Acessibilidade
Agenda

Fonte

A+A-
Alto ContrasteInverter CoresRedefinir
Agenda

Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea: Fábio Kabral

Entidades africanas, seres feitos de carne, espírito e metal e antigos mundos futuristas estruturam o afrofuturismo de Fábio Kabral

Publicado em 11/05/2023

Atualizado às 18:33 de 11/05/2023

Por Enéias Tavares

A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, dedicado à literatura fantástica nacional, a curadoria e a apresentação são do escritor e pesquisador Enéias Tavares. 

Entre Orixás, Caçadores e Robóticos: Fábio Kabral

Altas tecnologias e imaginários antigos. Armas potentes e sociedades distópicas. Heróis, heroínas, orixás e seres mágicos vindos do passado para iluminar o presente com visões de futuros possíveis e impossíveis. Representatividade de gêneros, culturas e orientações, não raro enfatizando um amanhã em que a cultura afro ganhe destaque, valorização e protagonismo. Num mundo de encanto místico, assombro tecnológico e horrores sociais, histórias insólitas têm, já por décadas, nos instigado a repensar o Brasil e o que somos enquanto país multicultural.

Mas poucos estilos e estéticas compreendem um potencial tão grande quanto o afrofuturismo, um gênero literário de grande pertinência em nossos dias, tanto como fomento ao mercado editorial de viés fantástico quanto convite a reconsiderarmos nossas dividas históricas e as culturas de hoje e de ontem que precisam ser vistas e conhecidas. Além disso, é um gênero obrigatório àqueles que desejam fechar os olhos para o presente e ver o amanhã sob óticas esperançosas ou desalentadoras, pois como toda a ficção científica distópica o faz, o afrofuturismo também serve de alerta para o que estamos deixando às próximas gerações.

Em Fantástico brasileiro (Arte & Letra, 2018), eu e Bruno Anselmi Matangrano, dedicamos um capítulo ao imaginário de matriz africana. Nele, na página 219, fizemos o seguinte adendo: “Ao contrário do imaginário europeu, que sempre permeou e ainda permeia nossa literatura, cultura e artes em geral, ou do imaginário indígena que ao longo de toda nossa história foi sendo constantemente resgatado como vimos em capítulos anteriores, por nomes como Inglês de Souza, Mário de Andrade, Simão Lopes Neto, Câmara Cascudo, Franklin Cascaes e pelos fantasistas” dos últimos anos, “o imaginário de matriz africana, apesar de presente em nossa cultura e no cotidiano, foi deixado de lado da maior parte de nossa literatura”. 

A fim de compensarmos essa defasagem, fizemos um pequeno recorte de onze autores que se dedicaram a esse imaginário: Reginaldo Prandi, Carmen Sagenfredo, A. S. Franchini, Raul Longo, Carolina Cunha, Rogério Andrade Barbosa, Jarid Arraes, Muniz Sodré, Fábio Kabral, JP Pereira e Simone Saueressig. Os primeiros seis nomes dedicaram suas produções a recontar mitos e lendas, em obras como Mitologia dos Orixás (2000), As melhores histórias da mitologia africana (2008) e Filhos de Olorum – contos e cantos do Candomblé (1980 e 2011). Já os demais, partiram do imaginário africano para contar novas histórias, como em As lendas de Dandara (2015), na trilogia Deuses de dois mundos (2013-2015) e em obras como O palácio de Ifê (1989) e A estrela de Iemanjá (2009).

Quanto ao afrofuturismo – termo cunhado pelo norte-americano Mark Dery em 1994 a partir da obra dos artistas Greg Tate, Tricia Rose e Samuel R. Delany –, trata-se de um movimento estético e social, presente em diferentes artes, estilos e iniciativas, que valoriza o protagonismo de personagens, criadores e artistas negros ou pretos, não raro valorizando a história e o imaginário de matriz africana. No caso da produção afrofuturista de ficção científica – gênero inicialmente estudado por Dery – essa reforçaria também esse protagonismo, narrando suas vivências e desafios e adensando suas identidades e trajetórias, não ignorando temas como racismo, preconceito e opressão étnico-racial no contexto da África diaspórica.

