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Conversas com montadoras do cinema brasileiro

Na coluna “Grande angular” de fevereiro, Luísa Pécora fala sobre as mulheres montadoras cinematográficas brasileiras e sua arte “invisível”

Publicado em 22/02/2023

Atualizado às 08:37 de 10/05/2023

Por Luísa Pécora

Invisível é uma palavra frequentemente usada em conversas, livros e reportagens sobre a montagem cinematográfica. Costuma-se dizer, por exemplo, que a boa montagem é a que permanece invisível ao espectador, ou seja, aquela na qual a passagem de um take para o outro se dá de forma tão natural que se torna imperceptível. Permanecemos envolvidos na narrativa, e apenas nela, sem nos darmos conta de que um corte aconteceu.

Talvez a popularidade dessa ideia tenha algo a ver com a certa invisibilidade dos profissionais da montagem, raramente reconhecidos como deveriam pelo papel criativo que desempenham na realização de um filme. De forma geral, diretores e roteiristas são vistos como autores, enquanto os montadores são tidos como técnicos – aqueles que, como na definição do dicionário, são responsáveis pela operação de “selecionar, combinar e unir trechos de filmagens em uma sequência”.

Tal definição pode não ser incorreta, mas certamente é incompleta. “Fico triste quando as pessoas me apresentam como alguém que cola as imagens, que escolhe os takes e coloca um ao lado do outro”, afirma a montadora Karen Akerman. “Não pode haver forma mais redutora de qualificar a montagem. Nós construímos personagens, estruturamos narrativa, manuseamos emoções, inventamos linguagem, fazemos com que a cena possa ser cômica ou trágica. Sim, nós (também) fazemos isso!”.

Imagem do filme Amigo secreto, onde três pessoas assistem uma televisão com imagens do político Deltan Dalagnol. As pessoas estão sentadas em uma grande mesa de madeira.
Imagem do filme Amigo secreto, colaboração da montadora Karen Akerman com a diretora Maria Augusta Ramos (imagem: divulgação)

O comentário de Akerman está publicado em Na ilha: conversas sobre montagem cinematográfica (Editora Paraquedas, 2022), livro que põe em primeiro plano essa arte tantas vezes chamada de invisível. A obra é um desdobramento do documentário Na ilha (2020), dirigido pelos também montadores Julia Bernstein e Vinicius Nascimento, que entrevistaram 27 colegas de profissão contando com o apoio do produtor e pesquisador Bem Medeiros. Editadas pelo jornalista e documentarista Piero Sbragia, as entrevistas foram reunidas no livro como depoimentos nos quais cada profissional “fala” em primeira pessoa.

Há dez mulheres entre os 27 entrevistados, todas com inegável importância no cinema brasileiro: além de Akerman, foram ouvidas Cristina Amaral, Idê Lacreta, Isabela Monteiro de Castro, Joana Collier, Jordana Berg, Karen Harley, Marília Moraes, Natara Ney e Vânia Debs (que morreu em 2021). Embora estejam em menor número, elas são questionadas sobre os mesmos assuntos que os homens: o que despertou seu interesse pela área, o início da carreira, os bastidores de trabalhos importantes, os desafios e prazeres da ilha de edição. Se em tantas ocasiões as mulheres que trabalham no cinema são convidadas a falar apenas sobre o que é ser uma mulher que trabalha no cinema, em Na ilha elas são instigadas a discorrer sobre seu processo criativo e o modo como entendem e desempenham seu ofício.

Fotografia da montadora Jordana Berg com dois dos autores do livro
A montadora Jordana Berg com dois dos autores do livro "Na ilha", Julia Bernstein e Piero Sbragia (imagem: Laura Romero)

Ao longo dos depoimentos, algumas ideias e opiniões se repetem. Há, por exemplo, uma frequente valorização da assistência de montagem como espaço de formação e da relação de troca entre diretores e montadores na ilha de edição. Muitas profissionais destacam a importância de assistir a tudo o que foi filmado sem ideias preconcebidas e referem-se ao material bruto como algo a ser ouvido ou sentido: “Nosso aprendizado e ofício [é] saber escutar, tanto o material bruto como a direção”, define Akerman. “Acho que o material fala, fala muito”, opina Jordana Berg. “Vou respondendo àquilo que vou sentindo”, diz Idê Lacreta. 

Fica claro, também, o quão equivocada é a imagem do montador como mero operador de um programa de computador. Juntos, os depoimentos dessas profissionais revelam um ofício que requer não apenas técnica e paciência, mas também personalidade, sensibilidade e conhecimento das diferentes contribuições artísticas que, juntas, criam um filme. 

