Breve percurso histórico: o filme e vídeo de artista

no Brasil a partir da coleção do Itaú Cultural

Roberto Moreira S. Cruz, curador da mostra Filmes e vídeos de artistas na coleção Itaú Cultural escreve sobre o percurso desta arte no país a partir da coleção de filmes e vídeos do Itaú Cultural. A produção de filmes e vídeos no Brasil começou a ser realizada por artistas e com proposta experimental, em consonância com a criação contemporânea internacional, nos anos 1970. Apenas duas décadas depois, em meados dos anos 1990, parte dessa produção passou a ser reconhecida, com a inserção de obras audiovisuais no ambiente da arte contemporânea e com a presença marcante de artistas que trabalham com audiovisual em galerias e exposições de amplitude internacional.

A produção de filmes e vídeos no Brasil, realizada por artistas e com proposta experimental, se inicia em consonância com a criação contemporânea internacional, nos anos 1970. Esta fase primeira, de descobertas e tentativas de forjar um modo criativo para o audiovisual, foi tortuosa e, de certa forma, marginal, pois não existia um mercado para dar visibilidade aos trabalhos e o cenário cultural estava submetido à censura da liberdade de expressão, imposta pelo regime militar. Os filmes e vídeos mais originais e inventivos, realizados neste contexto, permaneceram durante muito tempo desconhecidos do público e praticamente abandonados nas gavetas dos estúdios e ateliês dos artistas.

 

Apenas duas décadas depois, em meados dos anos 1990, parte dessa produção passou a ser reconhecida, com a inserção de obras audiovisuais no ambiente da arte contemporânea e com a presença marcante de artistas que trabalham com audiovisual em galerias e exposições de amplitude internacional.

 

A coleção de filmes e vídeos do Itaú Cultural é uma contribuição pioneira por parte de uma instituição cultural, pois formaliza por meio da aquisição, conservação e restauração a constituição de um acervo permanente de obras audiovisuais produzidas no país nas últimas cinco décadas.

 

Alguns aspectos motivaram a formação desta coleção e valem ser destacados. O primeiro, talvez o mais fundamental, é o resgate da importância da produção pioneira, trazendo ao olhar contemporâneo a força inventiva dessas imagens. Remasterizando e recuperando filmes e vídeos de artistas como Rubens Gerchman, Nelson Leirner, Letícia Parente, Regina Silveira, Paulo Bruscky e Rafael França, a coleção conserva obras passíveis de deterioração, pela própria obsolescência da tecnologia. Por estes aspectos, a coleção pode ser compreendida como um acervo audiovisual, pois acredita na preservação de bens culturais, constituindo-se nesse sentido em patrimônio histórico inestimável.

 

O segundo aspecto aproxima a coleção das novas gerações de artistas que trabalham com o audiovisual e que criam por meio deste instrumental de sons e imagens linguagens muito específicas. Vale destacar os trabalhos de Eder Santos, Brígida Baltar, Thiago Rocha Pitta, Cao Guimarães, Luiz Roque, Rivane Neuenschwander, Letícia Ramos, Gisela Motta e Leandro Lima por apresentarem, nas criações, modos muito originais de se trabalhar a imagem em movimento.

 

Primeiros Passos

Não é possível compreender o desenvolvimento do cinema e do vídeo como uma forma de expressão artística se esta análise não levar em conta as artes visuais nos anos 1960 e 1970. Quando alguns artistas emergentes começaram a migrar para outros domínios estéticos, como a performance e a arte conceitual, o audiovisual surgiu como um veículo com o qual se poderia produzir uma estética original.

 

Essas produções não eclodiram em um ambiente asséptico, imune aos efeitos da estética das outras artes, como a escultura, a música, a dança e o teatro. As produções, naturalmente, se entrecruzaram, apropriando-se dos elementos destas linguagens e transformando-os em uma rica e sugestiva iconografia de gêneros e estilos.

