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Revista Observatório 30 | Relações entre teatro e tecnologia

Mariana Lima Muniz traça uma perspectiva histórica a partir de acontecimentos conhecidos na tradição do teatro, a fim de entender a relação entre teatro e tecnologia na atualidade

Publicado em 06/12/2021

Atualizado às 16:50 de 15/08/2022

[acesse o índice da Revista Observatório 30]

por Mariana Lima Muniz - https://orcid.org/0000-0003-3807-5860

E no princípio... era a tecnologia. Parafraseando Gênesis, componho com restos o início desta linha histórica da relação entre teatro e tecnologia. Em razão do escopo do trabalho, tive que fazer escolhas e, ao fazê-las, ausências são inevitáveis. Minha intenção foi a de traçar uma perspectiva histórica a partir de acontecimentos conhecidos na tradição do teatro e, assim, colaborar para o entendimento da relação entre teatro e tecnologia na atualidade. 

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Técnica e tecnologia 

Pode-se entender a tecnologia como o produto final de um estudo continuado, do aperfeiçoamento de uma técnica. Uma vez completo o estudo, a técnica adquire uma aplicabilidade. O instrumento ou dispositivo derivado é o que consideramos a tecnologia. Por exemplo, a feitura de um papiro por meio de fibras naturais é uma técnica desenvolvida no Egito Antigo. O papiro, como produto dessa técnica, é a tecnologia. Ou seja, você não precisa saber a técnica de feitura do papiro para beneficiar-se da sua tecnologia como dispositivo de registro escrito. 

Todo desenvolvimento tecnológico modifica e é modificado pela cultura na qual se insere. Toda arte também modifica e é modificada pelo seu contexto histórico e tecnológico.

Ao colocar o teatro em contraposição à tecnologia na atualidade, além de negar sua própria história, o relegamos ao lugar de animal exótico em um zoológico: um ser vivo retirado de seu hábitat natural, “conservado” em um ambiente artificial para satisfazer a curiosidade de visitantes esporádicos. O teatro é feito por pessoas, visto por pessoas; e essas pessoas viveram, vivem e viverão nos seus tempos. Por isso, o teatro foi, é e sempre será contemporâneo. 

Teatro grego

O teatro grego da Antiguidade (século V a.C.) é um exemplo de fusão entre a teatralidade e a tecnologia de ponta. A própria construção da semiarena grega é uma inovação técnica considerável.

No espaço cênico (skéne e orquestra) havia uma série de plataformas giratórias, gruas e alçapões, entre outros dispositivos que se organizavam em íntima relação com as tragédias e as comédias daquele tempo. A partir de Eurípedes, por exemplo, a introdução de deuses ao final das tragédias como forma de desenlace se dá por meio de uma grua, chamada deus ex machina, que trazia o ator do alto da skéne para a orquestra. A grua também deu nome à solução dramatúrgica, demonstrando a simbiose entre cena e inovação tecnológica.

Quem já teve a oportunidade de estar em um teatro greco-romano pôde observar como a voz se expande a partir do centro da arena em direção à plateia, o que mostra o conhecimento de acústica avançado dos gregos antigos. Às máscaras do teatro clássico grego foi acrescentado um cano na região da boca do ator que servia como uma espécie de megafone, ampliando ainda mais a projeção da voz. Essas mesmas máscaras, maiores que uma cabeça humana, possibilitavam maior visibilidade aos atores. Também havia coturnos com plataformas que os deixavam mais altos. Esses dispositivos tecnológicos davam a ilusão de que se tratava de humanos maiores que o normal, em sincronia com o proposto por Aristóteles em sua Poética: “a tragédia é imitação de homens melhores que nós, importa seguir o exemplo dos bons retratistas, os quais, ao produzir a forma peculiar dos modelos, respeitando embora a semelhança, os embelezam” (ARISTÓTELES, 2003, p. 124).

