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(Re)descobrindo o cinema brasileiro feito por mulheres

A colunista conversa com as pioneiras Ana Maria Magalhães e Vera de Figueiredo

Publicado em 29/03/2023

Atualizado às 08:37 de 10/05/2023

Por Luísa Pécora

Quase meio século se passou desde que Ana Maria Magalhães, então conhecida pelo trabalho como atriz, estreou na direção com Mulheres de cinema, média-metragem sobre atrizes, diretoras e produtoras pioneiras do Brasil. O ano eram 1976, o mesmo em que Vera de Figueiredo, já experiente no super-8, lançou o longa Feminino plural, considerado um dos primeiros filmes feministas do país. 

Próximas em temática e diferentes em linguagem, as duas obras circularam e repercutiram pouco na época do lançamento, mas agora, para surpresa das realizadoras, estão sendo redescobertas por críticos, curadores e o público em geral. A partir deste mês, poderão ser vistas também no streaming, integrando o catálogo da Itaú Cultural Play, plataforma gratuita do Itaú Cultural.

O renovado interesse por essas produções acompanha o aprofundamento das discussões e das pesquisas sobre o trabalho das mulheres no cinema, que tem resgatado obras até então praticamente ignoradas por livros, cursos e festivais. Na época em que Ana e Vera realizaram seus filmes, as ideias feministas discutidas nos Estados Unidos e na Europa estavam começando a circular no Brasil. Como escreveu a pesquisadora Alcilene Cavalcante em artigo para o livro Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro (Papirus Editora, 2018), “o incipiente movimento feminista brasileiro contestava radicalmente o modelo de feminilidade difundido na sociedade, que atribuía às mulheres os papéis de esposa, mãe e filha, mantendo-as submetidas ao domínio masculino, como coadjuvantes dos homens no âmbito público ou no privado”. 

Mulheres de cinema

Em 1974, Ana Maria Magalhães vivia um momento de questionamento na carreira, em parte pela falta de interesse nas pornochanchadas, bastante populares na época. “Eu tinha 24 anos e acabado de ter meu segundo filho, e comecei a me perguntar sobre como seria a vida de uma atriz de cinema, sobre como viviam essas pessoas em meio a tantos altos e baixos”, afirmou, em entrevista à coluna.

Na mesma época, ela leu o livro Humberto Mauro, Cataguazes e Cinearte, de Paulo Emilio Salles Gomes, que a fez refletir sobre atrizes que tinham passado para o outro lado da câmera – algo que ela mesma já começara a fazer ao trabalhar com assistência de montagem e direção de dublagem. Com o desejo de se aprofundar no tema, ela se inscreveu num edital do então Ministério da Educação e Cultura se propondo a dirigir um curta-metragem de 15 minutos sobre a história das mulheres no cinema brasileiro. Classificou-se como primeira suplente e, mais tarde, foi chamada a realizar o projeto. 

Ana fez as filmagens em dez dias, durante um intervalo nas gravações da novela Gabriela. Seu ponto de partida foi uma entrevista com Humberto Mauro (1897-1983) sobre sua parceria com a atriz, diretora, produtora e roteirista Carmen Santos (1904-1952). “Foi o primeiro plano que filmei na vida. Na hora, o Mauro disse: 'Você não quer subir um pouco a câmera?'”, contou, rindo, a cineasta.

Além de Carmen Santos, Mulheres de cinema aborda as trajetórias de Aurora Fúlgida (1880-1972), Eva Nil (1909-1990), Gilda de Abreu (1904-1979), Carmen Miranda (1909-1955), Eliana Macedo (1926-1990), Norma Bengell (1935-2013), Helena Ignez e Leila Diniz (1945-1972). “Fiz uma pesquisa enorme, sobre várias atrizes, e selecionei as que achei mais representativas de cada década. Não queria [personagens] muito parecidas, e sim diferentes linhagens de trabalho”, disse Ana. 

O assunto era maior do que ela pensava, e o curta tornou-se um média de 38 minutos. A cineasta sentiu-se insegura no lançamento, tanto por ser jovem e estreante quanto pelo fato de, na época, poucas diretoras terem carreira de destaque no Brasil. Segundo ela, o fato de ser atriz também dificultava as coisas. “Quando passava nas moviolas e nos estúdios, ouvia dizerem: ‘Ela não é montadora, é atriz’. As pessoas não aceitavam que eu fizesse essas coisas, muito menos dirigir”.

Afora uma sessão no Festival de Brasília, à qual não compareceu, Ana afirma que a repercussão de Mulheres de cinema foi quase inexistente. “O filme passou em brancas nuvens: ninguém deu a menor pelota, ninguém ligou”, relembrou. “Eu sabia das minhas limitações: era meu primeiro filme, era, na verdade, um estudo sobre um tema. Mas o curioso é que o tema foi uma sacada minha que ninguém tinha tido. E agora, depois de quase 50 anos, tem um monte de série, de filme. Para mim, é um assunto muito velho, é um assunto daquela época!”.