 

Nessa fase pioneira no Brasil, final da década de 1960 até os anos da redemocratização, início da década de 1980, vivia-se um momento de afirmação da cultura nacional contemporânea e da necessidade de identificação com as correntes artísticas internacionais. Vitimado pelo domínio de uma doutrina política de restrições e de pouca liberdade de expressão, o artista divagava entre a herança do neoconcretismo, as tendências da nova objetividade brasileira e o interesse pelos novos suportes. Como ressalta Daisy Peccinini, “uma nova sensibilidade ia se definindo marcada por estes fatos [...], em coerência com a oposição e marginalidade assumida por vários artistas”.

 

Em 1965, o lançamento pela Sony no mercado americano do Portapak (Electronic Video Tape Recorder), primeiro equipamento de vídeo portátil que permitia gravar e reproduzir imagens eletrônicas, foi a evidência inicial de uma relação entre tecnologia e experimentação no desenvolvimento da imagem em movimento. Interessados nas possibilidades deste novo meio – como a facilidade e a rapidez de operação do equipamento e o imediatismo no processo de síntese da imagem –, os artistas passaram a utilizar o vídeo como uma ferramenta que incorporava elementos multimídia, como o local em que a intervenção era realizada, a duração temporal e o próprio corpo, que passava a ser evocado também como agente do processo de criação e reflexão.

 

No Brasil, o Portapak chega nos primeiros anos da década de 1970 e logo passa a interessar nomes como Letícia Parente, Regina Silveira e Anna Bella Geiger. As obras destas artistas que integram a coleção fazem parte deste contexto e apresentam aspectos singulares e característicos das produções do período.

 

As Obras da Coleção

1. Os pioneiros

Marca Registrada (1974), de Letícia Parente, é um marco na videografia brasileira. O impacto da obra não está exclusivamente na contundência do gesto da artista, que costura made in Brasil na sola do próprio pé. O que soa como autoflagelação é um ato político, elegendo o corpo como instrumento derradeiro de uma manifestação de afirmação cultural e de identificação da cidadania. A singularidade da obra evoca a capacidade transformadora da arte em um momento em que a liberdade de expressão estava comprometida pela censura e reprimida pela ditadura militar que governava o país.

 

A Arte de Desenhar (1980), de Regina Silveira, também investiga a possibilidade de transformar o corpo em um instrumento de linguagem. No caso, as mãos da artista executam gestos programados, tentando reproduzir a posição e o contorno desenhado da silhueta de outra mão. Uma espécie de pedagogia da forma e do conceito, em um jogo de certo e errado em busca da mimese perfeita. No vídeo, a melhor tentativa é reconhecida por uma salva de palmas, reforçando a escolha ideal daquilo que se quer representar.

 

Estas duas obras caracterizam um aspecto muito presente nas criações desse período. O dispositivo básico dessas primeiras produções consistia quase que exclusivamente no confronto entre a câmera e o artista. Não são trabalhos que exploram propriamente uma narrativa mais definida, que se apoie nos recursos da montagem e da passagem de tempo – estes recursos técnicos eram praticamente inviáveis de ser realizados no Portapak em razão da impossibilidade de editar as imagens. Mesmo assim, é evidente uma intertextualidade entre o gesto propositivo das artistas e o dispositivo da câmera e do monitor de TV, que servia como uma referência espacial de sistematização do enquadramento da performance.

 

É o que se nota também em Passagens #1 (1974), de Anna Bella Geiger, em que a artista circula por vários ambientes repetindo a atitude de subir escadas. Curiosamente, sua identidade nunca é revelada, sendo gravada sempre de costas. Anna Bella Geiger lida com passagens de tempo, mudança de espaços cênicos – várias escadas são mostradas – mas, ao contrário, a proposição cria uma sequência por estar executando sempre o mesmo movimento de subir os degraus, em uma continuidade que nega a ação e o transcorrer próprios da linearidade narrativa com princípio, meio e fim.

 

Dois filmes antológicos, produzidos no Brasil na década de 1970, estão na coleção. Triunfo Hermético (1972), de Rubens Gerchman, é a melhor experiência cinematográfica realizada pelo artista, transpondo para esta linguagem seus poemas tridimensionais. No filme, as palavras recortadas em grandes dimensões e em suportes variados estão expostas ao ar livre, criando uma sobreposição de significados entre o signo e os elementos da natureza (água, terra, fogo e ar). De retorno ao Brasil após viver por seis anos em Nova York, Gerchman foi um dos mais expressivos representantes da arte pop e da arte conceitual no país, tendo ainda realizado mais dois filmes em super-8.