O portal da Academia Brasileira de Letras define o termo Afrofuturismo como um “movimento cultural, estético e político que se manifesta no campo da literatura, do cinema, da fotografia, da moda, da arte, da música, a partir da perspectiva negra, e utiliza elementos da ficção científica e da fantasia para criar narrativas de protagonismo negro, por meio da celebração de sua identidade, ancestralidade e história; em geral, obras pertencentes a este movimento procuram retratar um futuro grandioso, caracterizado tanto pela tecnologia avançada quanto pela superação das condições determinadas pela opressão racial, dentro do contexto da vivência africana e diaspórica. (Esta definição não exclui outras formas de descrever ou abordar o movimento, que possui conceituações variadas de diversos estudiosos e pesquisadores do tema.)”

Já o escritor Ale Santos, autor do livro Rastros de resistência: Histórias de luta e liberdade do povo negro (2019) e do romance O último ancestral (2021), em entrevista para a CNN Brasil, fala do surgimento do afrofuturismo “como um movimento social e uma ação política de artistas negros. Ele, basicamente, traz a perspectiva negra, sob os aspectos da estética e sob os aspectos culturais da ancestralidade negra, para as discussões da ciência, para as discussões da ficção científica e para as discussões da tecnologia. Ele acaba utilizando tudo isso para produzir algumas narrativas, que questionam a sociedade, e que colocam o negro em um futuro que ele nunca foi imaginado para estar”.

Seria um exemplo claro da importância e popularidade do gênero o filme Pantera Negra, pertencente ao universo quadrinístico da Marvel Comics. Laureado como sucesso de público e crítica por trazer à frente da tela um tipo de representação e heroísmo que por muito tempo ficou fora do cinema e sobretudo do cinema de entretenimento fantástico, Pantera Negra é um exemplo de como a cultura afro pode ser reinventada em som, imagem, enredo e criação de mundos insólitos. É nesse contexto que a obra de Fábio Kabral se destaca, sendo considerado um dos primeiros nomes representativos do afrofuturismo em nosso país.

Natural do Rio de Janeiro, Fábio aprendeu a gostar de ficção desde cedo graças ao seu pai, um leitor apaixonado por ficção científica. Suas primeiras leituras foram histórias em quadrinhos, criando nele o desejo de trabalhar com escrita ainda bem cedo. Aos 8 anos de idade, ganhou um concurso de poemas em três diferentes categorias. Ao longo da adolescência, ele seguiu devorando mais e mais fantasia, em filmes, livros e videogames. Tornou-se um grande fã de RPG e da série literária O senhor dos anéis ainda no início dos anos 1990, bem antes dela virar filme.

Kabral se formou ator pela Casa das Artes de Laranjeiras (CAL) no Rio de Janeiro no início dos anos 2000. Trabalhou como ator em peças de teatro e fez pontas em novelas e programas televisivos entre 2000 e 2007, quando também atuou como dublador. Em 2008, ingressou no curso de letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em 2011, ingressou no curso de letras da Universidade de São Paulo (USP). Embora os dois cursos tenham sido interrompidos, seu desejo por tornar-se escritor continuou. Após escrever muitas histórias ao longo dos anos, em 2014, finalmente realizou seu sonho de publicar um livro: Ritos de passagem, pela editora Giostri. 

Nela, Kabral cria a cidade de Kinemara, um cenário que mescla elementos de alta fantasia com elementos de ficção-científica e mitologia inspirado nas lendas dos povos de Congo e Angola. Em Kinemara, a história traz ao primeiro plano quatro heróis: um jovem idealista filho de um soldado, um escravizado com pendores poéticos, uma princesa ameaçada por sua própria família e um herói solitário cuja comunidade ancestral foi destruída. A aliança desses heróis os colocará diante de perigos e desafios, alguns mágicos, outros físicos, que incluem monstros, inimigos e ameaças enigmáticas e o aprendizado de um mundo mais hostil que acolhedor.

Em 2017, Fábio realizou o primeiro de muitos rituais iniciáticos nas espiritualidades de matriz africana que viriam ao longo dos anos, e desde então sua visão espiritual e imaginativa vem se expandindo, temática que também marca suas leituras e escritos. No mesmo ano, publicou O caçador cibernético da Rua 13 pela Editora Malê, o primeiro de uma trilogia que tem por cenário a metrópole fictícia Ketu Três e que homenageia o imaginário africano e as crenças do Candomblé.