Abaixo, destaco trechos dos depoimentos que mais gostei de ler:

CRISTINA AMARAL
Montadora de Alma corsária (1996) e Serras da desordem (2006)

“É o material que vai me guiando. Preciso assistir a tudo com calma, se possível mais de uma vez. Às vezes não dá pelo volume, mas o ideal é que você assista mais de uma vez. É um mergulho em uma nova vida que se apresenta para mim. E dentro disso, descobrir o trajeto, descobrir o ritmo. Não adianta chegar com algo já preestabelecido, uma metodologia já pré-organizada. Não existe a chave do resultado. Precisamos fazer esse mergulho, precisamos nos perder. Tem uma hora que dá um desespero, que a gente acha que não vai conseguir. Em todo filme! Enquanto não bate esse desespero, eu acho que tem alguma coisa errada. O desespero é a chave. Só a partir dele realmente enxergo o filme e ele se realiza para mim.”

Retrato da montadora cinematográfica Cristina Amaral. A artista está em pé, de braços cruzados, em frente a uma projeção de um carro. Cristina é uma mulher negra, de cabelos curtos, e veste blusa laranja e calça preta.
Cristina Amaral em foto para a 12ª CineOP - Mostra de Cinema de Ouro Preto, evento no qual foi homenageada (imagem: Laura Del Rey)

JOANA COLLIER
Montadora de Juízo (2007) e Pacarrete (2019)

“O montador não é um técnico, é um autor. E os bons diretores sabem dar espaço para o montador trabalhar. Por isso, a relação de confiança do diretor com o montador é essencial. E o desenvolvimento do terceiro olhar que se cria nessa relação entre montador e diretor é realmente a marca da montagem de um filme. Mesmo que as alterações na montagem sejam radicais em relação à proposta inicial do roteiro, um novo olhar surge desse encontro. O diretor traz uma proposta e expectativa em relação ao filme, mas precisa se surpreender também durante a montagem. Precisa ver o filme não como ele o imaginou no roteiro, mas o que pode ser criado, senão não precisaria de parcerias. A função do montador é perceber o efeito da relação de fricção do diretor com todos os envolvidos no processo. Contribuições que fizeram emergir algo inesperado, despertando elementos originais na narrativa. A montagem é essa etapa de reflexão e escritura em que se agregam os atravessamentos dessa arte de equipe.”

JORDANA BERG
Montadora de Jogo de cena (2007) e Cine Marrocos (2018)

“Desejo que eu não tenha estilo nenhum e que embarque no estilo dos outros. Reconheço minha maneira de pensar a montagem de um filme como um caminho que seja da supressão até o limite. Eu busco a quantidade de coisa que posso tirar e ainda manter o filme em pé. Porque, quanto mais eu tirar sem destruir o filme, sem que faltem coisas para ele, mais eu vou pegar essa parte que saiu e exigir, de quem está vendo o filme, que ele devolva isso para a narrativa. É um pensamento que eu tenho quando monto: Qual é a menor quantidade de informações que eu posso dar para que o filme fique legível, compreensível, e que o espectador seja capaz de, ele próprio, completar para mim essas informações? Uma quantidade mínima de coisas que sejam suficientes para que o cara não se sinta idiotizado, recebendo tudo pronto. O espectador precisa interagir com o filme a partir da inteligência dele.”

Cena do documentário Jogo de cena, com a atriz Maria Fernanda Cândido. A atriz está sentada e conversa com o diretor Eduardo Coutinho, que está de costas para a câmera. Ao fundo há cadeiras de teatro vermelhas.
Cena do documentário Jogo de cena, colaboração da montadora Jordana Berg e o diretor Eduardo Coutinho (imagem: divulgação)

KAREN HARLEY
Montadora de Baixio das bestas (2006) e Que horas ela volta? (2015)

“É um trabalho de corte, ou melhor, construção de emoção. Equilíbrio e dança de emoções na montagem. É a potência da imagem e do som que vai determinar a duração do plano – que, na verdade, já vem dentro do material. Você se dá conta dessa potência, tanto uma paisagem natural quanto uma paisagem humana, um retrato, um rosto, um depoimento. Na verdade, eu acho que o corte só deve ser feito quando tem que cortar mesmo; se não der, deixa o plano rolar. Foi uma coisa que eu aprendi com o João Paulo de Carvalho nos meus primeiros trabalhos. Se o plano é bom, não corta, deixa rolar, porque é assim que você vai se emocionar com a história.”

VÂNIA DEBS (1950-2021)
Montadora de Durval Discos (2002) e A história da eternidade (2014)

“Não me interessei em dirigir filmes porque eu acho que, na montagem, você aprende muito a dirigir. Eu insisto muito com os alunos, até aqueles que só pensam em dirigir, que fazer a montagem, acompanhar a montagem dos próprios filmes é um espaço privilegiado para entender a movimentação de atores, a necessidade de um plano de detalhe ou não, o saber cortar de um plano geral para um plano médio ou para um primeiro plano. É um espaço de aprendizagem, principalmente, da direção. É você entender de dramaturgia, de fotografia, de som, porque tudo isso tem que ser levado em consideração na hora da montagem.”

