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Renato Russo e o fim da MPB

Se a utopia da MPB não parecia naquele momento manter sua força lírica, ainda assim era preciso seguir a canção e buscar caminhos de transformação

Publicado em 08/03/2024

Atualizado às 15:58 de 08/03/2024

Por Marcos Carvalho Lopes

De modo provocativo e reducionista, podemos dizer que a MPB “chegou ao fim” pelo menos duas vezes (ou talvez três). A primeira consumação foi resultado da Tropicália, que, em 1967, ao revelar e assumir o papel da canção como produto, teve um gesto para a linha evolutiva da MPB semelhante – podemos falar de homologia estrutural – àquele de Andy Warhol quando levou para exposição as Caixas Brillo, que eram idênticas às caixas de papelão que embrulhavam produtos no mercado. As caixas de Warhol eram “diferentes” por terem incorporado uma narrativa sobre a história da arte, gesto que, na avaliação do filósofo Arthur Danto, modificou o mundo da arte, impondo a necessidade de uma dimensão filosófica nas obras de arte contemporâneas.

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Ora, a MPB surge como a canção que representa o país, num projeto nacionalista que anda junto com a expansão da indústria cultural, o desenvolvimento das gravações e do rádio a partir dos anos 1930. Mas é na década de 1960 que a MPB ganha autoconsciência, justamente porque o Brasil cantado se opunha e resistia à opressão e à violência da ditadura cívico-militar. A utopia lírica das canções de resistência guarda uma contradição entre, de um lado, a valorização do coletivo em detrimento do individual, primordial em qualquer projeto utópico, e, do outro, a potencialização do “eu” presente no lirismo da canção. Foi Renato Janine Ribeiro quem descreveu essa utopia lírica em canções como “A banda” (1966), de Chico Buarque, em que uma banda contagia e modifica a disposição das pessoas de uma cidade, trazendo a alegria que amplia os horizontes de sentido e esperança. Com essa canção, Chico ganhou o II Festival de música popular. Caetano Veloso, no ano seguinte e no mesmo festival, com “Alegria, alegria” internaliza a banda, andando pela paisagem urbana, indeciso em meio a marcas, notícias e propagandas e cantando uma alegria, como quem tenta se autoconvencer. A dimensão existencialista, de negar qualquer essência ou pureza, acenava tanto no terno laranja com o qual o compositor baiano se apresentou quanto na guitarra elétrica, ou no verso retirado de As palavras, de Jean-Paul Sartre, “nada no bolso ou nas mãos”. Mas, se para Bob Dylan as respostas estavam sendo sopradas pelo vento, Caetano se esquivava da busca sublime de algo irrepresentável para sentenciar que queria “seguir vivendo”. 

Esse foi o primeiro fim da MPB, se tomarmos essa palavra como consumação ou como limite de um projeto. Ao seu modo, o rock dos anos 1980 retomou o gesto tropicalista e a tentativa de representar o país por meio da canção. Não por acaso, a hegemonia do chamado rock brasileiro se deu em conjunto com o processo de redemocratização do país, trazendo a promessa e o vazio da autocriação pelo consumo. Obviamente essa promessa não incluía todas as pessoas nem dava voz à maior parte da população. É preciso lembrar que também existia uma hegemonia e centralização dos meios de comunicação e das grandes gravadoras no eixo Rio-São Paulo: só era possível alcançar sucesso nacional a partir desses lugares. Se ainda existiam resquícios da censura, o rock brasileiro contou com o impulso do “sim, sim” da então todo-poderosa TV Globo. 

As eleições de 1989 marcaram o fim do período de ditadura, com a chegada à Presidência de Fernando Collor de Mello, que contou com o apoio de grande parte dos cantores de um gênero que passaria a dominar as paradas de sucesso: o sertanejo. O desastre épico da chamada Era Collor – de confiscos, hiperinflação, desconfiança da política etc. – colocou fim nas possibilidades de representar o país de modo lírico: não havia um Brasil para sonhar em contraposição àquele que a democracia – o desejo popular – desvelava. As canções políticas precisavam se aproximar da prosa e falar de algo externo, que estava “fora da ordem”, ou descrever esse lugar como “o cu do mundo” (Caetano Veloso). Ora, ainda que a receita e a promessa da MPB permanecessem válidas, era uma receita “paratodos” ou um “choro bandido” que não poderia ser mais do que uma sessão no mercado de discos, que atendia um público específico, insistindo em chamar “de volta ao samba” (Chico Buarque).

A medição de audiência ao vivo fez a censura do bom gosto de classe média ter que dar espaço para as canções de promessa de amor eterno ou da busca de prazer constante, encenadas pelo sertanejo, pelo pagode (que levou grupos negros aos holofotes), pela lambada, pelo axé etc.