Uma mulher nua coberta de véu está sentada perto de penas de aves que estão jogadas no chão, com uma floresta ao fundo.
"Exílio" (2015), Daniela Paoliello (imagem: Daniela Paoliello)

 

Teatro de sombras chinês

A história do teatro na China remonta a cinco milênios e atravessa impérios e dinastias. Dentre a riqueza de formas teatrais da China Antiga, destacamos o teatro de sombras iniciado no período do imperador Wu-ti (141-87 a.C.). Nele, a encenação se dá por meio da projeção da sombra de figuras que representam personagens e elementos da cena em uma tela de pano, tendo uma vela como foco de luz. 

Conforme a história contada por Ssu-ma Ch’ien, um homem chamado Sha Wong [...] veio diante do imperador Wu-ti em 121 a.C. para exibir sua habilidade em comunicar-se com os fantasmas e espíritos dos mortos. [...] Com o auxílio de sua arte, Shao Wong fez com que as imagens dos mortos e do deus dos lares aparecessem à noite. O imperador a viu a uma certa distância, atrás de uma cortina (BERTHOLD, 2004, p. 55).

A história recontada por Margot Berthold destaca as reações de adoração e medo provocadas pela tecnologia. Como um foco de luz que projeta uma imagem em uma tela, podemos pensar o teatro de sombras chinês como um pré-cinema. Uma experiência que, no século II a.C., já expandia a noção de presença para além da fisicalidade, criando uma presença virtual que, para o imperador Wu-ti, só poderia ser a dos mortos. 

Baixa Idade Média e Renascimento

Durante a Baixa Idade Média (séculos XI a XV d.C.), o teatro ganhou o entorno das catedrais em carroças nas quais eram representadas passagens bíblicas. Em cada uma das laterais da igreja havia uma carroça na qual era apresentada a mesma cena uma e outra vez. Dessa forma, eram os espectadores que se deslocavam de carroça em carroça e fruíam da obra sem que houvesse um ponto certo de partida ou chegada, em uma ruptura com a recepção temporal linear da obra de tradição greco-romana. 

No Renascimento, o teatro sai das igrejas. Na Espanha, por exemplo, surgem os “currais de comédia” (século XVII), espaço composto da junção dos pátios internos de três casas: uma no fundo e duas nas laterais. Junto à casa do fundo, montava-se um tablado de madeira, criando três níveis: o inferior (abaixo do tablado, com alçapões para a aparição de personagens), o médio (o tablado em si) e o superior (os balcões da casa). A existência dos três níveis de atuação possibilitava grande dinamismo às peças. O mesmo se observa no teatro The Globe, na Inglaterra elisabetana (séculos XVI e XVII). A partir de um cenário fixo, os autores construíam peças que exploravam o jogo de cena possibilitado pela estrutura de três níveis. Um exemplo é a famosa cena do balcão de Romeu e Julieta, de Shakespeare.

Fiat lux

A grande mudança na forma de assistir e de fazer teatro propiciada por uma nova tecnologia foi a introdução da iluminação artificial na cena.

Antes disso, o teatro era uma atividade vespertina, normalmente realizada a céu aberto e somente durante o verão. 

Quando se introduziu a iluminação artificial, primeiramente a gás, no final do século XIX e, logo depois, a iluminação elétrica no século XX, houve uma mudança fundamental na forma como as pessoas se relacionavam com o teatro. O teatro transformou-se na principal atividade noturna da sociedade urbana europeia, aonde se vai para ver mas, principalmente, para ser visto. O teatro passou, então, de uma atividade que envolvia diversos setores da sociedade, para ser o lazer predileto de uma elite. É claro que o teatro popular continuou presente, ocorrendo, muitas vezes, do lado de fora dos grandes edifícios teatrais.

Para além da mudança comportamental e do lugar do teatro na sociedade do final do século XIX, a iluminação possibilitou um controle técnico da cena, coincidindo com a difusão da concepção de direção de cena. Segundo Berilo Nosella:

Sendo a iluminação um dos componentes fundamentais para elaboracão visual da cena no que tange ao desenho de sua espacialidade e especialmente dependente dos recursos tecnológicos disponíveis em seu momento histórico, acreditamos que haja aí um elemento fundamental para compreendermos, em conjunto interligado, a prática da cena e suas renovações entre o início do século XIX e o do XX (NOSELLA, 2019, p. 11-12).