No romance, seguimos a vida de João Arolê, um mutante-ciborgue que trabalha como caçador de espíritos nefastos. João mora em Ketu Três, um lugar onde a alta tecnologia convive com seres do imaginário dos povos iorubá. O próprio autor define seu cenário como uma “cidade de arranha-céus e carros voadores, lar do povo melaninado, filhos dos Orixás, regido por sacerdotisas-empresárias com poderes paranormais e tecnologias movidas pela energia eletromagnética de espíritos ancestrais”. Meio máquina, meio humano, caberá ao herói Arolê enfrentar várias ameaças enquanto revive lembranças traumáticas de seu passado.

Em 2019 e 2021, Fábio publicou outros dois livros sobre Ketu Três, também pela Editora Malê: A cientista guerreira do facão furioso e O blogueiro bruxo das redes sobrenaturais. No final de 2022, foi anunciado como novo escritor da editora Intrínseca, pela qual deve publicar Sopro dos deuses em 2023. Trata-se de sua obra mais ambiciosa, um grande épico de fantasia inspirado na mitologia afro-brasileira dos Orixás, cujo cenário são as Terras Encantadas de Àiyé, onde habitam caçadores, guerreiros, sacerdotisas e bruxas, além de monstros horrendos e espíritos malignos.

Ao lado de sua produção literária, Kabral também tem produzido artigos e ensaios sobre afrofuturismo para livros e revistas, sendo também entrevistado para jornais e portais quando o assunto é literatura e/ou afrofuturismo. Também já debateu bastante sobre afrofuturismo e afrocentricidade, mitologia e ancestralidade, ficção científica e fantasia em palestras, oficinas, rodas de conversa, podcasts e vídeos no YouTube. Junto com Karolina Desireé, ministrou oficinas de escrita e de criação afrofuturista nas redes Sesc e Fábricas de Cultura da Grande São Paulo.

No conto “A caçadora de cabeças”, escrito exclusivamente para a coluna Encontros, temos uma mostra da imaginação fervilhante de Kabral. Nessa história, seguimos os passos de uma heroína – ou anti-heroína – chamada Apànìyàn, uma coletadora de vidas, histórias e memórias. Numa trama repleta de surpresas, cenas marcantes, ecos de uma tradição oral que Kabral tanto revive quanto reimagina, sobretudo ao investir em paralelismo descritivos e orais, temos acesso a um enredo que celebra e altera o imaginário africano, deixando aos leitores o desejo de saberem mais dessa cultura e de seus personagens. 

Mas não só isso. Em seu conto, e em sua ficção e carreira, Fábio Kabral nos desafia a pensarmos em um futuro no qual igualdade venha a significar respeito e valorização da multiplicidade étnica e cultural que imperativamente ilustra a nossa cultura e a de tantos outros povos, daqui e de lá, do hoje e do ontem. E esse, entre muitos outros êxitos, é o que caracteriza o afrofuturismo como um gênero tanto instigante e atraente quanto pertinente e relevante.

Ilustração para coluna Encontros.
Ilustração para coluna Encontros (imagem: Flavia Ocaranza/Girafa Não Fala)

A caçadora de cabeças

– Você se lembra do mundo da aldeia?

– Do que você está falando…?

– Morra, então.

Apànìyàn acordou ensopada do sangue de todos os idiotas do mundo.

Na verdade, era apenas suor frio mesmo, após mais um sonho desagradável.

Era tarde da noite, sua mente avisou que era hora de trabalhar. Apànìyàn se levantou. As estrelas cintilavam na escuridão do céu sem nuvens e soprava um vento forte ali naquela relva pedregosa; sempre ventava mesmo em todos os cantos da Serra da Névoa, a área das colinas e rios encantados dos Reinos Flutuantes de Ketu.

Na tradição das Terras Encantadas, Apànìyàn era uma odé – uma mestra caçadora, especialista em artes mágicas, armas enfeitiçadas e feitos extraordinários. Os odés são grandes campeões, especialmente entre o povo odessi, pois caçam os monstros e espíritos malignos que assolam a população dos Reinos Flutuantes de Ketu.

Entretanto, Apànìyàn não caça monstros. Caça humanos, seus inimigos prediletos. Até porque Apànìyàn não é humana; é aziza.

Apànìyàn odeia os odessi e todos os demais seres humanos.