Em 1993, a Legião Urbana lançou o álbum O descobrimento do Brasil, que trazia a representação do país como a de alguém viciado em processo de desintoxicação, que precisa recuperar o sentido da existência e aprender a viver um dia de cada vez. Nesse processo, é preciso enterrar o passado, e a canção “Perfeição” é a representação desse enterro virtual de nossas mazelas, com a promessa singela de um amor que nos redima, que nos faça querer ser melhores. A MPB chegava de novo ao fim.

Isso não significava necessariamente para a canção um mergulho alienado na vida privada. O caminho que Renato Russo inventou foi o de tentar se ver ou se mostrar através do outro, deixando seu projeto autoral com a Legião Urbana em suspenso para gravar – junto com os álbuns solo The Stonewall celebration concert, de canções em inglês, e Equilíbrio distante, cantado em italiano. Esse “cantar canções em línguas estranhas” não significava renunciar ao projeto de representar uma narrativa e tentar traduzir ou intervir naquele momento por meio da música popular. 

Renato Russo seguia a avaliação do cineasta e escritor Pier Paolo Pasolini de que, depois da Segunda Guerra, o fascismo não havia desaparecido, mas passara a colonizar o cotidiano. Os anos da Era Collor deixavam claro que o Brasil precisaria se reinventar ou aprender a ser democrático, porque as forças autoritárias continuavam presentes. No final da gravação da canção “Send in the clowns” (em português, “Que entrem os palhaços”), de Stephen Soundheim, que Russo escolheu para abrir seu álbum em inglês, podemos ouvir um pequeno trecho de uma música quase circense que era utilizada pelos nazistas em seus desfiles. No encarte, o cantor deixa explícito que, para ele, “os palhaços” eram os fascistas, que estavam voltando. (É essa canção que embala a transformação da personagem de Arthur Fleck em Coringa no filme de 2019.)

As canções de amor, cantadas de um homem para outro homem, se encaixavam e redescreviam a celebração do amor romântico presente na canção mais popular no Brasil naquele momento. Russo cantava e celebrava a Revolta de Stonewall, em 1969, em que a comunidade LGBT se levantou contra a opressão policial; mas destinava parte dos direitos do disco para a campanha de Herbert de Souza contra a fome, além de indicar no encarte diversas outras organizações sociais com as quais contribuir. Além de buscar se alinhar com as reivindicações de um grupo específico, o disco tentava exemplificar: não poderíamos mais ficar esperando do Estado a solução dos problemas sociais.

Ilustração representa uma mesa, em que se veem uma faca, uma maçã cortada ao meio e dois braços, sem estarem conectados a um pessoa, e um vaso com quatro flores. A parede atrás tem padrões quadriculares vermelhos e azuis, um rádio e um calendário com a imagem de Renato Russo.
"Existe o sorriso da criança, sim", disse Renato Russo. (imagem: Girafa Não Fala)

Já no álbum Equilíbrio distante, de 1995, a canção de abertura, que sintetiza o projeto, se chama “Gente” e é uma amostra singela de utopia lírica. Ela diz em seu refrão: “Não somos /  anjos que vieram voando do céu / mas pessoas comuns que realmente amam / pessoas que querem um mundo mais verdadeiro / pessoas que juntas o transformarão” (“Non siamo / angeli in volo venuti dal cielo / ma gente comune che ama davvero / gente che vuole un mondo più vero / la gente che insieme lo cambierà”). Em entrevista ao radialista Marcelo Rangel, Renato explicou, de forma detalhada, a narrativa desse álbum: “O disco fala muito da coragem, porque são canções de amor; ao contrário do Stonewall, são canções onde o personagem realmente resolve tomar uma atitude, não fica se lamentando pelos cantos”. O cantor estava preocupado com o modo como a pauta da família e do amor estava sendo cooptada pelo discurso evangélico e militarista, tomando um sentido fascista e exclusivista, como se pessoas que não seguem a cartilha heteronormativa, que não se encaixam nos padrões patriarcais, não tivessem direito de ter uma vida boa e afetivamente saudável: “E não preciso ser necessariamente um fascista para valorizar coisas que são importantíssimas na minha vida e na vida de todas as pessoas que vivem em comunidade e que querem viver em paz. Então, embora o disco não entre muito por esse lado, e isso não está especificado nas canções, mas essa foi uma das minhas maiores preocupações, mostrar que, de repente, a pessoa tem o direito a acreditar nos valores tradicionais sem necessariamente com isso, tipo, cortar a liberdade de quem quer que seja. Entende? Eu acho que as coisas podem conviver muito bem. Entende? O fato de eu ser um artista ou de eu ter uma postura diferente ou mesmo de ter uma postura política diferente, isso não implica que eu não tenho direito de ter amor, carinho, solidariedade, respeito dentro do meu ambiente familiar, dentro da minha comunidade”.