A cópia de Mulheres de cinema disponível na Itaú Cultural Play foi remasterizada digitalmente a partir do negativo original e do interpositivo de som. No contexto das discussões contemporâneas, chama a atenção o fato de todas as profissionais citadas serem brancas (“se fizesse o filme hoje, colocaria diretoras negras, mas na época isso não estava em pauta”, disse Ana), assim como o texto final, narrado pela própria cineasta: “No cinema brasileiro atual, as atrizes continuam a desvendar para o público a condição feminina. Mas, agora, a mulher circula livremente pela estrutura do filme, participa de todas as etapas, do roteiro à montagem, da fotografia à direção de produção. Contemplando-se até hoje no quadro de um cinema eminentemente masculino, ela começa a revelar sua face oculta. Curiosa de ver o mundo à sua maneira, descobre no cinema a capacidade de refletir. Nas imagens nascidas de sua visão interior, a mulher se adivinha, se discute, se libera e, mais uma vez, recomeça”.

Perguntei à Ana se ela fora excessivamente otimista, já que, em que pesem os inegáveis avanços que ocorreram dos anos 1970 para cá, a desigualdade de gênero ainda não deixou de ser realidade no cinema brasileiro. “Quando vejo o filme, também digo: 'Gente, meio século, não é possível que leve tanto tempo”, respondeu. “Mas acho que esse ‘agora a mulher circula livremente’ também foi uma empurrada que eu dei. Do tipo: 'Vamos nessa, vamos no bonde, vamos abrir o caminho'. Foi um otimismo meu, mas também uma empurrada.”

Feminino plural

Arquiteta e artista plástica, Vera de Figueiredo começou a carreira de cineasta com três filmes em super-8 e o curta Artesanato do samba (1974), que dirigiu em parceria com Zózimo Bulbul (1937-2013). Embora considere sempre ter sido feminista, seu contato mais formal com as ideias do movimento começou no final da década de 1960, quando morou nos Estados Unidos e na França e fez leituras de obras como Sexual politics, de Kate Millett. “Quis fazer Feminino plural porque achava que tinha de trazer [essa discussão] para mobilizar o Brasil, para a gente andar para a frente”, definiu a cineasta, em entrevista à coluna.

Por sugestão de uma amiga dinamarquesa, que achou a ideia boa demais para ser realizada em super-8, Vera optou por filmar em 35 mm. Optou, também, por fugir a uma narrativa linear, construindo o filme a partir de diferentes situações vividas pelos personagens e fortemente marcadas por elementos oníricos, de dança e performance. “O movimento corporal era parte da linguagem, pois eu queria fazer um filme de vanguarda e poético”, afirmou a diretora. “Havia um roteiro, mas também a liberdade de uma criação que acontecia no momento”. 

Vera diz que seu principal objetivo era mostrar a pluraridade feminina que o próprio título já sugere – e, embora mulheres brancas formem a maior parte do elenco, o filme menciona a especificidade da experiência negra em uma cena protagonizada por Léa Garcia. “Há uma grávida, uma velha, uma jovem, uma negra, uma descendente de índio, e cada uma delas tinha sido reprimida”, afirmou a diretora. “Isso era o mais importante: que essas mulheres não traziam tudo o que elas eram. Havia uma mágoa, uma vontade de dizer. Estávamos todas explodindo.” 

De acordo com Vera, Feminino plural foi bem recebido no exterior, especialmente na França, onde foi exibido em uma mostra paralela ao Festival de Cannes e distribuído comercialmente. No Brasil, a estreia foi em apenas uma sala do Rio de Janeiro, com uma sessão semanal noturna durante cerca de um mês. Era comum, segundo a diretora, ver parte do público deixando o cinema logo na primeira cena, que mostra a imagem desfocada de um parto.

Vera notou uma mudança de atitude em 2002, quando Feminino plural foi exibido pela antiga TVE, hoje TV Brasil. “Fiquei chocada quando, no dia seguinte, muita gente veio me dizer que estava feliz em ter visto. E eu respondia: mas vocês não tinham visto até hoje?”, brincou. “Acho que o filme está sendo redescoberto porque as pessoas estão redescobrindo a elas próprias.”

Assim como em Mulheres de cinema, um texto narrado em off garante um dos momentos mais marcantes de Feminino plural. Enquanto uma jovem mulher é vista em diferentes fases da vida, da infância ao casamento, ouvimos uma voz feminina que diz: “Siga os caminhos que foram designados para você quando nasceu mulher: passividade diante da vida. [...] O papel da mulher no mundo é ser submissa. Dentro em breve você encontrará marido e poderá ajudá-lo sempre, fazendo todas as vontades dele. Lugar de mulher é dentro de casa. Obedeça, submissa, meiga e dócil. Seguindo seu caminho sem sonhar, sem ousar, sem criar”.

É a parte do filme que Vera considera mais triste. “A educação feminina era feita para acalmar, para dizer 'não ouse'. As meninas estavam cheias de ideias para dar, mas tinham de se diminuir. 'Obedeça, submissa, meiga e dócil’ – deveria justamente ser o contrário, como hoje é”, afirmou a cineasta, que se considera otimista em relação ao futuro. “O feminismo é uma revolução, é a grande mudança”, opinou. “E, nesse sentido, tenho o prazer de ter colaborado, de ter deixado uma obra que não foi entendida na época, mas agora está sendo.”

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