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“O vermelho é fúria de barriga vazia”: poética e política no pensamento de Haroldo de Campos

Análise da política no pensamento do poeta Haroldo de Campos

Publicado em 26/08/2019

Atualizado às 12:58 de 21/10/2021

por Diana Junkes


Para Haroldo de Campos, a política e a poética estão amalgamadas. Se a estética direciona seu olhar e suas preocupações, a política que dela não se separa também reivindica um posicionamento. Tal fato pode ser notado em “O Anjo Esquerdo da História”, poema sobre Eldorado dos Carajás, ou ainda em Forma de Fome – “o vermelho é fúria / de barriga vazia” –, e certamente também em Auto do Possesso ou “A Máquina do Mundo Repensada”. Não se trata apenas do tema dos poemas, das transcriações, mas de um modo de habitar, pela palavra, formas revolucionárias, para citar a máxima atribuída a Maiakóvski em Teoria da Poesia Concreta. A forma é política. Parafraseando o que Octavio Paz disse sobre o poema e o leitor, pode-se afirmar que não é à toa que o pesquisador encontre no objeto de estudo o que buscava, pois já estava nele. Talvez seja esse meu caso.

Veja também:
>>Material exclusivo sobre Haroldo de Campos no site do programa Ocupação

Ao longo dos últimos 16 anos, desde meu doutoramento sobre o poema “A Máquina do Mundo Repensada”, dedico-me à obra de Haroldo de Campos, com passagens por universidades como Yale e Illinois, na qualidade de professora visitante e estudiosa da obra do poeta. Como palestrante e/ou pesquisadora, já me apresentei nas universidades Jaquelônica de Cracóvia, Livre de Berlim, Nova de Lisboa, de Aveiro, de Bari, de Buenos Aires, de Playa Ancha, no Chile, de Augsburgo, na Alemanha, e na Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais, de Paris. Orientei e oriento iniciações científicas, mestrados e doutorados e venho realizando sistematicamente pesquisas no acervo do poeta, situado na Casa das Rosas, em São Paulo (SP). Desse modo, o respeito e a intimidade que tenho com sua obra são significativos e acabam por “enformar” uma visão de poesia, política e estética que orienta (e inquieta) minha prática docente e de crítica literária.

Haroldo de Campos (imagem: German Lorca)

Nos últimos dois anos, na medida em que minha pesquisa se desenvolvia, foi se tornando bastante evidente a relevância política na elaboração do conceito de pós-utopia por Haroldo, mencionado pela primeira vez em sua obra em 1979. Há bastante debate em torno dessa ideia pela fortuna crítica do poeta. De meu ponto de vista, a pós-utopia não é distópica; ao contrário, é a afirmação de um modo de conceber a história, o contexto e o alcance da poesia sem apagar a vanguarda, mas repropondo uma “pluralidade de poéticas possíveis”, “críticas do futuro e de seus paraísos sistemáticos”. Haroldo escreve, na década de 1980, ensaios vigorosos sobre literatura e cultura brasileiras e, de meu ponto de vista, a questão pós-utópica perpassa todos eles: Da Razão Antropofágica: Diálogo e Diferença na Cultura Brasileira (1980); O Sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira: o Caso Gregório de Matos (1989) e Poesia e Modernidade. Da Morte do Verso à Constelação: o Poema Pós-Utópico (1984).

É no período entre a anistia e a primeira eleição presidencial democrática no país após a ditadura militar que o poeta elabora suas reflexões mais profundas sobre a sociedade e a cultura brasileiras, de um ponto de vista que é o de escritor latino-americano. Portanto, é seguro dizer que o período a partir de meados dos anos de 1970 até 1990, quando se publicaram também, entre outros, A Educação dos Cinco Sentidos e Galáxias, foi dos mais criativos para Haroldo, em termos de poesia e tradução, e produtivo em termos teórico-críticos, incluindo-se a ampla revisão de autores “esquecidos” pelo cânone da literatura brasileira. A meu ver, em todos os casos, a pós-utopia é articuladora de sentidos, seja como conceito, seja como dispositivo de leitura.

A atitude política de Haroldo e sua defesa de uma “utopia concreta” possível fica evidente nesta entrevista que concede ao poeta Ademir Assunção em 1996: “Bom, ou você é pessimista radical [...] basta olhar para as elites brasileiras que não querem ceder nenhum pedaço de pão, ou você tem uma visão informada por aquilo que é chamado de ‘utopia concreta’. [...] A cultura, a tolerância, nascem em um ambiente dialógico. Onde existe monologia, fundamentalismo, há ditadura, opressão”.

A “utopia concreta” nada mais é do que a pós-utopia, e está pautada no modo como se dá, para Haroldo, uma poética da ação, em que o “princípio-realidade” se sobrepõe ao princípio-esperança. Contra a clausura em sua própria língua e país, Haroldo de Campos volta-se para o múltiplo, valorizando duas operações tradutórias: a da poesia/crítica e a da vida em si, que se dá a ver em sua ampla correspondência. Não creio ser precipitado afirmar que o constelar diálogo com pensadores como Jacques Derrida, Roger Bastide, Paul Zumthor, Max Bense, Roman Jakobson, Octavio Paz, Julio Cortázar, Cabrera Infante, Murilo Mendes e muitos outros conferiu matizes singulares à obra e ao pensamento haroldianos e o engajou, pela linguagem e pela “outridade”, em uma concepção caleidoscópica do mundo, marcada por um posicionamento à esquerda, política e afetivamente, como escreveu em “Ode (Explícita) em Defesa da Poesia no Dia de São Lukács”:

dizem que estás à direita

mas marx (le jeune)

leitor de Homero dante goethe

enamorado da gretchen do fausto

sabia que teu lugar é à esquerda

o louco lugar alienado

do coração

Em tempos de extremismos, e no ano em que o poeta celebraria 90 anos, parece-me oportuno reiterar sua ideia de que o poema nasce dos escolhos do naufrágio. Ou seja, a política do poema implica uma revisão da ruína, um renascer das cinzas. Talvez, para a vida pública do cidadão na desmesurada pólis contemporânea, assaltada pelo medo e pelo espanto, valha o mesmo: há de sobrar escolhos neste naufrágio que nos atravessa, e deles faremos poemas “no louco lugar alienado do coração”, pós-utópicos, plurais, diante das cidades possíveis, polifônicas, marcadas pelo trânsito cultural e pela tolerância, como quereria o imenso Haroldo.

 

Diana Junkes é professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Dedica-se ao estudo da poesia brasileira contemporânea, particularmente da obra de Haroldo de Campos. É autora de As Razões da Máquina Antropofágica: Poesia e Sincronia em Haroldo de Campos (Ed. Unesp), Clowns Cronópios Silêncios (Ed. Urutau), Sol Quando Agora (Ed. Urutau) e Asas Plumas Macramê (Ed. Laranja Original).

 

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