Renato Russo procurava com as canções pop românticas romper com o ciclo de autodestruição romântica, viver o luto e romper com as posturas que lhe causavam medo e dor, e acreditar numa relação em que ambos possam se preservar, serem dois (como na canção “Due”). O amor continua sendo político, mas as canções precisavam dialogar com o desejo popular, procurar ir além dos nichos de classe para tentar criar conexão emocional e transformação social. Na importante entrevista a Rangel, o cantor deixou claro seu projeto: “Porque eu sabia, mais ou menos porque eu estava querendo fazer esse disco. Uma das coisas era mostrar que a música pop, ainda mais que, aqui no nosso país está tendo essa discussão em cima de que a música pop não presta, que as letras são ruins e tudo. E a minha opinião é que a música extremamente popular é que, às vezes, traz as maiores verdades. A gente que não liga porque a gente, às vezes, prefere uma coisa mais sofisticada ou então não dá atenção. Mas, por exemplo, assim, é só a gente pegar o Caetano cantando ‘Sonhos’ do Peninha, que ninguém dava nada por aquela música, era mega megassucesso, a população sabia, né, o pessoal mesmo ‘para valer’ todo mundo sabia [...]. Mas foi preciso o Caetano ter gravado para algumas pessoas começarem a prestar atenção que o que está escrito ali e dito ali [...] é uma verdade e que realmente é uma coisa sincera e atinge a gente emocionalmente. [...] Então um dos motivos para fazer esse disco foi justamente isso, todo mundo fica ‘ah, porque música italiana é brega, música italiana é horrível, e as letras são bobas, é tudo umas coisas bobinhas e tudo’. E na verdade, eu não acredito nisso não. E essas músicas foram justamente escolhidas para mostrar isso, que existe uma verdade aí, existe uma emoção que é uma coisa verdadeira. É aquela coisa, tipo assim, ‘gente, o sorriso de uma criança é importante, sim’. Só que no mundo que a gente vive, a gente já está tão cheio de coisas e esse tipo de informação é tão manipulado que às vezes a gente tem até medo de admitir certas coisas, porque vai ser careta, porque esse discurso está totalmente... foi totalmente roubado por pessoas que, como eu estava comentando antes, que realmente não são pessoas agradáveis digamos. E não, sabe, existe beleza, existe dignidade, existe respeito, existe o sorriso da criança, sim”.

Também nessa entrevista, Renato tentou destacar os limites da canção e suas possibilidades de representar a vida: “Eu tento ser sincero, né, gente, não quer dizer que eu sou verdadeiro em tudo, mas assim, existe essa tentativa, ao mesmo tempo, eu gosto de deixar bem claro que são apenas canções, é apenas um show, a vida das pessoas, a vida da gente é outra coisa. Entende? É mais importante. É aquilo, você não pode acreditar numa novela que se vê na televisão, né? Nunca vai ser, um livro, uma novela, uma expressão artística qualquer pode realmente até mudar a sua vida, mas não é a sua vida. A sua vida, a gente sabe, é acordar todo dia e ir trabalhar, conviver com as pessoas que a gente gosta, é enfrentar o mundo que, às vezes, é muito difícil. Então existe essa separação. Isso é uma coisa que eu deixo bem claro, talvez até me esquivando um pouco de certas responsabilidades que eu teria que cumprir”. 

Então, o fim da MPB na década de 1990 não foi, necessariamente, um mergulho alienado na vida privada. O fim deve estar sempre presente, para que possamos nos redescrever e continuar sonhando: não é um gênero musical, é uma projeção de país, uma utopia. O fato de Renato Russo ter gravado álbuns em línguas estrangeiras faz parte de uma busca de reconstrução de sentido para o próprio cantar. Se a utopia grandiloquente da MPB não parecia, naquele momento, manter sua força lírica, ainda assim era preciso seguir a canção e buscar caminhos de transformação. Russo procurou se colocar como ativista gay, mas isso não significava se fechar em um gueto de política de identidade, e sim se situar e ressaltar a necessidade de criar uma sociedade em que todas as pessoas possam ser respeitadas. Em “Passerà”, a força da canção é reafirmada: “Vai passar, vai passar / Mesmo se fizeres apenas / la, la, la /  Vai passar, vai passar / E para qualquer coisa uma canção servirá / Se a tua pequena dor / Que seja ódio, ou que seja amor / Vai  passar” (Passerà, passerà / Anche se farai soltanto / la la la / Passerà, passerà / E a qual cosa una canzone servirà / Se il tuo piccolo dolore / Che sia odio, o che sia amore / Passerà).

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Coluna escrita por:

Marcos Carvalho Lopes

Marcos Carvalho Lopes

Doutor em filosofia, professor universitário e host do podcast Filosofia Pop
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