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Artistas Negros | Como se tornar invisível: o Poupatempo de Aline Motta

Com manipulação da filmagem de uma praça em São Paulo, a artista discute as ações do Estado sobre cidadãos que, "enquadrados" pela burocracia, têm a individualidade anulada

Publicado em 04/03/2021

Atualizado às 17:15 de 16/08/2022

Artistas Negros destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural (IC). A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.

Aline Motta
Poupatempo, 2015
vídeo, cor, som, 2'50"
Acervo Banco Itaú

por Duanne Ribeiro

A gente pisa um lugar e já não é mais o mesmo. No ambiente da escola, da faculdade, somos alunos; entramos em uma sala de aula e vemos e nos veem, agimos e nos tratam de acordo com essa definição. Isso ocorre no trabalho – somos profissionais, colaboradores, funcionários, cada palavra com sua expectativa – e no nosso convívio pessoal – entre amigos, atuamos de um jeito; na família, já somos outros... Os lugares físicos e as posições sociais são também esse jogo das identidades, em que sentimos ser mais ou menos "de verdade", em que podemos ser apagados.

Veja também:
>> Todos os textos, nas várias curadorias, sobre obras do acervo do Itaú Cultural

Em Poupatempo, vídeo da artista visual Aline Motta, temos uma situação desse tipo. Nele, vemos em perspectiva fixa uma praça nas cercanias de um posto do Poupatempo – serviço do governo de São Paulo voltado para a emissão de documentos – na Sé, no centro da capital paulista. Quando as pessoas passam por essa praça, sua imagem é distorcida, os corpos pouco a pouco vão sendo cobertos e se misturam à pedra cinzenta. Já quem passa ao largo do logradouro permanece intacto.

Por quê? No nosso contato primeiro com a obra, só sabemos desta regra: passou por ali, sumiu. Se seguimos a fazer perguntas sobre o que vemos, podemos descobrir outras coisas. No canto esquerdo inferior, o totem do Poupatempo nos diz onde estamos; ao lado dele, uma guarita com dois guardas. Nosso segundo passo acha isto: em meio a cidadãos que circulam (e alguns que desaparecem), está no lugar o equipamento do Estado, sempre visível, fixo, por assim dizer.

Uma praça é, aliás, outra dessas ferramentas sociais – item de grande relevância na história das cidades, onde a vida pública muitas vezes ocorreu e ocorre. A Praça da Sé, na região dessa que observamos, foi palco de um dos maiores comícios das Diretas Já, em 25 de janeiro de 1984 – 300 mil brasileiros se reuniram para exigir o direito de votar para presidente sem intermediários. Também nesse local, em 31 de outubro de 1975, 8 mil pessoas compareceram ao ato ecumênico em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura civil-militar (saiba mais sobre Herzog no site do programa Ocupação). E esses são só alguns dos fatos acontecidos lá...

Muito bem, temos polícia e burocracia, praça e passantes. Talvez esse seja um passo mais difícil, mas, se trocamos em graúdos tais elementos, um significado forte pode se evidenciar: quando os cidadãos se aproximam desses mecanismos de controle e põem o pé no espaço público, somem ou são tragados, nulificados. É nesse sentido, com efeito, que Aline descreve a sua criação:

Através de técnicas de animação, mesclando foto, filme e intervenção na imagem, o vídeo pretende discutir questões de invisibilidade. Trata do efeito que uma série de documentos, classificações e regramentos podem regular e normatizar uma vida. Quanto mais se é enquadrado como “cidadão”, mais a individualidade é anulada. Corpos se tornam uma massa amorfa, sem identidade, subrepticiamente integrados à paisagem urbana. É assim que poupamos tempo?

A artista ressalta ainda outras características do vídeo. Primeiro, o local filmado, que, como outros no Brasil, nota ela, "é mais um espaço público que não se configura como tal". Isso porque é uma praça gradeada, com duas saídas, e poucos transitam através dela. Segundo, abaixo desse lugar há "rios soterrados" – por isso, talvez, os sons aquáticos que ouvimos a cada passo das pessoas na pedra. Terceiro, o recurso usado para borrar os caminhantes – um "efeito mosaicado" – quer remeter ao que os programas de televisão usam para esconder a imagem de alguém.

Dessa forma, outras metáforas reforçam a ideia geral: soterrados como rios, nem tanto excluídos como apartados para usos específicos, os indivíduos são formatados pelo poder – ao menos em certas ocasiões. Visibilidade e invisibilidade, mostra Aline, podem se alternar, distribuem-se nos diferentes territórios e situações. E a artista parece aspirar a duas coisas: um enriquecimento do tempo que não seja só a rapidez da documentação e uma individualidade que seja íntegra.

Gostaria de pensar que tivemos exemplos desses indivíduos íntegros há pouco neste ensaio. Quando a Praça da Sé assistiu àqueles pedidos de democracia e àquela denúncia de um crime, esteve repleta de cidadãos propriamente ditos, em um espaço propriamente público, fazendo-se visíveis à revelia. Invertendo a questão de Aline, podemos dizer: assim investimos o tempo.

Aline Motta, além de artista visual, é fotógrafa e cineasta, graduada em comunicação social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-graduada em cinema pela The New School University, em Nova York, nos Estados Unidos. Em boa parte da sua produção artística, volta-se para o resgate da sua ancestralidade negra e africana, com intensa pesquisa documental. Realizado nessa direção, seu projeto Pontes sobre Abismos – videoinstalações, fotos e documentos que recuperam a trajetória dos seus familiares – foi incentivado pelo Rumos Itaú Cultural 2015-2016. Em 2017, também com o IC, Aline fez expografia e roteiro audiovisual da Ocupação Conceição Evaristo. Leia mais sobre ela na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.

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