 

O outro filme é Homenagem a Steinberg – Variações sobre um Tema de Steinberg: as Máscaras Nº 1 (1975), de Nelson Leirner. Filmado e montado em super-8, formato frequentemente utilizado naquela época pelos interessados em experimentar com os meios audiovisuais, o artista utiliza a mesma ironia e narrativa nonsense que propõe em seu trabalho de objetos e instalações. Na obra, todos os personagens vestem sacos de papel na cabeça e se comportam caricaturalmente na rotina dos afazeres diários. Adquirida para a coleção em 2013, a película permaneceu guardada na geladeira do ateliê de Leirner. Uma forma muita adequada de preservação intuída por ele, já que o material era raramente exibido publicamente e jamais havia sido adquirido para uma coleção privada ou institucional. A inclusão desta obra na coleção permitiu realizar procedimentos de limpeza e remasterização para o formato digital, contribuindo assim para sua conservação.

 

Artista de linhagem peculiar na produção contemporânea brasileira, por apresentar em sua trajetória um repertório muito vasto e diversificado de propostas, Paulo Bruscky realizou um conjunto de filmes e vídeos entre meados da década de 1970 e no decorrer da de 1980. Como ele próprio afirma, estes trabalhos eram experiências que analisavam a diferença entre a linguagem do vídeo e a do cinema, principalmente naquela época em que a questão da velocidade/mo(vi)mento era diferente/fundamental.

 

Registros (Meu Cérebro Desenha Assim), de 1979, e Xeroperformance (Xerofilme), de 1980, evidenciam a relação corpo-máquina, muito explorada por Bruscky no período mais conceitualista de sua trajetória. Tanto no primeiro, produzido em vídeo, quanto no segundo, feito em super-8, Bruscky procura estabelecer uma intersecção entre a ação do ato performático e o dispositivo de produção audiovisual. Formalmente são obras com características bem distintas, mas que guardam similaridade na proposição e elaboração conceitual da imagem.

 

2. Um artista de transição

O vídeo tornou-se uma linguagem hegemônica mais evidente a partir da década de 1980. Foi nessa época que emergiu uma geração de videomakers propondo a utilização do meio como instrumento de invenção, transformando o aparato e o suporte televisivo em elemento de expressão. Muitas dessas obras passam a utilizar em sua composição cenográfica o aparelho de TV (monitores tradicionais de tubo de raios catódicos), os equipamentos de captação e reprodução da imagem (câmeras de vídeo e players VHS, U-matic e posteriormente Betacam) e os projetores de vídeo (o modelo mais utilizado era o de três tubos da Sony, CRT VPH 1000).

 

Artista que representa o momento de transição entre as experiências pioneiras do vídeo no Brasil e a segunda geração que emerge nos anos 1980, Rafael França encontrou na linguagem do vídeo aspectos estruturais de representação da realidade, explorando a edição e a temporalidade da imagem como elementos expressivos. Realizando um mestrado na Escola de Artes do Instituto de Chicago, França teve a oportunidade de vivenciar o momento de efervescência das artes do vídeo americana, quando teve acesso a laboratórios voltados para a experimentação artística com equipamentos pouco acessíveis no Brasil.

 

A obra de Rafael França que integra a coleção é After a Deep Sleep (Getting Out), de 1985, período de residência nos Estados Unidos. Neste trabalho, o artista explora aspectos da narrativa, experimentando desconstruir o tempo da representação naturalista a partir de um exercício de edição e corte descontínuo. Uma obra que demonstra o rigor formal da sua linguagem e a busca de um modo de operação do código da imagem, algo muito próprio e peculiar do seu trabalho, em uma época em que o desenvolvimento da tecnologia do vídeo implicava certamente constantes reinvenções da linguagem.

