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Dercy Gonçalves: uma antivedete no cinema brasileiro

Na coluna Grande angular deste mês, Luísa Pécora fala sobre a estrela das chanchadas

Publicado em 28/06/2023

Atualizado às 16:33 de 13/07/2023

Por Luísa Pécora

No que você pensa quando pensa em Dercy Gonçalves? Fiz essa pergunta a diversas pessoas nas últimas semanas e pude perceber que a comediante segue viva no imaginário do público, mesmo 15 anos depois de sua morte. De forma geral, as respostas fizeram menção à carreira longeva (86 anos, a mais longa de qualquer atriz do mundo, segundo o Guinness world records) e à irreverência de Dercy: os selinhos em celebridades, os seios à mostra na televisão e na Sapucaí, o humor sem freios e, principalmente, os palavrões.

 Menos lembrada foi a contribuição de Dercy para o teatro, o cinema e a televisão, talvez ofuscada pela exuberância de sua persona pública ou pouco valorizada dado o seu caráter popular. No entanto, a efeméride de sua morte (a atriz faleceu em 19 de julho de 2008, aos 101 anos) oferece novas oportunidades de rever seu legado. Uma delas é o monólogo Nasci pra ser Dercy, estrelado por Grace Gianoukas, que estreou em janeiro em São Paulo (SP) e agora roda pelos palcos do país; e outra é a mostra Dercy Gonçalves – vedete transviada, que chegou em maio à Itaú Cultural Play, plataforma de streaming gratuita do Itaú Cultural (IC). A homenagem reúne seis filmes: A baronesa transviada (1957) e A grande vedete (1958), dirigidos por Watson Macedo; Cala a boca, Etelvina (1958) e Minervina vem aí (1959), de Eurides Ramos; e Uma certa Lucrécia (1957) e Dona Violante Miranda (1960), de Fernando de Barros.

Na imagem está uma mulher no alto, com as mãos unidas na altura da boca, como se fizesse uma oração.  Ela tem os cabelos loiros e curtos, usa chapéu e luvas. Atrás dela, mais abaixo, já dois homens e uma mulher uniformizados.
Dercy no filme "Cala a boca, Etelvina" (imagem: Frame do filme "Cala a boca, Etelvina")

A história de Dercy com o cinema começou em sua cidade natal, Santa Maria Madalena (RJ), quando era funcionária de uma sala local e aproveitava para ver os filmes em cartaz. Então com 16 anos, Dercy copiava os penteados, a maquiagem e as poses das atrizes Theda Bara (1885-1955) e Pola Negri (1897-1987), para escândalo de algumas famílias – inclusive a dela. “Quando meu pai me viu com a cabeça pelada, dois cachinhos puxados na cara, partiu pra cima de mim”, contou a comediante na biografia Dercy de cabo a rabo (Editora Globo, 1994), escrita por Maria Adelaide Amaral. “Apanhei pra cacete porque estava com cabelo de puta. Mas eu não sabia o que era puta. Fazia tudo na maior ingenuidade, fazia porque achava lindo. Eu precisava me espelhar em alguém e me espelhei naquelas atrizes, sem pensar que pudesse estar agredindo ou me degradando.”

 Segundo Dercy, foi nessa época que ela começou a “ignorar rótulos”, inclusive aqueles que poderiam tê-la desencorajado a seguir a carreira de atriz: “Nos anos 20, 30, 40 e até 50, teatro era sinônimo de gentinha que não entrava em casa de família”, relembrou. “Ao me chamar de puta, Madalena me colocava na mesma categoria de artista, e não havia nada que eu achasse mais bonito. Até me orgulhei do título. Sou puta? Então quero ser uma grande puta.”

  Estrela das chanchadas

 Dercy fez sua primeira aparição na telona em Samba em Berlim (1943), de Luiz de Barros, e a última em Nossa vida não cabe num Opala (2008), de Reinaldo Pinheiro, lançado pouco tempo após sua morte. A homenagem da Itaú Cultural Play destaca um período curto mas importante de sua carreira, quando ela protagonizou chanchadas de sucesso produzidas por Oswaldo Massaini (1919-1994) nos estúdios Cinedistri. Nas palavras do pesquisador Luciano Vaz Ferreira Ramos, que estudou a obra de Massaini, Dercy era para a Cinedistri “o mesmo que Oscarito representava para a Atlântida”. Várias personagens da atriz tinham nomes com a mesma terminação (Gonçalina, Etelvina, Minervina, Valentina), uma estratégia do produtor para “sublinhar ao público a continuidade de seu empreendimento”.

