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Artistas Mulheres Contemporâneas no Acervo: Shirley Paes Leme e o fogo capturado

Shirley capta em suas obras momentos e efeitos do imaterial, do efêmero, do dinâmico. Na obra Como uma Chama II, ela compõe a forma da labareda com galhos de eucalipto

Publicado em 20/08/2020

Atualizado às 17:40 de 16/08/2022

Artistas Mulheres Contemporâneas no Acervo destaca produções de criadoras presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural. A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.

Shirley Paes Leme
Como uma Chama II, 1997
galhos de eucalipto, arame e ferro
680 x 320 x 220 cm
Acervo Itaú Cultural
Imagem: Iara Venanzi/Itaú Cultural

Por Duanne Ribeiro

Faça fogo. Por exemplo, acenda uma das bocas do fogão e observe. Cortadas pelas eventuais labaredas amarelas, vermelhas, as pequenas flamas ondulam e tremem. São azuis; um tom mais escuro dentro; no contorno, outro, mais claro; fora dessa “linha”, a cor é translúcida, faz as vezes de aura. São triângulos ou cones, qual é a sua forma? Difícil definir: estão sempre em movimento. Fez o fogo? Ele é como o meu? Agora capture-o. Deixe-o paralisado, disponível ao toque.

Algo dessa tentativa paradoxal compõe a escultura Como uma Chama II, de Shirley Paes Leme. O eucalipto, o arame, o ferro imitam o lume, formam uma base avantajada e se alongam até uma ponta fina. Mudou a substância, cessou a movimentação – mas um momento do fogo está aí.

Na medida em que se afilia ao efêmero, Como uma Chama II conversa com procedimentos que a artista aplica em outros trabalhos. “Capturar e aprisionar”, explicou a jornalista Camila Molina no Estadão, “são verbos que a artista usa para definir a ação de seu trabalho sensível: utilizando telas ou papéis, ela, com a ajuda da mão do acaso, captura o incapturável”. O tema de Camila é a mostra Atitude: Desenho, em que Shirley apresentou várias aplicações dessa prática.

Em algumas delas, fazendo uso dos picumãs – teias de aranha densas de fuligem, típicas das casas de fazenda, dos tetos acima de fogões de lenha. Descreve a jornalista: “A artista sopra o picumã, fixa-o de maneiras diferentes com o uso também de um gel: de tanta delicadeza, do material e do gesto de Shirley, cada obra se transforma em um universo”. Além delas, desenhos feitos com “fumaça congelada” – isto é, a partir da exposição dos suportes ao fumo: como afirma o curador Tadeu Chiarelli, a artista, “com uma folha de papel ou uma tela presa em chassi entre as mãos, desenvolve uma estranha dança pelo espaço: movimentos que não podem ser lentos demais para não perderem a possibilidade da captação, e tampouco bruscos, para não acelerarem o processo de desaparição do vapor, assim inviabilizando sua captação”.

Como uma Chama II não empresta da labareda a cor e a textura do seu efeito; faz de um passo da sua “estranha dança pelo espaço” um monumento: a escultura mede quase 7 metros de altura. Mas, talvez, não só: o fogo, além disso, está latente no próprio material com que a obra é feita – o eucalipto, madeira altamente inflamável. Sendo combustível, é condição para que aquele elemento possa existir. Notamos isso, outra vez, porque esse poder queimar implícito já esteve em outro trabalho de Shirley, Pela Fresta, descrito assim pelo artista José Cirilo:

Uma pequena luz ascendente. Verticalidade luminosa que descansa quase imóvel. Por entre o lenho, parece o foco de um grande incêndio que não se realiza por um pacto entre os corpos que lhe rodeiam. Perigo em potência.

Pela Fresta consistia em uma sala recoberta de galhos de eucalipto, no meio dos quais erguia-se uma chama. Também contava com uma mesa no ar – “congelada; queda em suspensão”, diz Cirilo –, reforçando a estabilidade momentânea do todo. Como uma Chama II dialoga com isso.

“A chama significa transcendência dela mesma”, anotou Shirley em um dos seus cadernos (veja a análise feita por Cirilo dessas anotações). “Ativo, dinâmico: chama”, assinala ela igualmente. Assim, a um tempo, algo para além do que está aqui agora e algo que já não é o que era. Como uma Chama II, sendo obra de arte, também tem tais características – e não se deixa aprisionar.

Shirley Paes Leme é escultura, gravadora, desenhista e professora. Formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em belas artes, foi aluna do escultor Amílcar de Castro. Nos anos 1970, interessa-se pelo desenho; na década seguinte, pela geografia humana e pelo estudo do espaço, nisso sendo muito marcada pela arquitetura vernacular, ou seja, que utiliza técnicas tradicionais, populares – Como uma Chama II também pode ser lida por esse viés, ao passo que, defende Chiarelli, as suas esculturas “sempre acabam lembrando também objetos de cestaria, habitações, adereços corporais e embarcações indígenas ou caboclas”. Saiba mais sobre Shirley na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.

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