 

3. Cinema de exposição

Nas duas últimas décadas, o cinema e a experiência do cinema têm estado cada vez mais presentes nas principais exposições internacionais de arte. As bienais de Veneza de 1999 e 2001 e a

Documenta de Kassel XI, em 2002, por exemplo, apresentaram um grande número de artistas que trabalhavam com a linguagem audiovisual. De lá para cá, museus e centros culturais como a Tate Modern, Smithsonian, Pompidou, Hamburger Bahnhof e Whitney Museum, para citar somente os mais proeminentes, realizaram importantes exposições coletivas tendo como tema central o cinema e suas relações intrínsecas com a produção artística contemporânea. Muitas destas obras trazem referências explícitas ao cinema, por meio de releituras ou da utilização de trechos de filmes. Outras elaboram narrativas audiovisuais baseadas nos códigos da linguagem do cinema e apresentam estas imagens e estes sons em ambientes específicos para projeções com uma ou mais telas. Algumas destacam o suporte técnico de exibição das imagens (projetores, computadores etc.). Outras exigem contemplação e empenho por parte do espectador, não mais inerte em uma poltrona.

 

Atenta a esta tendência, a seleção de trabalhos que fazem parte da coleção do Itaú Cultural apresenta uma importante antologia de obras contemporâneas inseridas neste contexto dos filmes e vídeos de artistas.

 

Quando iniciou a carreira na década de 1980, Eder Santos buscava explorar as imperfeições e ruídos do vídeo, criando camadas e sobreposições, trabalhando os aspectos pictóricos e instáveis da imagem eletrônica. Integra a coleção uma videoescultura desenvolvida a partir da projeção de imagens em uma antiga cristaleira. Em Memória (2001), o espectador observa o efeito onírico e poético criado na superfície dos objetos, sobrepondo à materialidade do vidro e da porcelana imagens projetadas destes mesmos objetos. As sensações de desmaterialização e instabilidade provocadas por esses recursos evocam a subjetividade das lembranças e memórias que a história da vida reserva a cada um de nós.

 

Este aspecto intangível da memória também está em Cinema (2009), uma das obras mais recentes do artista. As imagens registradas por André Hallack de uma cidade do interior de Minas são apropriadas para a experimentação visual proposta por Santos. Os aspectos documentais das imagens, que mostram situações prosaicas do ambiente interiorano, são subvertidas pela edição e interferência das muitas sobreposições e alterações do tempo de duração da imagem. Esta reconfiguração do visto pelas lentes da câmera pela incursão digital na pós-produção da imagem faz emergir a força poética da narrativa, transcendendo o naturalismo e enfatizando o impressionismo e a subjetividade da operação com a matéria do cinema, que é a própria imagem em movimento.

 

Durante a montagem de uma de suas exposições, Cao Guimarães deteve a câmera no momento em que o pintor dava o acabamento no ambiente da instalação. Certamente o artista deve ter visto esta mesma cena em dezenas de outras montagens de seu trabalho: a pintura da parede de branco para compor o espaço da projeção como uma tela. Este exercício de observação, que sempre está no procedimento artístico e narrativo de seus trabalhos, aqui em El Pintor Tira el Cine a la Basura (2008) é a chave metalinguística para refletir sobre o próprio trabalho e, de certa forma, criar uma visão melancólica e reflexiva sobre o cinema e a imagem como mercadoria.

 

Em um certo momento da montagem da instalação, vemos o pintor retirar o tecido que cobre a parede e que servia para demarcar a área da pintura. Surpreendentemente, o gesto leva consigo a imagem de outra obra de Guimarães que estava ali sendo projetada, a do vídeo Da Janela do Meu Quarto (2004), um de seus trabalhos mais consagrados. Na poética do artista, a imagem se materializa em uma película manipulável, orgânica. É retirada pelo pintor, amassada e atirada na lata do lixo. O truque de edição que permite essa consubstanciação da imagem de vídeo em matéria, feita de forma delicada e imperceptível ao espectador, sintetiza neste fragmento a dimensão plástica da imagem exercendo peso e transformando a realidade pela sua potencialidade estética.