 Dercy era uma protagonista natural para aquele momento do cinema brasileiro. Vinha do teatro de revista, que influenciou fortemente a chanchada, e tinha o apelo cômico e popular no qual o gênero apostava para fazer sucesso. Mas a passagem para a telona não veio sem desafios para a atriz, que sentia falta da interação com a plateia e da maior liberdade dos palcos. “No cinema, como na televisão, é o diretor que conduz a gente, a gente perde o comando, é a máquina que nos leva”, afirmou em Dercy de cabo a rabo. “Para uma artista do meu estilo, era uma bosta. Assim mesmo, acabava fazendo do meu jeito e, no fim, os próprios diretores até pediam pra eu improvisar. ‘O texto é este, agora você faz.’”

Na imagem, em preto e branco, está uma mulher branca e de cabelos claros, usando um chapéu com uma fita amarrada no queixo, um colar  e casaco. Ela olhar de forma repreensiva para um homem que está ao seu lado. Ele é branco,  tem cabelos lisos, bigode e usa terno e gravata,
Cena do filme "Minervina vem aí" (imagem: Frame do filme "Minervina vem aí")

 Além das improvisações, Dercy levou para o cinema outras marcas de seu trabalho no teatro, como a atuação de corpo inteiro, que abusa da gesticulação e dos movimentos e expressões exageradas. Suas personagens são mulheres divertidas e espertas que falam alto, dizem o que pensam e não levam desaforo para casa.

 Para a pesquisadora Virginia Maisano Namur, professora de humanidades da Faculdade de Tecnologia de São Paulo (Fatec/SP), o que Dercy nos deixou na passagem pelo cinema foi sua coragem para enfrentar novos meios e sua insistência em personalizá-los em vez de apenas moldar-se a eles. “Também vale falar de sua ágil inventividade expressiva, percebendo muito rapidamente que a imagem era um veículo especialmente pródigo para sua cômica linguagem corporal e levando-a ao extremo”, afirma a pesquisadora em entrevista à coluna. “Observar o discurso facial ou corporal da atriz nesses filmes é um prazer à parte, e nos assombra seu poder de, num cinema ainda incipiente, compreender tão rapidamente para que serviam as imagens.”

  A antivedete

 Virginia debruçou-se sobre a carreira da artista em Dercy Gonçalves – o corpo torto do teatro brasileiro, tese de doutorado apresentada em 2009 e na qual definiu a atriz como “antivedete”, uma ideia também presente no título da mostra da IC Play. De acordo com a pesquisadora, a vedete é a personagem central do teatro de revista de último ciclo, marcado por “superproduções das quais a beleza e a graça feminina eram as grandes estrelas”, e nas quais os quadros cômicos eram “levemente apimentados pela malícia da piada e pela exacerbação da sensualidade”.

 É nesse contexto que Dercy encontra um caminho particular. “Digamos que Dercy, sem ter sido feia, não era exatamente uma beleza, muito menos sensual. Sabia cantar e dançar bem, mas já que não era este o critério para chegar ao papel principal, por mais esforço que fizesse jamais seria primeira vedete”, explicou a autora. “Como nunca foi de ficar em segundo plano, mas como também não era burra de dar ‘murro em faca’, tratou de buscar no gracejo um nicho próprio. A princípio como parte do coro ou vedete menor, foi ganhando espaço com certas graças brejeiras, entre elas a de ousar desfilar na passarela exagerando o rebolado e trejeitos das vedetes, a ponto de dissimuladamente torná-los caricatos.”

 Para a pesquisadora, Dercy “lavou a alma” em A grande vedete, no qual interpreta Janete, uma veterana e bem-sucedida estrela do teatro musicado que ignora o declínio da própria carreira. Seu secretário alimenta a ilusão de eterno auge contratando plateias e enviando flores em nome de fãs que não existem, mas a farsa se torna insustentável quando Janete decide assumir, ela mesma, um papel escrito para uma atriz bem mais jovem. É uma trama à la Crepúsculo dos deuses (1950) – clássico de Billy Wilder –, na qual Dercy, então com apenas 51 anos, é chamada de “idosa”. “Ela não é mais vedete nem poderia ser”, diz o secretário, vivido por Humberto Catalano, “mas é um ídolo do público.”

