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Samba rock | Patrimônio cultural

O músico e compositor Marco Mattoli, integrante do grupo Clube do Balanço, conta como foi o processo para o samba rock se tornar...

Publicado em 04/07/2017

Atualizado às 10:55 de 03/08/2018

Por Marcel Fracassi

Em novembro de 2016, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), por intermédio da Secretaria da Promoção da Igualdade Racial, reconheceu o samba rock como patrimônio cultural imaterial paulista. Ritmo musical e estilo de dança, o samba rock teve início nos bailes da periferia de São Paulo na década de 1950, se desenvolvendo e se modificando ao longo do século XX.

Conversamos com um dos principais articuladores para a ação junto ao Conpresp e um dos integrantes da banda Clube do Balanço, Marco Mattoli.

A história musical de Mattoli se confunde com a retomada do samba rock no circuito musical brasileiro. O músico começou sua carreira ao fundar a banda Guanabaras, uma proposta de fazer música pop com raiz genuinamente brasileira. Passada essa fase, que deu origem à sua busca pelo samba, Mattoli gravou o CD Balanço Bom É Coisa Rara, com a participação de Luiz Vagner na canção “Segura a Nega”. Daí nasceu a semente do Clube do Balanço – o disco já contava com a participação de Edu Salmaso, Gringo Pirrongelli, Fred Prince e Tiquinho.

Como surgiu seu interesse pelo samba rock? Fale um pouco sobre isso.

Quando eu tinha por volta de 14 ou 15 anos, comecei a tocar instrumentos e acabei me apaixonando pela música brasileira. Tive banda de rock e de ska na adolescência e, a uma certa altura, quis fazer uma banda que misturasse todas as coisas que ouvia de música brasileira – uma banda que tivesse cara de Brasil.

Meu primeiro trabalho profissional como músico foi com a Guanabaras (1990), uma banda superpop, toda baseada em ritmos brasileiros, com percussionistas que vinham de escolas de samba. Lançamos um disco e mostrei a música “Correndo ao Encontro Dela” para um pessoal da Rádio Band, junto do Marquinhos, Gleide Xavier e o Benê Alves – eles tinham um programa de pagode na 105 ou na Transamérica, eram os pioneiros do pagode em São Paulo, aquele pagode mais romântico.

O pessoal mandava fitinha [fita cassete], eles tocavam e a rádio virou um grande sucesso em São Paulo. Quando o Marquinhos ouviu minha música, ele me disse: “Você parece o Branca Di Neve! [músico dos anos 1980]”. Ele pegou o telefone, ligou para o Benê e disse: “Temos mais uma música para a nossa coletânea de baile!”. Assim minha música entrou na coletânea. A partir daí, entrei nesse universo do baile black, comecei a frequentá-los para divulgar a coletânea e, nesses bailes, comecei a tomar contato com a black music, em que se tocava e se dançava o tal do samba rock.

Não sei dizer se foi a morte do Branca Di Neve, ou a imensa ascensão do pagode romântico, mas depois de um tempo os bailes blacks já não tinham mais espaço para o samba rock. Eles tocavam basicamente rap e pagode. Em 1998, eu já tinha desistido da música e esses músicos que tocavam comigo – o Peixe, o Gringo, o Tiquinho, o Fred – falaram: “Vamos fazer um som despretensioso, sem compor. Vamos tocar os clássicos desse repertório”. É uma coisa que gostávamos muito, tínhamos muito carinho. Então, em 1999, fizemos o primeiro baile do Clube do Balanço, em Artur Alvin, e depois tive a ideia de fazê-lo na casa de show Grazie a Dio. Nesse momento, a partir de 2000, tivemos uma reviravolta maluca, e o samba rock virou febre na noite paulista.

Em uma entrevista que deu ao Portal Vermelho, você afirma: “O samba rock surge de maneira espontânea como manifestação cultural da população negra nas periferias da cidade de São Paulo no começo da década de 60. Como em várias culturas afrodescendentes do mundo, o samba rock nasce da exclusão, dessa possibilidade de inserção social”. O samba rock primeiramente surge como uma dança e depois como um ritmo musical? Qual de fato é a origem do samba rock?

Na pesquisa que fizemos, o samba rock surge como dança, até porque não existia um gênero musical chamado samba rock nas décadas de 1950 e 1960. O que existia eram os bailes na periferia, feitos com som mecânico [toca-discos], não era som ao vivo.

Aliás, essa história está absolutamente ligada à história dos DJs, que virou uma questão fundamental para a música popular moderna. Esses DJs conseguiam esses materiais, discos, que na época eram superdifíceis de conseguir, e faziam desde pequenas festas – como casamentos e aniversários – até os grandes bailes com equipes de som. Essas grandes festas funcionavam da seguinte maneira: os caras tinham os equipamentos, os discos, e alugavam espaços grandes em São Paulo – como a Casa de Portugal, o Club Homs – e vendiam ingresso antecipado.

Nesses bailes, tocava-se de tudo. E ali começou a surgir uma dança que era uma mistura de tudo – rock, swing, samba, gafieira, forró – e essa dança, com essas características, só apareceu em São Paulo. No começo, chamaram de rock, depois rock de São Paulo, por conta da mistura. E aí começou-se a pensar na música que servia para dançar esse estilo de dança, não existia um gênero musical específico. Os bailes tocavam Jimmy Smith, Ray Charles, Tom Jobim ou Orlandivo e a mesma dança era feita, por isso digo que se trata de uma dança, não de um gênero.

