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Variações sobre tema algum

Existe uma forma musical denominada tema e variações, que passou a ser usada como metáfora do trabalho artístico em geral. Nela, o compositor apresenta uma série de variantes para uma mesma base melódica, rítmica ou harmônica – há, portanto, uma lógica que determina o desenrolar da composição. Mas o que aconteceria se um artista abolisse o tema, ficasse apenas com as variações e fizesse disso a sua obra? Assim poderia ser definida a produção de Luiz Sergio Person – no cinema, na televisão, na publicidade e no teatro.

 

De fato, ele propôs variações em torno de tema algum, ou de todos os temas ao mesmo tempo: variações sobre a criatividade, sobre a busca de ideias inovadoras, sobre a inquietação que não lhe permitiu ser fiel a uma área de expressão, a um gênero ou a um movimento estético.

 

A condição de percurso efêmero e inacabado que caracteriza a trajetória do artista pode ser atribuída ao fato de ele ter morrido abruptamente aos 39 anos, quando seu carro bateu de frente com um ônibus na Rodovia Régis Bittencourt, em São Paulo, no dia 7 de janeiro de 1976. A morte interrompeu as ideias, os projetos e os sonhos de um homem no ápice de sua carreira – e abriu espaço para que a posteridade especulasse sobre o que teria sido o seu legado definitivo. Os pedaços de uma utopia artística ganham sentido com o fim trágico de quem a concebeu e lhe dão grandeza na medida em que reservam a cada um de nós a tarefa de completá-la a partir do ponto em que foi interrompida – em meados dos “anos de chumbo”, quando o totalitarismo assombrava a vida cotidiana no Brasil e tudo ainda estava para acontecer no sentido de exorcizar o país de suas desgraças de então.

 

Poderosos, sensíveis e ofuscantes

O nome de Person se fixou nos anais do cinema brasileiro graças a dois longas-metragens que ele roteirizou e dirigiu nos anos 1960: São Paulo Sociedade Anônima (1965) e O Caso dos Irmãos Naves (1967).

 

O primeiro aborda, a partir de um drama pessoal, o surto de industrialização e crescimento urbano que tomou a capital paulista na virada da década de 1950 para a de 1960. Carlos (Walmor Chagas), o protagonista, galga postos numa empresa de autopeças e sofre um processo de padronização espiritual enquanto lida com dilemas morais, dividido entre o amor doméstico de Luciana (Eva Wilma) e a sedução do sexo, encarnada em Ana (Darlene Glória).

 

O segundo longa, por sua vez, narra o caso real de dois irmãos que, nos anos 1930, foram injustamente acusados de um crime pela polícia corrupta da cidade de Araguari, no interior mineiro. As cenas em que Joaquim (Raul Cortez) e Sebastião Naves (Juca de Oliveira) são torturados pelos oficiais ainda perturbam, sobretudo porque dramatizam uma prática comum até hoje nos momentos de confronto político e cultural.

 

Poderosos e sensíveis, os dois filmes deram a Person o estatuto de referência cinematográfica, inclusive no plano internacional. No entanto, eles de certa forma ofuscaram outras facetas da produção do artista.

 

Um péssimo ator

Nascido em 12 de fevereiro de 1936, em São Paulo, Person demonstrou desde cedo seu gosto pelas artes. A primeira paixão foi o teatro – participou de grupos amadores quando estava no tradicional Colégio São Bento, e essa experiência o levou, aos 15 anos, a iniciar uma formação de ator. Ingressou como bolsista da prefeitura no curso de interpretação cinematográfica do Centro de Estudos Cinematográficos de São Paulo e, em seguida, fez testes para integrar o elenco da peça O Massacre, de Manuel Robbins, que seria encenada no Rio de Janeiro. Selecionado, o rapaz foi proibido pelos pais de seguir adiante – para que pudesse completar o curso clássico no São Bento.

 

O esforço dos pais, porém, se mostrou inútil. Já em 1955, quatro anos depois, ele se juntaria a um grupo de jovens amadores – Flávio Rangel, Antunes Filho e Cláudio Petraglia, entre outros – que, no futuro, se tornariam fundamentais para a evolução do teatro no Brasil. Ao lado deles, trabalhou na montagem de peças que eram apresentadas na casa de amigos e em outros espaços não oficiais.

 

Com o desejo de sistematizar seu conhecimento e contribuir para a divulgação das artes, o jovem Luiz Sergio criou, em 1956, a revista Sequência, dedicada ao cinema e ao teatro. A publicação, no entanto, só teve um número: Person queria fazer, com recursos próprios, uma revista cultural de um homem só, e logo se deu conta de que a aventura era impossível. Então enveredou pela carreira de galã de teatro popular, entrando para a Companhia de Comédias Odilon Azevedo – com a qual se apresentou em Vamos Brincar de Amor, encenada no Teatro Municipal de Campinas. Um ano depois, em 1957, foi visto em dois filmes: A Doutora É Muito Viva, de Ferenc Fekete, e Casei-Me com um Xavante, de Alfredo Palácios – assumindo também, na segunda obra, o posto de assistente de direção.

 

Mesmo com as glórias que, mais tarde, obteve como cineasta – e apesar de jurar que não passava de um péssimo ator –, Person nunca deixou de atuar. Ainda apareceu em longas como O Estranho Mundo de Zé do Caixão, de José Mojica Marins, O Quarto, de Rubem Biáfora, e Anuska, Manequim e Mulher, de Francisco Ramalho Jr., os três de 1968.