É hora de trabalhar, sua próxima presa está perto. Sacou uma faca de pedra do cinto, fechou os olhos e cortou o ombro esquerdo, devagar, num rasgo paralelo à cicatriz mais abaixo; sangrou um bocadinho. Apànìyàn sentia sua alma se expandir pelo espaço, atravessando cantos obscuros protegidos por espíritos sombrios; daí piscou e se transformou em partículas de névoa.

É hora de matar.

Não muito longe dali, havia uma cidade murada, circular, repleta de construções cônicas e sólidas, habitada por pessoas de pele preta e cabelos crespos. Seres humanos de uma típica cidade das terras encantadas. Era uma cidade do povo odessi, situada numa ilha que flutuava nos céus. Nada de interessante estava acontecendo, afinal, era tarde da noite. Naquela cidade, o governante era um senhor que vivia na maior casa. Esse senhor um dia fora um grande caçador e artista, mas hoje era só um preguiçoso que passava o dia inteiro jogado na poltrona, olhando para o nada. Por isso nem percebeu a névoa que rapidamente tomou forma bem na sua frente.

– Boa noite – disse Apànìyàn – O senhor é o chefe Odekole?

– Hã? – o governante se sobressaltou – Guardas! Invasão!!

O senhor Odekole esfregou os olhos remelentos e deu uma boa olhada para Apànìyàn: uma moça pequena, careca, lábios grossos e magra demais até para uma garota humana; longas orelhas pontiagudas; uma pele totalmente desprovida de pelos, do tipo sonho: a pele marrom-acinzentada desses que são mais espíritos do que pessoas; além disso, seus olhos eram grandes, redondos e totalmente negros, poços de pura escuridão.

O velho chefe entendeu que ela era uma aziza, e que sua hora havia chegado.

– Pelo amor dos ancestrais…. – ele começou a implorar.

– O senhor se lembra do mundo da aldeia? – perguntou Apànìyàn.

– Não foi culpa minha! – ele estava de joelhos – Me perdoe, por favor!!

A resposta dela foi uma adaga enfiada entre os olhos do velho chefe, tão rápido que ele mal teve tempo de sentir dor. O que desagradou Apànìyàn imensamente. Com um único golpe de sua adaga curvada, ela decepou a cabeça do chefe e a colocou no cinto, para fazer companhia aos demais crânios humanos que enfeitavam sua vestimenta de folhas.

Ela se desvaneceu em névoa bem no momento em que outros odés apareceram no recinto.

Preciso rasgar o céu ao meio

Antes que eu sangre sem parar…

Quando Apànìyàn voltou a tomar forma física, foi no topo de uma colina solitária que flutuava perto do povoado. Só que os caçadores de Odekole haviam usado seus dons sobrenaturais para seguir o rastro da aziza e já estavam à espera dela: três rapazes odessi, armados com lanças e olhares furiosos.

– Sua desgraçada! – gritou um – Tinha que ser dessa raça de vermes!!

– Olha só esses crânios! – pontuou um outro.

– A gente vai acabar com a sua raça de merda! – decretou o terceiro.

Apànìyàn acionou sua velocidade sobrenatural, movendo-se tão rápido que os caçadores só perceberam um borrão; um borrão que perfurou bem fundo as costelas de um deles, ao mesmo tempo em que sacava uma segunda faca para rasgar a garganta de outro; o borrão então foi aparecer atrás do terceiro para quebrar-lhe o pescoço.

Ainda na forma de borrão, Apànìyàn decepou a cabeça dos três, e as chutou lá para baixo da colina flutuante. E sumiu dali em poucos instantes.

Quando ela desligou sua velocidade, estava a quilômetros de distância, numa floresta perto de um rio. Ela caiu de joelhos, exausta. O vento frio chicoteava as perfurações de lança que havia sofrido no ombro esquerdo e os rasgos na coxa direita. Lambeu o sangue que escorria do corte no rosto que quase lhe custou um olho.

Sou filha da névoa, sou filha do sonho

Sou o sonho de vingança da aldeia perdida…

Era uma vez o povo odessi dos Reinos Flutuantes de Ketu, cuja linhagem herda o sangue de Oxóssi, o Senhor da Humanidade. O povo odessi são as pessoas de pele preta-realeza, cujo tom reflete a majestade do céu e o brilho das estrelas. Os odessi representam a busca por alimento e conhecimento e o pensamento estratégico que a humanidade precisa para estabelecer civilizações; eles possuem dons sobrenaturais sobre o espaço e o tempo, dons herdados dos deuses…

Preciso matar os falsos caçadores que se esqueceram dos caminhos da aldeia!

