ROTEIRO SEM FILME

Ruminando

A Hora dos Ruminantes é para mim um dos maiores filmes da cinematografia brasileira. Não apenas isso, é muito mais. É um daqueles filmes que transformam. Está entre os dez que mais me marcaram. A intrigante história que parte do romance de José J. Veiga ganha materialidade alucinatória e perturbadora nas mãos de Luiz Sergio Person. É uma obra, monumento, que se apossou de meu imaginário como uma lembrança ancestral. Uma noite de febre e pesadelos. É o ápice da genialidade de Person. Ele, que já havia me assombrado outras vezes, especialmente em O Caso dos Irmãos Naves, agora me provoca aquilo que deve ser experimentado na hora da morte. O momento em que o ceticismo dá lugar à possibilidade da transcendência mística. O momento em que podemos vislumbrar a essência do Mal no social, no que parece corriqueiro.

 

É impressionante a transliteração que Person e Jean-Claude Bernardet fizeram do livro ao roteiro. Embora saibamos que o roteiro é apenas o mapa, já estava quase tudo ali. O que não estava se fez tempo em imagem. Desde a onírica cena de abertura – quando, de forma mágica, a câmera sobrevoa e revela aos poucos a geografia mítica da alegórica Manarairema, pairando sobre a ponte e suavemente mergulhando na campina até se aproximar do casario e invadi-lo por uma janela fechada, sequência digna de Orson Welles, desvendando a cidade no claro-escuro cortante da fotografia granulada de Dib Lutfi – até o enigmático garrancho final – o ponto de interrogação que um dos personagens desenha antes de, encarando o espectador, sair de cena.

 

Homem ou ruminante?

A tarde cai e no lusco-fusco avistamos os primeiros vultos dos estranhos que se avizinham. João Ninguém (Geraldo Del Rey) conversa com dois outros sobre a ponte. Ainda que em silhuetas borradas, logo de pronto vemos os homens que chegaram à cidade e iniciam sua misteriosa construção.

 

O contato inicial entre os habitantes de Manarairema e os forasteiros, porém, se dá após 15 minutos de filme. Uma cartela o anuncia: “Primeiro encontro – de como o vigário e seu assistente conhecem os homens”. São os representantes da igreja – padre Prudente e seu auxiliar, Balduíno – que primeiro se deparam com os “alienígenas” – acompanhados, nesse momento, por um cão. E o que dizer de padre Prudente? Que melhor nome teria? Afinal, não é a igreja parceira ou cúmplice das inquisições e dos holocaustos? Não é na igreja que são comungados os praticantes dessas atrocidades? Essa máxima parece esculpida no rosto que Jofre Soares empresta ao clérigo.

 

Quando Balduíno (Ricardo Blat) encara o homem estranho, como esse homem retribui o olhar? Com uma careta – mostrando a língua numa careta. Quando o povo corre às autoridades, pedindo socorro ao delegado, ao prefeito e ao juiz, ninguém o socorre. Ninguém o orienta. Os poderes se mostram muito mais fracos e perdidos do que o povo humilde da pequena Manarairema. Mais adiante no filme um bando de cães toma as ruas e a igreja e as casas. Os cães tomam a cidade. E o que se faz? O que fazem as autoridades? Nada. Esperam que os animais se acalmem e façam o que quiserem até decidirem partir. Como já foi dito, o inferno é o lugar onde não se diferencia o homem do animal. Como o próprio cartaz do filme já adianta: “Você é homem ou ruminante?”.

Sólido demais

O segundo encontro ocorre quando um dos homens estranhos tenta comprar a carroça de Geminiano (Grande Otelo), coagindo-o. “Um homem é um homem.” Geminiano pensa em reagir, mas o padre o acalma, e então o carroceiro se faz escravo da força secreta que corrompe a cada um dos personagens. E um grupo festeja em trajes folclóricos enquanto ele leva outra carga de areia para a entrada do terceiro capítulo: “Um homem comerciante é mais homem”. Aqui quem se destaca é Lima Duarte, o dono da venda e valentão Amâncio – o primeiro a se associar ao grupo forasteiro, do qual se torna uma espécie de porta-voz. O primeiro a compactuar.

 

Aí o próximo capítulo: “Um homem, não se sabe o que é, apenas para que serve”. Como todos, justifica o nome. É nesse ponto da narrativa que os cães invadem a cidade. Que Geminiano quase desfalece de desilusão e fraqueza. A mulher que reage à janela é Myriam Muniz. Aliás, o elenco do filme é brilhante – o delegado é Wilson Grey; Walmor Chagas interpreta o prefeito; e José Lewgoy, o juiz. E vemos as mãos de Person: por vezes agem feito as de um titereiro, comandando atuações naturalistas. Tudo é tão verdadeiro, mergulho profundo que reforça o suspense da trama e gera um clima de terror psicológico sufocante. São cenas inesquecíveis as dos cães tomando a cidade. O que dizer do velho que tira a comida da boca e a entrega ao vira-lata que rosna com o focinho colado em sua cara? E cada vez mais nos perguntamos: quem são esses que vestem uniforme e comandam as bestas? E por que todos se rendem a seu poder? O que constroem do outro lado da ponte? Como corrompem cada um dos que com eles vão ter? Seja o que for, pouco a pouco todos se dobram. Seja lá o que for que constroem, é sólido. Sólido demais.

 

Nossa esperança segue com o carpinteiro Florêncio (Leonardo Villar), mas ninguém pode com os forasteiros. Por fim nos resta aquele que julgamos ser o nosso herói, o ferreiro Apolinário (Othon Bastos); Sebastiana, sua esposa, é interpretada por Eva Wilma. Talvez nossa última chance. Aquele que é livre e desprendido. Mas ele também se dobra. Os bois tomam a cena. É o golpe final.

 

Pelo roteiro, o filme teria uma hora e 20 minutos de duração, mas na montagem final, feita como se fosse a punhal, em cortes secos, a obra ganha uma hora a mais – em imagens contemplativas, na mais pura afiguração do expressionismo alemão, acompanhadas da trilha narrativa, que a princípio seria feita à moda de viola, mas foi substituída pela rabeca e pelo canto irônico e aflito de Zé Coco do Riachão.

 

A Hora dos Ruminantes não é um filme para assistir – esse filme é preciso encarar.

 

Lourenço Mutarelli é escritor, desenhista, roteirista e ator. Publicou, entre outros títulos, a HQ Quando Meu Pai se Encontrou com o ET Fazia um Dia Quente (2011) e os romances O Cheiro do Ralo (2002), O Natimorto (2004), A Arte de Produzir Efeito sem Causa (2008) – os três adaptados para o cinema – e O Grifo de Abdera (2015). Mutarelli produziu esta “crítica” para a publicação da Ocupação Person com base no roteiro A Hora dos Ruminantes, escrito pelo cineasta e Jean-Claude Bernardet. O filme nunca foi realizado.

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