 O filme, que dizem ter sido o favorito de Dercy, foi realizado quando a atriz tentava conquistar novas plateias para salvar sua companhia de teatro. “Dercy não só estava em crise profissional e financeira, buscando um gênero teatral que lhe trouxesse público, mas também em crise criativa, procurando reajustar seu próprio modo de atuar”, afirmou Virginia. “Embora esteja fisicamente muito bem e surja na tela como uma artista bem-sucedida, refinada e elegante, ainda é como anti-vedete que se representa, pois, o filme, apesar do final melodramaticamente feliz, é uma história de declínio, não de apogeu. Nesse sentido, é também a história do declínio do próprio teatro de revista.”

 Contradições

 A grande vedete se diferencia dos demais filmes da mostra pelos traços melodramáticos e pela própria personagem de Dercy, que em geral interpretava mulheres da classe trabalhadora que ascendem socialmente por causa de acontecimentos inesperados, confusões ou troca-trocas típicos das chanchadas. Em A baronesa transviada, ela é uma manicure que descobre ser filha de uma mulher riquíssima; em Cala a boca, Etelvina, uma empregada doméstica que tem de se passar pela patroa; em Minervina vem aí, uma empregada que desperta a paixão de um homem rico; em Uma certa Lucrécia, uma costureira que, num sonho, se torna parte da nobreza da Veneza renascentista.

 

Na imagem, em preto e branco, uma mulher branca, de cabelos claros, está deitada em uma cama. Ela usa um vestido com pedrarias.
Dercy em "Uma certa Lucrécia" (imagem: Frame do filme "Uma certa Lucrécia")

Para Virginia, as protagonistas de Dercy retratam “o mundo feminino da classe baixa da sociedade da época, em que só mulher pobre trabalhava”. “Por outro lado, também é um elogio ao trabalho, aos moldes do programa progressista de industrialização iniciado na década de 1940 por [Getúlio] Vargas”, afirmou. “[As personagens] buscam legitimar socialmente essa força de trabalho, muitas vezes dando-lhe até certo glamour.”

 Há momentos em que essas protagonistas fogem à conduta que se espera das mulheres. Além do escracho no modo de falar e se portar, Dercy aparece bebendo, vestindo roupas curtas, manifestando interesse sexual (“Adoro homens”, diz em Uma certa Lucrécia) e falando de igual para igual com homens que se julgam mais inteligentes do que ela (sobretudo os de classe social mais alta). 

 Nos dois filmes que têm o mundo artístico como pano de fundo – A grande vedete e A baronesa transviada, no qual a manicure investe sua inesperada herança na produção de um filme –, Dercy é mostrada como a dona do dinheiro e, portanto, a responsável por grande parte das decisões criativas. Em A grande vedete, é ela quem seleciona o elenco e aprova os figurinos; em A baronesa transviada, atua nos bastidores e é vista ao lado da câmera, embora não assuma explicitamente a função de diretora.

 Ao mesmo tempo, os filmes colocam ao lado de Dercy figuras femininas que seguem os padrões da época: mulheres casadas ou noivas que são mais discretas e menos barulhentas. Virginia Namur destaca, também, que a já mencionada ênfase em confusões e troca-trocas, bem como no casamento com homens ricos, faz com que as chanchadas raramente sugiram possibilidades femininas de ascensão social ligadas a mérito. “Se formos examinar os filmes de Dercy sob a perspectiva feminista, observaremos que são, na sua maior parte, bem conservadores”, afirmou.

 Também a própria artista era conservadora em alguns aspectos, ainda que tenha ficado conhecida pela ousadia e pela transgressão. Em 1986, ao participar do programa Roda viva, ela disse que se achava moralista; em 2008, Decimar Gonçalves, sua única filha, contou ao apresentador Pedro Bial que a mãe não deixava que ela falasse palavrão e fazia questão de que ela se casasse virgem.

 Para Virginia, Dercy era uma mulher diferente para sua época, mas não porque fosse feminista. “O que a diferenciava não só como mulher, mas como pessoa, é que ela tinha princípios próprios e pronto: os seguia, nem que gerassem paradoxos em sua vida. Sabia pensar muito bem por outra lógica, não linear, heterodoxa, na qual tinham lugar inclusive as contradições”, afirmou a pesquisadora. “O que a movia e punha em luta eram a coragem, a verdade, a solidariedade, o senso de justiça e o bom humor.”

Coluna escrita por:

 Luísa Pécora

Luísa Pécora

Jornalista e criadora do site Mulher no cinema.

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