmico especializado no passado colonial da Alemanha, disse: "Claro que não podemos falar de uma linha causal com o Holocausto. Mas, na minha opinião, essa mobilização de nacionalismo e a exposição pública das atrocidades combinaram para baixar o nível do que era aceitável em termos do que seres humanos podem fazer uns aos outros. De certa forma, contribuíram para o que ocorreu nas décadas seguintes e levou ao Holocausto".

Também em entrevista à BBC Mundo, o jornalista norte-americano Edwin Black, diz que “a matança na Namíbia ‘estabeleceu um padrão’ para o Holocausto”. Em um artigo recente, ele citou vários exemplos. Um deles é o caso de Eugen Fischer, médico nazista cujas pesquisas sobre diferenças raciais tiveram início na Namíbia. "A entrada do termo campo de concentração no vocabulário alemão teve início com o estabelecimento de campos para hererós", completou Black.

E como decolonizar pode ser uma luz para os dias de hoje?

Ter consciência dessa e de tantas outras atrocidades cometidas dá desânimo e desespero. Mas também existem pesquisadores que querem transformar essa consciência em algo novo. O conjunto de autores latino-americanos denominado pesquisadores da “modernidade/colonialidade” (MC) foi quem, no começo dos anos 2000, trouxe o termo decolonial para o debate.

Como o doutor Luiz Fernandes de Oliveira descreve no artigo "O que é uma educação decolonial?": “Decolonizar, significaria então, no campo da educação, uma práxis baseada numa insurgência educativa propositiva – portanto não somente denunciativa –, por isso o termo 'DE' e não 'DES' – onde o termo insurgir representa a criação e a construção de novas condições sociais, políticas e culturais e de pensamento. Em outros termos, a construção de uma noção e visão pedagógica que se projeta muito além dos processos de ensino e de transmissão de saber, uma pedagogia concebida como política cultural, envolvendo não apenas os espaços educativos formais, mas também as organizações dos movimentos sociais. DEcolonizar na educação é construir outras pedagogias além da hegemônica. DEScolonizar é apenas denunciar as amarras coloniais e não constituir outras formas de pensar e de produzir conhecimento”.

E é exatamente neste movimento que eu acredito e busco me concentrar: no movimento de construção a partir de uma consciência.

Não se trata de destruir os pensadores europeus, as correntes da história e da sociologia; é para além disso. É necessário conectar pensamentos, culturas, e sem forçar, valorizar o intercâmbio do ser e do saber de forma não hierarquizada, respeitando e dando lugar às diferenças. Em geral, enxergar-nos plenamente como latino-americanos. Como africanos. Como asiáticos. Que têm uma consciência plural e produzem um conhecimento híbrido e sério. Exatamente como Audrei Lorde, escritora maravilhosa e ativista, sabiamente disse: "Não são as nossas diferenças que nos dividem. O que nos divide é a incapacidade de reconhecer, aceitar e celebrar essas diferenças".

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