Na pesquisa, colocamos uma data simbólica para o surgimento do samba rock, que é o lançamento do LP do Branca Di Neve – Branca Mete Bronca vol.1 [Continental, 1987] e Branca Di Neve – Branca Mete Bronca vol. 2 [Continental, 1989]. Muito se fala sobre o Jorge Ben Jor, o Bebeto e outros. Mas foi o Branca que realmente pensou nessa estética musical para dançar. Ele frequentou bailes nas décadas de 1970 e 1980 e, certamente, quis fazer um disco para as pessoas dançarem. Depois que ele faleceu e o pagode romântico apareceu com grande força, o samba rock desapareceu durante a década de 1990. Eu acho que se o Branca não tivesse morrido, o samba rock teria outro caminho. Ali tinha elementos bem interessantes.

Por que o interesse em fazer do samba rock patrimônio imaterial de São Paulo?

Nos anos 2000, tivemos a retomada do samba rock, com o surgimento de bandas, casas noturnas e de um novo público, uma galera mais nova, classe média. Isso acabou reverberando nos bailes clássicos, de periferia, que começaram a reaparecer e as equipes de som voltaram a tocar essas músicas no baile. Novos artistas também começaram a gravar esse repertório clássico ou novas composições de samba rock, como Simoninha, Seu Jorge e Wilson Sideral. E principalmente voltou-se a dançar muito samba rock. Uma coisa interessante é que, antes, você aprendia samba rock nos bailes e no convívio familiar, mas nessa época surgiram professores como o Mosquito, a Anna Paula e outros, que desenvolveram um método para ensinar em academias de dança.

Na parte musical surgiram muitas bandas que passaram a tocar tanto o repertório clássico, como composições novas. Enfim, consolidou-se uma cena de samba rock. E nós – eu, o Junior, do Samba Rock na Veia, e o Jorge Japa [dançarino] –, que estávamos integrados nessa cena, começamos a pensar que o samba rock poderia se tornar patrimônio, assim como outros estilos – o funk carioca, o samba do recôncavo, o samba paulista.

A partir de então, começamos a nos movimentar. Fomos à Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial e falamos com alguns secretários, como Netinho de Paula e Toninho Pinto [Antonio Silva Pinto]. Levantamos diversos materiais – como teses, fotos, flyers de festas, filmes –, que são pouquíssimos, além de depoimentos do pessoal que viveu o samba rock – músicos, discotecários e produtores de festa. Com todo esse material fizemos um dossiê para justificar a inclusão do samba rock como patrimônio e então levamos isso para o Maurício Pestana – secretário da Promoção da Igualdade Racial de 2015 até 2016 – e ele conseguiu que o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de São Paulo (Conpresp) avaliasse nosso projeto.

Em 2017, o Conpresp aprovou nosso pedido e assim o samba rock tornou-se Patrimônio Cultural Imaterial de São Paulo. E foi muito interessante. Na última audiência, a equipe do Conpresp nos chamou e elogiou muito o projeto por conta da riqueza do material que apresentamos e disse ainda que nosso processo servirá de modelo pela qualidade do material e da pesquisa. Foi um processo que durou quatro anos.

Bandas como Clube do Balanço, Sambasonics, Farufyno e Os Opalas parecem ter sido fundamentais para o redescobrimento do samba rock no final dos anos 1990 e começo dos 2000. É isso mesmo?

Eu não ressaltaria somente as bandas. Foi uma cena toda que levou a esse redescobrimento: os dançarinos, os coletivos de samba rock que fazem festas incríveis, como a Samba Rock na Veia, a Samba Rockando, a Samba Rock de Rua, entre outras. Esse momento traz algumas questões curiosas também. Por exemplo: algumas pessoas que dançavam antigamente não gostam de como se dança hoje, com malabarismos e tal. E o mesmo acontece com as músicas: tem quem dance com sons eletrônicos e tem quem dance com o som do vinil. Eu adoraria que, com esse trabalho, as novas gerações entendam o samba rock e que, a partir do reconhecimento enquanto patrimônio, se possa criar uma cartilha básica para os professores da rede pública contando essa história.

O Rio Grande do Sul também foi um cenário importante para a consolidação do Samba Rock. A cena e todo esse movimento eram muito fortes aqui em São Paulo, mas em paralelo isso ocorria por lá também, né? Comenta um pouco isso pra gente.

Nas décadas de 1960 e 1970, essa juventude começa a ter um empoderamento muito grande, o rock é uma prova disso, ela começa a ter um protagonismo na cultura. Agora, fazendo um paralelo, o rock aconteceu no mundo todo, quase todos países do mundo tiveram sua cena e, pensando nesse movimento de juventude negra no Brasil, certamente aconteceu no país todo. Esse pessoal viajava e ia trocando, conhecendo, se influenciando, eram influenciados pela luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, movimento black power, a música, soul, funk, tudo isso rodou o mundo e chegou aqui. No Rio de Janeiro, por exemplo, tivemos o movimento Black Rio, com Dom Salvador, Tony Tornado e outros, além das equipes de baile, assim como em São Paulo, jovens de periferia consumindo essa cultura e buscando sua identidade por meio daqueles elementos de valorização dos negros. Em Porto Alegre existia essa juventude, e esse fenômeno dos bailes de periferia também existia por lá, com Bedeu, Luis Vagner, Alexandre e outros músicos. E, assim como no Rio de Janeiro ou São Paulo, eles tinham sua maneira de compor e criar. E, se não me engano, lá eles chamavam de swing. Mas uma coisa é certa: a dança só existia em São Paulo, ela não era dançada em nenhum outro local. Mas, como movimento, lá é bem parecido com o que aconteceu em São Paulo ou no Rio, por exemplo. Entendo que merece ser considerado patrimônio assim como São Paulo, pois lá também foi um movimento importantíssimo para comunidade negra de Porto Alegre. Inclusive, o primeiro disco do Clube do Balanço dedicamos para Bedeu e Branca Di Neve.

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