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Inventário: Memória

Neste mês, os novos convidados da coluna, Dalila Coelho e Ubiratan Suruí, transformam “memória” em imagem e texto

Publicado em 27/04/2022

Atualizado às 14:28 de 19/01/2023

Por Dalila Coelho e Ubiratan Gamalodtaba Suruí

Dalila Coelho

Imagem de uma rodovia vazia. A foto foi tirada à noite e possui um ambientação escura apenas com uma luz fraca.
(imagem: Dalila Coelho)

abri o mapa e contei: oito quarteirões nos separam. oito quarteirões que poderiam facilmente ser percorridos em qualquer horário. pensei que esses oito quarteirões, o seu interesse e a minha disposição nos tornariam próximos. você cheio de histórias e eu faminta por experiências.

uma câmera ruim, um flash estragado, a primeira noite em que dormimos juntos. caminhar pela praça sete abandonada nesse período entre natal e ano-novo, na hora em que nada mais existe, foi como adentrar um local fixo no tempo, mas agora ocupado por outros habitantes. você me contando de outra vida, outro cinema, outras memórias, outros tempos, me apresentou por alto outra cidade. ali nasceu a vontade de revirar, preencher, explorar, encharcar e capturar que me fez insistir.

mas a sua passagem, como a de tantos outros, foi meteórica. deixou a lembrança de um rastro bonito e ardente, se apagou rápido e restou só o gosto amargo das cinzas.

outro dia, saí para almoçar com a sensação de que te encontraria. passei pelo bar onde gosta de comer, quase na minha esquina, e não te vi. andei pela avenida que liga a minha casa à sua lembrando da caminhada que fizemos na manhã em que acordamos juntos e pensei se esbarraria em você em meio a tantas pessoas. parei em um sacolão onde nunca tinha feito compras e comprei cenouras na promoção. na volta, quase chegando em casa, te vi de relance entrando em um carro. você como qualquer outro, mais um carro em mais uma avenida movimentada do centro da cidade. nossos olhares não mais se encontraram, como dois desconhecidos que não se dão conta de já terem se cruzado.

em casa, olho em volta e vejo seus traços que ficaram por aqui. a planta que me deu na última vez em que me visitou, o móvel que trocamos, os quadros dependurados, as fotos que fiz. de mim em ti, não sei o que restou. penso se também pensa em mim quando está na sua casa. penso se há algo que te faz lembrar de nós dois. na minha cama, quero sentir seu cheiro. no banheiro, lembro de sentir seu cheiro em mim. no tapete, queria sentir de novo o seu cheiro. marcante e agridoce. seu cuidado, seu apreço, seu cuidado. não sei mais onde está.

Ubiratan Suruí

Imagem em preto e branco que mostra uma criança de povo indígena tendo o seu rosto pintado por uma mulher. A foto mostra apenas a mulher de costas, não sendo possível seu rosto. Ela está com uma das mãos apoiadas no pescoço do menino e com a outra pinta seu rosto.
(imagem: Ubiratan Suruí)

Memórias

O povo Paiter Suruí teve seu primeiro contato com os não indígenas em 1969; a partir disso, o nosso modo de vida é outro. Somente os anciãos do nosso povo guardam na memória a vida que levavam viajando de um lugar para outro, realizando festas e rituais sagrados que duravam semanas.

A educação tradicional dos Paiter Suruí sempre foi baseada na oralidade. Essa riqueza, o conhecimento ancestral que vem sendo passado de geração para geração, é uma cultura imaterial que está em risco pelo domínio da cultura ocidental.

Nessa perspectiva, a ideia de eternizar o conhecimento e a memória dos nossos anciãos é de grande importância para criarmos a nossa história e a nossa identidade. E que sejamos protagonistas das nossas histórias, garantindo à futura geração quem são os Paiter Suruí: gente de verdade.

 

Em Inventário, dois fotógrafos recebem, todo mês, uma palavra diferente e são convidados a transformá-la em imagem e texto.

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