Veja mais:
>> Além da direção: outras mulheres que fazem cinema
>> O que as pioneiras do cinema nos ensinam sobre preservação
>> Versões do tempo – Modulações do tempo e a montagem no documentário

Embora eu tenha elogiado o fato de Na ilha convidar as profissionais a falar sobre seus processos criativos, e não apenas sobre questões de gênero, também é verdade que o Brasil carece de levantamentos e estudos capazes de traçar um retrato mais preciso da presença das mulheres e das pessoas não brancas nessa função.

A montagem nunca foi contemplada pelas pesquisas sobre gênero e raça da Agência Nacional do Cinema (Ancine), que começaram em 2014 e foram descontinuadas no governo de Jair Bolsonaro (a última edição é de 2018). Em busca de dados “oficiais” para esta coluna, encontrei o censo de 2020 da Associação de Profissionais de Edição Audiovisual, conhecida como edt., segundo o qual 56,2% de seus associados são mulheres e 74% são pessoas brancas.

Merece destaque o artigo de Elianne Ivo Barroso e Natalia Teles Fróes no livro Trabalhadoras do cinema brasileiro: mulheres muito além da direção (Nau Editora, 2022), que promove um levantamento de montadoras do cinema brasileiro entre 1900 e 1980 a partir da base de dados da Filmografia Brasileira, hospedada no site da Cinemateca. Em que pese o fato de que nem todos os filmes incluem registros referentes à montagem, o primeiro nome feminino encontrado pelas autoras foi o de Juanita Jacko, montadora de O grito da mocidade, de Raul Roulien, lançado em 1936.

Uma nova menção a uma profissional mulher ocorre apenas em 1948, quando Carla Civelli é registrada como assistente de montagem em É com este que eu vou, de José Carlos Burle, e a própria Juanita Jacko só volta a ser citada em 1949, com Jangada, de Raul Roulien. Portanto, as mulheres começaram a aparecer com alguma constância nas equipes de montagem somente no final dos anos 1940, o que não significa que estivessem completamente ausentes antes disso. Sabe-se, afinal, que muitas contribuições femininas no cinema, como em tantas outras áreas, foram apagadas.

Imagem do filme O abismo prateado, com a atriz Alessandra Negrini. Na imagem a atriz está em pé em uma calçada. Alessandra é uma mulher branca, de cabelos longos e castanhos e usa uma blusa cor de rosa.
Filme O abismo prateado, colaboração da montadora Isabela Monteiro de Castro e o diretor Karim Aïnouz (imagem: divulgação)

Ao longo dos anos, o número de montadoras no cinema brasileiro vai aumentando, ainda que o cenário permaneça desigual. Na década de 1980, a última analisada pela pesquisa, há 81 filmes com mulheres na montagem entre os 456 avaliados. “A criação das escolas de cinema no final dos anos 1960 (UnB, USP e UFF) vai gradativamente mudar a feição do mercado de trabalho cinematográfico, valorizando o papel da formação técnica e do conhecimento em geral na área”, afirmam as autoras, acrescentando que “as ondas feministas também auxiliaram nessa mudança, motivando muitas mulheres a ocupar espaço e a lutar por seus direitos”.

Aos leitores que querem conhecer melhor o trabalho das montadoras, finalizo esta coluna com uma lista de filmes nacionais dirigidos e montados por mulheres que podem ser vistos gratuitamente na Itaú Cultural Play.

São eles: Mar de rosas (1977), de Ana Carolina, com montagem de Vera Freire; A hora da estrela (1985), de Suzana Amaral, com montagem de Idê Lacreta; Vida de menina (2003), de Helena Solberg, com montagem de Diana Vasconcellos; Os dias com ele (2013), de Maria Clara Escobar, com montagem de Júlia Murat e Juliana Rojas; Jonas e o circo sem lona (2015), de Paula Gomes, com montagem de Andrea Kleinman; Café com canela (2017), de Ary Rosa e Glenda Nicácio, com montagem de Poliana Costa e Thacle de Souza; Fartura (2019), de Yasmin Thayná, com montagem de Luana Cortes; A rainha Nzinga chegou (2019), de Júnia Torres e Isabel Casimira, com montagem de Carolina Canguçu; Chico Rei entre nós (2020), de Joyce Prado, com montagem de Tatiana Toffoli; e Já que ninguém me tira pra dançar (2021), de Ana Maria Magalhães, com montagem de Paula Sancier.

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