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Recortes sobre Eduardo Coutinho

Educadora do IC comenta três obras do diretor, referência no campo do cinema documentário

Publicado em 08/09/2020

Atualizado às 17:36 de 16/08/2022

[Este texto integra uma série de relatos produzidos pela equipe de atendimento educativo do Itaú Cultural (IC). Nesses relatos, cada educador comenta sua experiência relacionada a uma exposição apresentada no IC, destacando três das obras presentes na mostra.]

por Mônica Abreu

O cineasta paulista Eduardo Coutinho é considerado um dos maiores documentaristas do Brasil. Sua forma de fazer filmes foi muito marcada por seu interesse pelas histórias que eram contadas diante das câmeras, em momentos de presença e unicidade nos quais a conversa – e não a entrevista, como ele gostava de pontuar – abria espaço para a memória se mostrar, ou se inventar. Coutinho teve sua trajetória lembrada na 47ª edição do programa Ocupação Itaú Cultural.

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A postura do cineasta em relação às pessoas com quem conversava em seus filmes tem algo da “escutatória” de que fala Rubem Alves na crônica homônima, publicada no livro O Amor que Acende a Lua. Esse traço se manifesta em todas as obras do diretor. A seguir, comento três delas – que muito me marcaram e inspiram.

Santo Forte

Neste filme de 1999, Coutinho explora a relação de moradores da favela Vila Parque da Cidade, na Zona Sul do Rio de Janeiro, com a religiosidade. Embora dissesse rezar para todos os santos quando o avião balançava, o cineasta se considerava um agnóstico – mas deixou registrado em muitos relatos seu interesse pela alteridade, por aquilo que ele não é.

Representar o outro a partir da maneira como ele se conta, ou seja, ouvindo-o, é algo que me anima porque alude à própria formação identitária do ser humano: conhecemo-nos, entre outras coisas, por meio daquilo que não é nosso.

O documentário provoca uma imersão nas histórias e vivências das pessoas/personagens apresentadas, celebrando vozes poderosas – como a de Braulino, que conta e canta sua fé.

Rubem Alves, na já citada crônica, nos lembra que “é preciso não ter filosofia nenhuma para se escutar”, e, na busca de conhecer no outro aquilo que ele mesmo não vive – neste caso, a religião –, Coutinho pratica a suspensão de sua filosofia para conhecer a das personagens do filme, e nos convida para fazer o mesmo.

Edifício Master

Prisão, na obra de Coutinho, é o termo empregado para se referir às limitações impostas à realização de determinado filme – limitações que funcionavam também como disparadores criativos. Em Edifício Master, de 2002, alguns dos elementos dessa prisão eram o tempo proposto para a gravação do longa e o espaço em que ele seria rodado – todas as personagens que aparecem na obra vivem ou trabalham num prédio de apartamentos em Copacabana, no Rio.

Antes de gravar as conversas, Coutinho tinha acesso a uma pesquisa prévia realizada por parte da equipe a fim de mapear personagens e histórias. Ainda que já informado sobre as pessoas com quem ia falar, o diretor tinha de fato seu primeiro contato com elas no ato da gravação, e sabia que sua presença ali fazia seus interlocutores se comportarem – e contarem suas histórias – de maneira singular. A singularidade desses momentos é bastante marcada por um interesse e um zelo profundos, que geram o que creio ser uma experiência de comunhão – que, para Rubem Alves, “é quando a beleza do outro e a beleza da gente [ou do cineasta] se juntam num contraponto”.

Espaço expositivo da Ocupação Eduardo Coutinho; a cadeira em destaque foi usada pelas personagens dos três últimos documentários do diretor (imagem: André Seiti)

Jogo de Cena

Jogo de Cena, de 2007, foi filmado num local onde tradicionalmente se interpretam as ficções: o teatro. Isso seria um detalhe se o trabalho não abordasse justamente a ideia de que o ato em si da gravação cria um efeito ficcional, por mais que o registro se situe no campo do documentário. O atrito entre o real e o faz de conta está na alma desse filme. Quando assistimos à obra, não sabemos se as histórias que ouvimos realmente “pertencem” às pessoas que as narram. Algumas dessas histórias são contadas por mulheres que supostamente responderam a um anúncio para participar do projeto, mulheres anônimas; no entanto, em certos momentos as narrativas são repetidas por atrizes como Andréa Beltrão, Fernanda Torres e Marília Pêra. Qual seria a versão “verdadeira”? O que é a verdade diante de uma interpretação tão crível? E mais: é só ouvindo a “dona” de determinada história que podemos nos emocionar com ela?

Por falar em emoção... Em uma cena do filme, a moça que canta “Se Essa Rua Fosse Minha” de olhos fechados e molhados me faz molhar os meus próprios olhos; sinto em mim mesma a emoção que ela expressa. Impossível não pensar na conversa como “a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos” – citando mais uma vez a crônica de Alves.

As conversas de Coutinho com suas personagens atravessam a tela e colocam também o público num estado de escuta. E essa escuta, que valoriza as vozes únicas e a ideia de que somos personagens que se constroem por meio da linguagem, está no centro de outra importante atividade que me move: a educação. A obra e a postura de Eduardo Coutinho deixam um legado para a minha prática diária – e de vida – de encontrar pessoas, suas histórias, suas literaturas.

Sobre mim

Sou Mônica Abreu, guarulhense filha de paranaense com pernambucano. Tenho 26 anos e me formei em artes plásticas pela Universidade de São Paulo (USP). Sou arte-educadora e artista visual, e me interesso especialmente pelas manualidades como forma de liberdade. Atuo no Itaú Cultural desde 2019.

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