 

A cena é o papagaio se alimentado de sementes grafadas com sinais gráficos da língua portuguesa: vírgulas, pontos e vírgulas, reticências etc. O áudio é a narração de um jogo de futebol da Seleção Brasileira. À medida que o papagaio vai se alimentando, altera o ritmo da locução do narrador. Engasga, gagueja. Uma relação interessante entre estes aspectos simbólicos, típicos de uma situação e de uma paisagem brasileira: o som do radinho de pilha, com o futebol em uma tarde de domingo; a figura do papagaio, talvez a ave de estimação mais identificada com o Brasil. Este imaginário verde-amarelo, presente em Domingo (2010), de Rivane Neuenschwander e Sergio Neuenschwander, representado na referência direta ao papagaio e ao futebol, é subvertido pela construção de uma narrativa incoerente, não correspondendo a uma ação de causa e efeito daquilo que se espera da representação do real. O aspecto lúdico de descoberta desta artimanha amplia o naturalismo das imagens, deslocando-as para a dimensão do ambíguo e autorreflexivo na proposta dos artistas. Ao espectador cabe perceber o truque e se deixar levar por esse realismo fantástico e desautomatizador.

 

Esta ampliação e distensão dos significados também ocorre em Planeta Fóssil (2009), de Thiago Rocha Pitta. Os aspectos descritivos de fenômenos da natureza, a terra, o fogo, a água, são exibidos detalhadamente em imagens que solicitam um espectador que aceite um prolongamento da experiência do olhar, buscando se integrar ao tempo próprio da narrativa. Esta distensão apaga qualquer motivação espetacular, propondo uma representação direta de um instante da realidade, aparentemente simplificado de sentido dramático, ou buscando reinterpretá-la por meio de sua essência poética. Imagens que esperam um olhar atento que contribua para a compreensão da densidade do sentido do filme, aproximando o espectador da proposta do artista, compartilhando a identificação pelo que a imagem traz em sua sensibilidade documental ou em seu apuro estético.

 

Realizado a partir de uma visita à aldeia ianomâmi Watoriki, em Roraima, Amoahiki (2008), de Gisela Motta e Leandro Lima, apresenta uma visão onírica sobre a floresta e seus habitantes. À imagem da floresta, verde e densa, sobrepõe-se de maneira quase imperceptível a figura dos habitantes da floresta, em danças e rituais xamânicos. Amoahiki significa árvore que emite cantos. Projetada sobre uma tela feita de retalhos de tecido branco, suspensa no espaço e sob o efeito de uma leve brisa que sopra um ventilador, o espectador vê ressaltado na rugosidade da superfície da imagem os elementos representados da floresta e dos índios.

 

A videoinstalação Projeção 0 e 1 (2012), de Luiz Roque, cria um espaço de projeção entre duas telas, montadas uma defronte da outra. Esta configuração estabelece um ambiente de circulação pelo qual o espectador deve passar para perceber o jogo ilusionista que a imagem propõe. A paisagem do pôr do sol é repentinamente alterada por uma bola que é lançada sobre uma superfície translúcida que se estilhaça. Esse fenômeno metafísico altera o status naturalista da paisagem, transformando-a em um simulacro, representado na imagem de vídeo projetada e na superfície do vidro em fragmentos. É irresistível uma analogia com uma pintura de René Magritte em que vemos a paisagem, a janela e a pintura desta mesma cena. A representação não é menos real, mas essencialmente diversa da coisa representada.

 

4. Dispositivos e videoperformance

O cinema foi criado com base no exercício dos pioneiros que, durante todo o século XIX, buscaram meios de produzir ou representar a impressão de movimento. Zootrópio, praxinoscópio, cinetoscópio e cinematógrafo são apenas alguns dos muitos aparelhos criados com esse intuito. Mais de um século depois, essa mesma curiosidade estimula a criação de objetos e dispositivos cinéticos que, de forma quase paródica, remetem àqueles primitivos maquinários da época do pré-cinema.

 

Esta comparação é inevitável ao observarmos o trabalho de Letícia Ramos e seu ofício de criar dispositivos audiovisuais. O processo de criação passa pelo desenvolvimento técnico-científico de produção de imagens e dispositivos de projeção que ampliam e recriam a experiência de ver estas imagens. Ela está presente nesta exposição com a videoescultura MAR (2008), composta de uma estrutura de madeira, projetor e som.