Cinema

O cinema do final do século XIX e início do século XX pode se definir, tecnicamente, por um sequenciamento mecânico de fotografias que dá a ilusão de movimento ao projetar as imagens em uma tela por meio de uma fonte de luz que atravessa a película na qual estão impressas. Poderíamos afirmar que o cinema é uma remediação (BOLTER; GRUSIN, 2000) da fotografia, pois parte dessa mídia para criar uma outra. 

Se os irmãos Lumière pensam o cinema como um registro da realidade, como no filme A saída dos operários da fábrica (1895), Thomas Edison direciona seu kinetoscópio para cenas circenses, em 1893. Já no século XX, Georges Méliès, que era diretor de teatro, introduziu o ilusionismo e a fantasia na arte cinematográfica usando truques próprios do teatro – como a maquiagem e a mudança de cenários – e inovando na edição, como no filme Viagem à Lua (1902). 

Assim, o cinema também pode ser entendido como uma remediação do teatro, pois alimentou-se da tradição teatral para desenvolver um dos seus ramos mais potentes até hoje: a ficção. Por outro lado, liberou o teatro da necessidade de representação do real. Nada pode superar o fotorrealismo cinematográfico, e as vanguardas históricas teatrais usaram essa liberdade para romper com o teatro realista e naturalista no início do século XX.

A projeção de imagens é explorada também no teatro desde o surgimento do cinema. Começando por Erwin Piscator, no início do século XX, e chegando aos dias de hoje, podemos citar os diretores Robert Lepage e Christiane Jatahy como expoentes dessa relação intrínseca entre teatro e cinema.

Penas de aves de vários tamanhos jogadas em um chão de terra batida.
Exílio (2015), Daniela Paoliello (imagem: Daniela Paoliello)

Web 2.0

A web 2.0 modificou substancialmente a forma de produzir e consumir imagens, sons, textos e outros conteúdos digitais. Houve uma aproximação nunca antes vista entre quem produz e quem assiste aos conteúdos on-line. Várias redes sociais e plataformas proporcionaram a emergência de novos criadores, que, familiarizados com as possibilidades dessas mídias, inovaram e modificaram a forma de nos relacionarmos com as produções audiovisuais.

Desde os anos 2000, artistas de diversas áreas começaram a explorar a internet como meio de trabalho. Mais comum no campo das artes visuais, da performance e das poéticas híbridas, a internet também foi ocupada como espaço de criação artística pelo teatro. Muitas ações teatrais a exploraram como meio de expressão, incluindo-a em cena ou fazendo dela o espaço cênico. 

Por ser um território sem coordenação espacial, a internet produz um importante tensionamento no conceito de teatro como convívio entre artistas e público em uma mesma coordenada espaçotemporal (MUNIZ; DUBATTI, 2018). Apesar disso,

a experimentação da virtualidade na cena teatral contemporânea se fez presente desde o início da internet.

Pandemia do novo coronavírus

Em decorrência da pandemia causada pelo novo coronavírus, em 2020 e 2021, houve a necessidade de fechamento dos teatros para a contenção do vírus. Com as pessoas confinadas em suas casas, artistas do teatro recorreram à internet como forma de continuar sua atividade criativa. Daí, o teatro pela ou na internet, que até então podia ser chamado de cena de exceção (MUNIZ; DUBATTI, 2018), tornou-se o teatro do possível.

Ao adentrar esse universo digital, o teatro teve que se redefinir. Sem a presença física na mesma coordenada espacial, teve que ampliar o seu conceito de presença com o fim de continuar vivo e necessário. Como toda mídia da internet é digital, os artistas de teatro tiveram que lidar com as tecnologias digitais para produzir suas poéticas. Inúmeras experimentações foram e estão sendo desenvolvidas no campo do teatro na internet.