...Só que os odessi de hoje, na opinião de Apànìyàn, não passam de uma sombra do que já foram. A Grande Soberba arruinou a metrópole flutuante Ketu e fragmentou o reino nas ilhas voadoras que os odessi vivem hoje. A grande linhagem odessi, de reis caçadores, artistas e sábios, ruiu por dentro, deixando-se dominar por espíritos malignos da arrogância, desatenção e preguiça. Será que o povo caçador se reerguerá um dia? Será que conseguirão sobreviver ao ódio de Apànìyàn?

Todas as almas vivem para sempre

Mesmo a minha alma cheia de remorso...

Era por volta da meia noite no cemitério, que fica no meio da floresta, quando Apànìyàn surgiu, pulando de galho em galho, para se encontrar com o seu contratador: o homem da capa vermelha a aguardava. Era um sujeito baixinho, cabelinho crespo, de sorriso sórdido e pele mais escura que a própria noite. Quando Apànìyàn pousou no chão de terra preta, o homem da capa vermelha a saudou:

– Boa noite, pequena.

– Tanto faz – respondeu Apànìyàn.

– Charmosa como sempre – o homem riu – Está feito?

– Aqui está o relatório – disse Apànìyàn, entregando a cabeça do chefe Odekole.

– Perfeito – disse o homem – Deixou o bilhete também?

– Sim – respondeu ela – Quando investigaram os pertences de Odekole, vão achar um bilhete comunicando que as responsáveis pela sua morte são as feiticeiras oxunsi dos Reinos Dourados de Ijexá.

– Ótimo! – exclamou ele – Falta só mais um agora…

– Você se lembra do mundo da aldeia?

– Mas que merda...?

– Morra.

Àpànìyàn acordou suada outra vez após mais um sonho ruim.

Era hora do seu último trabalho, desta vez nas Planícies do Cão de Ferro. O capim se estendia para além do horizonte, verde e vigoroso, junto do rio cristalino que seguia seu curso. As plantações estavam vivas e bem cuidadas.

Já o vilarejo onde Apànìyàn havia cochilado estava bem morto mesmo.

Pessoas mutiladas no chão, nas ruas, em suas casas. Não foi Apànìyàn, não, afinal, ela só mata aqueles marcados para morrer de acordo com os contratos que recebe. Aquele vilarejo havia sido morto pelos ogunsi do Reino de Ferro em seu movimento de expansão e conquista.

Preciso rasgar a terra ao meio

Antes que eu sangre sem pensar…

Era uma vez o povo ogunsi dos Reinos Metálicos de Irê, cuja linhagem herda o sangue de Ogum, o Senhor da Tecnologia. Os ogunsi são o povo de pele preta-ferro, cujo tom reflete a dureza de sua vontade e o brilho de sua genialidade. O povo ogunsi representa o progresso tecnológico e a força para enfrentar obstáculos que a humanidade precisa para evoluir, por isso possuem dons sobrenaturais sobre as máquinas e as batalhas, dons herdados dos deuses…

Preciso matar os falsos guerreiros que se esqueceram dos caminhos da aldeia!

...Só que os ogunsi de hoje, na opinião de Apànìyàn, não passam de uma sombra do que já foram. A Grande Raiva arruinou a sociedade ogunsi dos Reinos Metálicos de Irê, desvirtuou suas pesquisas; se antes construíam tecnologias para melhorar a vida das pessoas, agora só criam máquinas para matar pessoas. A grande linhagem ogunsi, de reis guerreiros, artífices e cientistas, ruiu por dentro, deixaram-se dominar por espíritos malignos da fúria, rancor e teimosia. Será que o povo guerreiro se reerguerá um dia? Será que conseguirão sobreviver ao ódio de Apànìyàn?

Tenho só que cumprir o meu dever

Eles todos devem morrer

Perto da aldeia morta onde Apànìyàn estava, havia uma cidade murada, circular, repleta de construções cônicas e sólidas, habitada por pessoas de pele preta e cabelos crespos. Seres humanos de uma típica cidade das terras encantadas. Era uma cidade do povo ogunsi, repleta de máquinas barulhentas e autômatos de ferro que expeliam vapor. Era final de tarde, Apànìyàn estava na forma de névoa, observando sua próxima presa, o príncipe chamado Ogunfunke; alto e belo, longas tranças enfeitadas com jóias e ferro; sua pele preta escarificada parecia cintilar ao sol.