 

Mas por que, em uma época tão marcada pelo desenvolvimento vertiginoso das tecnologias da informação e da imagem digital, Letícia se interessa por reinventar a experiência cinemática? Talvez uma resposta provável seja a necessidade de se deslocar deste paradigma hegemônico da tecnologia, desta aparente simplificação do modo de produzir o movimento, de certa forma banalizado na atualidade em razão de tantos meios existentes para produzi-las. A obra de Letícia é como uma metáfora poética da importância que o cinema adquiriu em nossa cultura. Seus vídeos, suas esculturas e seus dispositivos de gravação e filmagem são como uma evidência concreta do que ainda há de sublime na experiência de se produzir e visualizar uma imagem em movimento.

 

Alberto Bitar, tendo a fotografia como matéria-prima de seu trabalho, busca, por meio da apropriação de uma imagem preexistente, recriar a significação do que está dado como visto. Utiliza o dispositivo do vídeo como uma ferramenta de ressignificação da fotografia, projetando sobre ela a dinâmica do movimento, desvendando outros estratos de decodificação para a imagem estática. A matriz de seu vídeo Partida (2005) é a fotografia de um grupo de pessoas reunidas em uma estação de trem na cidade do Rio de Janeiro. Uma foto doméstica, escolhida de um antigo álbum de fotos de sua avó materna. Sobre essa imagem prosaica – tão semelhante a tantas outras imagens de família e carregada, portanto, de uma subjetividade afetiva – Alberto Bitar direciona o olhar do espectador, conduzindo-o numa redescoberta daqueles personagens, circunscritos pela dimensão do enquadramento e capturados no instante de uma realidade que não existe mais. O artista investe sobre essa imagem documental, estática, uma implacável temporalidade, sobrepondo e fragmentando a unidade da fotografia em uma múltipla percepção de sua historicidade.

 

É forçoso estabelecer uma relação conceitual entre as muitas formas de experimentação da videoperformance contemporânea com os pioneiros no contexto de descobertas da linguagem ainda nas décadas de 1960 e 1970. Brígida Baltar e Sara Ramo, duas artistas que estão presentes na coleção, atualizam as muitas possibilidades de uso do vídeo como instrumento de criação de performances.

 

A série Coletas (1998-2005), composta de oito filmes de curta duração, é elaborada a partir de uma situação ficcional criada por Brígida Baltar em que as personagens se põem a coletar neblina, gotas de orvalho e a maresia. O gesto corriqueiro se torna uma ação surreal por, a princípio, tratar-se de um paradoxo. É possível encerrar em um frasco algo imaterial? Não é difícil estabelecer relações com 50 cc of Paris Air (1919), a obra iconoclasta de Duchamp, na qual o artista guardava em um recipiente de vidro o ar de Paris. No caso de Brígida, a relação do corpo e a natureza sugere um campo metafórico menos idealista e mais holístico. Mas a índole conceitual e propositiva, tal qual Duchamp, sem dúvida está presente.

 

O humor e o nonsense, por sua vez, nitidamente fazem parte do repertório de Sara Ramo. Atuando em primeira pessoa em suas performances, a artista cria situações inusitadas — como dançar com um boneco de papelão, se banhar entre dezenas de bacias ou desarrumar uma cozinha — ao longo de narrativas em pequenas histórias de transcorrer e final surpreendentes. É o caso de Translado (2008), em que Sara Ramo retira de uma mala um número incalculável de objetos até preencher todo o espaço de um quarto. Ao final, ela própria desaparece ao entrar naquela caixa mágica, que guarda certa semelhança poética com a toca do coelho de Alice no País das Maravilhas.

 

O conjunto destes trabalhos revela a relevância da produção brasileira contemporânea de filmes e vídeos de artistas. Estas obras não são expressamente cinematográficas e muitas delas podem parecer estranhas aos olhos de um espectador menos comprometido. Nelas, o tempo da projeção pode ser indeterminado, o filme pode não ter princípio, meio e fim, mas em todas, indelevelmente, o que prevalece é o cinema em sua totalidade de significados.

 

Roberto Moreira S. Cruz

Curador

 

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