No pós-pandemia, que acontecerá em temporalidades diferentes nos diferentes países, a experimentação desenvolvida no meio digital durante esse tempo irá impactar o teatro vindouro. Esse impacto ainda não tem como ser definido. Pode se dar um rechaço de toda virtualidade, reafirmando-se a territorialidade da cena teatral. Também pode haver um hibridismo, trazendo o teatro para um território liminar entre o físico e o digital. E pode, ainda, haver grupos que continuem desenvolvendo seu trabalho exclusivamente pela internet. Essa miríade de possibilidades apenas reafirma a capacidade do teatro de se reinventar ao longo de sua história.

Considerações finais

Desde a Pré-História, quando a técnica estava vinculada a questões do pensamento mágico, os dispositivos técnicos – a tecnologia – estavam situados no lugar da adoração e, ao mesmo tempo, do medo. 

Na Grécia Antiga, técnica e arte compartilhavam o mesmo vocábulo, Ars, que “compreende as atividades práticas, desde a elaboração de leis e a habilidade para contar e medir [...] até as artes plásticas ou belas artes, estas últimas consideradas a mais alta expressão da tecnicidade humana” (LEMOS, 2015, p. 26). 

Já na modernidade, a técnica e a tecnologia tornam-se entidades separadas da cultura. A separação entre os fenômenos da natureza e o espírito, ideal iluminista, possibilitou um grande avanço da ciência, desvinculada da tutela religiosa. Ao mesmo tempo, criou uma ciência desatada da cultura (LATOUR, 2019). Estabeleceu-se um senso comum de que arte e ciência não se alimentam mutuamente. A partir dessa perspectiva, como entender que ciência e arte compartilham tantas afinidades, além de todo um vocabulário, tal como criatividade, invenção, inovação etc.? 

Na pós-modernidade, vivemos uma multiplicidade midiática e tecnológica talvez sem parâmetros históricos em relação à velocidade das inovações e ao uso constante de dispositivos que amplificam o alcance humano. Vivemos em uma cibercultura, na qual há uma “sinergia entre a vida social e os dispositivos eletrônicos e suas redes telemáticas. Os dispositivos mudam, as associações entre humanos e não humanos, que formam esse social, também” (LEMOS, 2015, p. 11). 

Para finalizar esta linha temporal, conto uma anedota que acredito sintetizar meu pensamento sobre as relações entre teatro e tecnologia. Certa vez, em uma palestra, fui indagada se não tinha receio de que as inteligências artificiais tomassem o lugar dos atores, ao que respondi: “Os atores sempre conviveram com inteligências artificiais. Não vejo uma diferença conceitual entre uma inteligência artificial do tipo humanoide e uma marionete. Talvez a única diferença seja o tamanho e a distância dos fios, físicos ou não, que as unem às mãos humanas de quem as manipula”.

Acesse a linha do tempo das relações entre teatro e tecnologia em versão infográfico.

 

Expediente da Revista Observatório 30

 

Como citar este artigo

MUNIZ, Mariana. Relações entre teatro e tecnologia. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 30, 2021. Disponível em: [url]. Acesso em: [data_atual]. DOI: https://www.doi.org/10.53343/100521.30.01

Mariana Muniz é atriz, diretora e professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Contato: marianamuniz@ufmg.br. 

 

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. Poética. 7. ed. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003.

BERTHOLD, M. História mundial do teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004. 

BOLTER, J. D.; GRUSIN, R. Remediation. Cambridge: MIT University Press, 2000.

LATOUR, B. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34, 2019.

LEMOS, A. Cibercultura. Porto Alegre: Editora Sulina, 2015.

NOSELLA, B. A dramaturgia como fonte para uma história da iluminação cênica: Pirandello capocomico iluminador. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 9, n. 4, e84817, 2019. 

MUNIZ, M. L.; DUBATTI, J. Cena de exceção: o teatro neotecnológico em Belo Horizonte (Brasil) e Buenos Aires (Argentina). Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 366-389, abr./jun. 2018. 

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