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Renata Heinzelmann: “Tem faltado um trabalho real com literatura surda nas escolas”

Doutora em educação, a pesquisadora enfatiza o papel da poética na formação da comunidade surda e fala da importância da disseminação dessa literatura

Publicado em 15/12/2020

Atualizado às 15:50 de 19/05/2022

por Duanne Ribeiro

A poesia pode fortalecer identidades e comunidades: amplia o domínio de expressão individual e intensifica a possibilidade de trocas com os outros. Esse potencial é especialmente verdadeiro para a literatura surda e para o público surdo; contudo, as escolas não estão preparadas para desenvolver essa área nem têm dado atenção suficiente a ela. Isso é o que fala, em entrevista ao Itaú Cultural, Renata Heinzelmann, doutora em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Além desse tema, Renata abordou as principais características da poesia surda e as dificuldades de traduzi-la para a língua portuguesa. A conversa ocorreu por ocasião do Festival Arte como Respiro – que exibe poetas surdos selecionados –, com apoio da intérprete Lívia Vilas Boas, por vídeo.

A partir da sua tese de doutorado – Literatura surda no currículo das escolas de surdos, para a qual pesquisou cinco escolas de surdos, três de Porto Alegre, onde mora, uma dos Estados Unidos e uma do Rio de Janeiro – Renata aponta que, na educação, “tem faltado um trabalho real com literatura surda. É muito fraco”. Segundo a pesquisadora, os problemas são três: “Primeiro, faltam professores fluentes em Libras e especializados em literatura surda; segundo, falta uma disciplina que desenvolva as habilidades dessa literatura; terceiro, falta circulação da literatura surda dentro da escola”.

“A gente precisa mostrar o valor da literatura surda para os alunos desde crianças”, defende Renata, porque “só saber a língua de sinais não é suficiente. A literatura traz outros aspectos – por isso, os ouvintes têm [o ensino de] literatura desde a infância: só falar em português dentro da escola não é suficiente. Da mesma forma, para os surdos”. A pesquisadora ressalta que usa uma noção ampliada de “currículo”, que abrange todo o ambiente da escola. É nesse espaço que é “importante circular a literatura surda, porque ela desenvolve habilidades que só o uso da Libras não desenvolve”.

Renata parte do princípio de que há um forte vínculo entre o domínio da língua, o aprendizado de mundo e as relações interpessoais. “O empoderamento das pessoas surdas se dá pela língua de sinais”, afirma, “porque você se expressa por meio da sua língua – você pode fruir cultura, fruir arte, trocar experiências, ter convívio com outras pessoas”. Nesse contexto, o contato com a produção literária é decisivo, comenta: “Assim como os ouvintes precisam da literatura, da leitura cotidiana, para aprender sua língua, as pessoas surdas conseguem se expressar cada vez melhor, escrever (inclusive em português) e entender melhor a estrutura linguística com isso”.

Explica que é pelo convívio, pela inserção na comunidade surda e pelo uso da língua de sinais que o surdo pode aperfeiçoar sua linguagem, e esse aperfeiçoamento abre caminhos: “Qualquer pessoa que tenha um bom acesso à língua absorve [a poesia]. Quanto maior o domínio da língua, maior o acesso à poesia, maior o acesso também a criar e a se expressar poeticamente”.

Sinalidade, criatividade e tradução

Renata coloca que a produção literária surda tem quatro características principais: uma estética própria, a linguagem – a forma como se usa a língua de sinais –, a experiência visual e a cultura surda. Desse último aspecto, uma noção relevante é a de sinalidade. “Na oralidade”, expõe ela, “a informação se passa pela via oral, não escrita; de modo análogo, a sinalidade é a passagem de aspectos da cultura e da identidade surda via sinais, de geração a geração de pessoas surdas”.

Quanto aos três primeiros atributos da poética surda, um bom exemplo de como operam são as recriações dos sinais e da sinalização. A pesquisadora esclarece que a configuração de mão é um dos parâmetros linguísticos da língua de sinais, e as brincadeiras com essa prática são passadas por meio da sinalidade. Com base nessa cultura, o poeta pode jogar com os signos e produzir efeitos variados – por exemplo, repetindo um mesmo sinal na declamação, o que equivaleria às rimas, ou desdobrando cada estrofe a partir do mesmo termo em Libras, criando um ritmo.

Veja também

>> “Mãos que dançam e traduzem: poemas em línguas brasileiras de sinais”, artigo de Renata Heinzelmann e Lodenir Becker Karnopp.

Embora considere que a literatura surda é para qualquer pessoa, Renata entende também que essa literatura alcança melhor quem seja fluente na língua de sinais. Esse parece ser o melhor caminho para entrar em contato com essas produções culturais, na medida em que “a tradução é difícil”. Ela dá como exemplo palavras em Libras que não têm equivalente, em suas palavras, corresponderiam a “um texto gigante em português”. Outra questão é a polissemia, por vezes não levada em conta. Um desses casos deu-se com um sinal comumente usado para dizer “sonho”, mas que designa também “delírio”, “imaginação”, “pensamento”. “Pode ser um monte de coisas, mas uma vez traduziu como sonho e ficou. Assim pode se perder o significado de uma poesia específica”, explica a entrevistada.

Para quem quer conhecer a poesia surda, a pesquisadora indica alguns nomes: Nelson Pimenta, “um dos pioneiros”, Fernanda Machado e Rosana Grasse. Ao ser questionada, por fim, sobre quais poesias surdas mais a atraem, Renata responde: “Acho que são aquelas que tocam a gente, quando tem uma expressão que me afeta, que me faz imaginar, entender coisas”. Com essas obras, uma espécie de mágica acontece, “porque eu tenho o meu ponto de vista, a minha visão de mundo, e o poeta tem a dele, mas no momento daquela poesia eu simplesmente sinto. Aquele texto em língua de sinais me toca de uma maneira que eu simplesmente sinto”.

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