 

São Paulo-Roma-São Paulo

Em 1959, mais uma vez a família interveio e o artista foi trabalhar com o pai na fábrica de instrumentos abrasivos Person Bouquet S.A., fundada três anos antes. Exerceu o cargo de diretor comercial da empresa até 1961, quando se cansou das máquinas e fez as malas para se matricular no Centro Sperimentale di Cinematografia, em Roma.

 

E foi na Itália que Person – valendo-se, em grande medida, de sua experiência na fábrica do pai – redigiu o roteiro de São Paulo S.A., inicialmente batizado de Agonia. Antes de voltar para o Brasil, ainda realizou três curtas-metragens por lá: o documentário Il Palazzo Doria Pamphili (1963) e as ficções L’Ottimista Sorridente (1963), como trabalho de conclusão de curso, e Al Ladro (1962). Baseada nos princípios de espontaneidade e improviso do neorrealismo italiano, esta última obra foi premiada nos festivais de Veneza e de Bilbao – o sucesso foi tamanho que o diretor Luigi Zampa convidou Person para ser seu assistente na realização do drama Gli Anni Ruggenti (1962), sobre como a visita de um líder fascista abala a ordem de um pequeno povoado italiano.

 

Tão logo retornou à capital paulista, em 1964, o cineasta começou a produzir São Paulo S.A. Para tal, levantou fundos por meio de um regime de cotas, sistema inovador na época, sem o patrocínio do Estado – o que seria habitual entre 1969 e 1990, com a fundação da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme).

 

Assim como O Caso dos Irmãos Naves, que viria em seguida, a obra amealhou vários prêmios e logo o trabalho de Person passou a ser identificado com a corrente do cinema novo – identificação refutada pelo diretor. Person se filiava, isto sim, ao movimento cinematográfico paulista – ao lado de Walter Hugo Khouri, José Mojica Marins e Rubem Biáfora, entre outros –, que buscava um cinema menos intelectualizado do que o defendido pelos cinemanovistas, situados fundamentalmente no Rio de Janeiro. Desde os anos 1940, com a utopia da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que queria recriar Hollywood em São Bernardo do Campo (SP), os artistas paulistas desejavam estabelecer um mercado consumidor para o cinema nacional – com empreendimentos consistentes e filmes acessíveis a todos. Person sonhava com o cinema popular.

 

No fim, as origens

Em 1968, no auge da fama, Person começou a se preocupar com a distribuição deficiente dos filmes no Brasil e colaborou para a criação da Reunião de Produtores Independentes (RPI). No mesmo ano, com o apoio da cooperativa, ele lançou Panca de Valente, seu maior fracasso de bilheteria, e dirigiu “Procissão dos Mortos”, episódio do longa Trilogia do Terror – que também contou com segmentos assinados por Ozualdo Candeias e José Mojica Marins.

 

O quarto e derradeiro trabalho de Person no cinema, Cassy Joneso Magnífico Sedutor (1972), foi lançado depois de um período em que o artista se dedicou à publicidade. Perguntado por que escolhera a nova carreira, ele ironizou: “Todo mundo sabe que não existe publicitário que não seja gênio”. Se não foi genial, em todo caso, foi bem-sucedido na área – dirigiu centenas de comerciais entre 1969 e 1971.

 

Como que voltando às origens, enfim, Person focou suas últimas ações em benefício do teatro. Em sociedade com Glauco Mirko Laurelli, ele fundou em 1973 o Auditório Augusta, onde promoveu a difusão de dezenas de peças e não deixou de dirigir produções de impacto, como a que inaugurou o espaço: El Grande de Coca-Cola, com Armando Bogus, Laerte Morrone, Suely Franco e Ricardo Petraglia, entre outros, no elenco. Comédia musical escrita pelos norte-americanos Diane White e Ronald House, o espetáculo se passava em um cabaré hondurenho comandado por Don Pepe Hernandez (Felipe Carone), um sujeito que promete trazer grandes e internacionais atrações para o seu palco, mas – como as estrelas convidadas não aparecem – acaba colocando os membros de sua família para cantar, dançar e fazer mágicas e malabarismos para o público.

 

O sucesso foi estrondoso e animou o diretor a encenar, em 1974, o drama Entre Quatro Paredes, de Jean-Paul Sartre, e a comédia Orquestra de Senhoritas, de Jean Anouilh. Essa última produção causou escândalo por trazer atores – como Ney Latorraca e Paulo Goulart – travestidos de mulher, num desafio à censura do regime ditatorial vigente.

 

Se atentarmos apenas aos seus dois filmes consagrados, a impressão que Person transmite é a do cineasta intelectual, vinculado ao neorrealismo italiano e com uma pitada de experimentalismo do cinema novo. No entanto, basta conhecer sua trajetória para descobrir um empreendedor em busca de um mercado cultural que só floresceria décadas depois de sua morte.

 

As variações que Luiz Sergio Person criou giram em torno não de um tema único, mas de uma inquietação artística plural que continua a fascinar. Sua obra sugere variações sobre infinitos temas – variações das quais todos são convidados para participar.

 

Luís Antônio Giron é jornalista e escritor. Publicou, entre outros livros, o romance Ensaio de Ponto (1995) e a biografia Mario Reis – o Fino do Samba (2001).Este texto foi realizado por ele a convite do Itaú Cultural para integrar a publicação produzida pelo instituto exclusivamente para esta Ocupação.

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