Pena que aquele foi seu último dia caminhando como uma pessoa viva.

É hora de matar.

Ogunfunke morava uma fortaleza impenetrável de aço; afinal, é a mansão de seu pai, o rei de Irê. Sem ter como entrar, Apànìnyàn teve de esperar sua presa sair. Ela aguardou pacientemente enquanto o príncipe finalmente saiu da cidade para ir caçar na mata.

Infelizmente para ela, o príncipe estava acompanhado de seus autômatos, uma dupla de colossos de ferro barulhentos armados com espadas gigantes.

Como é que alguém vai caçar com tanto barulho de engrenagens e engenhocas?

Apànìyàn então usou aquela barulhada a seu favor; ela se aproximou por trás, rapidamente, para atingir o pescoço do jovem antes que seus guarda-costas, autômatos pesados e desajeitados, conseguissem reagir.

Porém, Ogunfunke não era desatento como o chefe Odekele; o príncipe se virou para agarrar os pulsos da aziza antes que os punhais lhe atingissem o pescoço, e usou sua força sobrenatural para jogá-la longe. Apànìyàn realizou acrobacias para evitar ser espatifada contra os troncos de árvore. O elemento surpresa já era, ela tinha de eliminar seu alvo na marra; o príncipe se defendeu com ferocidade, e ainda havia seus autômatos para lhe proteger. Ela não sabia matar robôs, então teve de forçar seu caminho até, finalmente, alcançar o pescoço de Ogunfunke; quase foi partida ao meio no processo.

Matar até morrer…

Era quase meia noite no cemitério das planícies, quando Apànìyàn surgiu para se encontrar com o seu contratador. Era hora de apresentar seu último relatório para aquele sujeito. Assim que Apànìyàn chegou mais perto, ele a saudou:

– Boa noite, pequena.

– Mais um dia de morte – respondeu Apànìyàn.

– Tão adorável... – o homem sorriu – Esses ferimentos…?

– Eu tive… alguns contratempos – ela disse.

– Eu avisei – o homem de capa vermelha disse com divertimento – Para não subestimar a tecnologia dos ogunsi, já que eles…

– Aqui está o relatório – cortou Apànìyàn, entregando a cabeça de Ogunfunke.

– Muito bom – disse o homem – Deixou o bilhete também?

– Sim – respondeu ela – A essa altura o rei deve estar convocando um conselho de guerra para invadir os Reinos Tempestuosos de Irá, já que deixei no corpo de seu filho morto um bilhete comunicando que as responsáveis pela sua morte são as amazonas vermelhas do povo oiássi.

– Os preparativos estão concluídos! ― exclamou o homem da capa vermelha ― Agora só aguardar a guerra que irá irromper nas Terras Encantadas! ― A gargalhada perversa do sujeitinho preencheu a noite como se fosse uma fumaça sufocante preenchendo o espaço.

Não tem nada aqui

Não tem nada em lugar nenhum

Crânios para enfeitar as minhas roupas

Crânios para me fazer lembrar de que não valho nada

Enquanto o sujeito gargalhava, Apànìyàn sacou sua faca de pedra e se cortou na barriga, já que era melhor do que cortar o próprio coração.

 

Fábio Kabral escreve ficção especulativa com foco em fantasia. Atualmente produz o livro Sopro dos deuses, épico de fantasia baseado na mitologia afro-brasileira dos Orixás. Já publicou Ritos de passagem (Giostri, 2014), O caçador cibernético da rua 13” (Malê, 2017), A cientista guerreira do facão furioso (Malê, 2019) e O blogueiro bruxo das redes sobrenaturais (Malê, 2021).

Enéias Tavares é escritor, professor e tradutor. Tem trabalhado com projetos transmídia envolvendo a série Brasiliana Steampunk. Seus livros já foram publicados por editoras como LeYa, AVEC, Arte & Letra e DarkSide Books. Sua curadoria em Nova literatura brasileira valoriza a produção insólita nacional, partindo do projeto Fantástico brasileiro, sediado na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul.

Compartilhe