Na nova edição da coluna Grande Angular, a jornalista Luísa Pécora entrevista a cineasta Alice Riff sobre seu filme "Platamama", disponível na IC Play
Publicado em 01/09/2022
Atualizado às 03:00 de 11/05/2025
Um convite à convivência marca o cinema documental da diretora paulista Alice Riff, que se dedica a filmar pessoas e espaços sobre os quais muitos espectadores ouvem falar, mas talvez não conheçam de fato. No seu primeiro longa-metragem, Meu corpo é político (2017), ela registrou o cotidiano de quatro pessoas trans na periferia de São Paulo. Em Eleições (2019), acompanhou a votação do grêmio estudantil de uma escola pública. No seu filme mais recente, Platamama (2019), colocou a câmera dentro da casa de uma família de imigrantes bolivianos. Nos três casos, não há narração explicativa ou entrevistas com especialistas: para contar a história de alguém, a diretora prefere estar com esse alguém e oferecer ao público a oportunidade de fazer o mesmo.
“A realidade, quando se apresenta para mim, é diferente do que imaginei”, afirmou Alice em entrevista por e-mail à coluna. “Tento entender o que estão me dizendo, mudo a rota, me calo, escuto, saio diferente. E tento montar um filme que faça com que o espectador passe pelo mesmo caminho pelo qual passei, e que a gente saia mais confusa do que cheia de certezas, mas que viva um pouco aquele tempo, naquele universo.”
No caso de Platamama – que chegou neste mês à Itaú Cultural play, em estreia exclusiva –, Alice passou quatro meses filmando Mari, Choco e Pamela, bolivianos que se mudaram para o Brasil em busca de melhores condições de vida. Numa rara ocasião em que recorre às estatísticas, a diretora informa, logo na tela inicial, que cerca de 25% dos bolivianos vivem fora da Bolívia, sendo 300 mil só na Grande São Paulo, segundo estimativas não oficiais. Como muitos conterrâneos, a família no centro do filme atua no setor têxtil, costurando peças de roupa em uma oficina improvisada na casa onde mora. É nesse espaço de moradia/trabalho que o documentário se concentra e onde Alice e sua pequena equipe, formada apenas por um fotógrafo e um técnico de som, estiveram quase diariamente. “Era um clima tenso: em alguns dias éramos bem-vindos, em outros não”, contou a diretora. “Ficávamos bem quietos e filmávamos muito.”
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Na entrevista a seguir, Alice fala da realização de Platamama e reflete sobre as questões que têm guiado sua carreira até aqui. “Acho que todos os filmes estão investigando uma maneira de olhar, de como contar uma história e de como fazer cinema a partir de uma relação”, afirmou a diretora. “Sigo tendo muita vontade de filmar o presente.”
Gostaria de saber um pouco mais sobre o desenvolvimento de Platamama. Como você conheceu essa família? O que a fez querer realizar um filme sobre ela?
Em 2013, eu trabalhava no Centro [de São Paulo] e via muitos jovens bolivianos pelas ruas e escolas. Codirigi um curta que investigava os planos e as perspectivas de futuro dessa juventude boliviana, e foi nessa pesquisa que conheci o Choco. Muito rapidamente todos os seus sonhos – de estudar, sair do universo da costura e ter seu próprio negócio – não deram certo, e ele já estava absorvido nesse universo têxtil. O desejo de fazer outro filme com ele, naquele momento não mais sozinho, mas com esposa, sogra e filho, me interessou para pensar as relações entre vida e trabalho nessas condições exploratórias, em que nenhum direito é garantido.
Como foi a logística de filmagens? Você teve uma equipe? Ficou na casa da família durante todo o processo ou fez visitas regulares?
Éramos eu, Dan de Carvalho, que fez a fotografia, e Caio Mazzilli, que fez o som direto. A gente ia praticamente todos os dias cedo e passava o dia. Sempre combinávamos de fazer alguma filmagem fora da casa, mas nunca dava certo de sair. A relação entre nós tinha muitas camadas, eram muitas histórias acontecendo ao mesmo tempo, entre eles alguns segredos e situações mal resolvidas. Era um clima tenso: em alguns dias éramos bem-vindos, em outros não. E assim se passaram quatro meses. Sinto que com o tempo fomos criando um ritmo nosso. Nós três da equipe ficávamos bem quietos e filmávamos muito. Um dia a Mari concluiu que estávamos fazendo uma novela sobre a vida deles. Eu também fui entendendo que o filme seria dentro da casa mesmo; nas poucas vezes em que saímos, foi falso, não era natural para eles.
O fato de o filme raramente sair da casa da família, que é tanto o lugar de moradia quanto o de trabalho, cria certa sensação de claustrofobia. Isso é apenas reflexo da sua observação daquele cotidiano ou também uma decisão criativa e mais ligada à própria montagem?
Estamos falando de uma comunidade para a qual os pontos de encontro na cidade são os locais em que estão as ofertas de emprego. Se você é de uma família de imigrantes que tem uma oficina de costura funcionando dentro de casa, não pode aparecer muito, porque a Secretaria do Trabalho está de olho. Há muitos resgates de trabalho análogo à escravidão ou mesmo denúncias. Então eles se escondem mesmo, porque querem trabalhar. Também muitos não têm conta em banco – é uma situação na qual todos os fatores os fazem viver mais escondidos, dentro de casa. Naturalmente, o filme não sai de casa. Esteticamente, esse tempo e esse espaço me interessaram. Trabalhar o tempo e o espaço nessa casa, trabalhar cada cômodo, cada personagem. Não gosto do fato de que o Choco tem certo protagonismo e as mulheres estão sempre o apoiando, mas assim funciona naquela família, e elas eram mais fechadas com relação a mim e ao filme. Fiquei ali observando e criando uma narrativa a partir daqueles dias e horas que passavam. Li e reli um livro que amo, chamado Proust, escrito pelo Beckett, em que ele descreve alguns personagens de Proust como aqueles homens presos aos dias e às horas. Este foi o meu exercício de roteiro e montagem: uma vida que se repete, e alguma coisa os faz levantar todo dia cedo e continuar.
Como Meu corpo é político e Eleições, este é um documentário que prefere retratar um universo a mostrar entrevistas, dados e especialistas que ofereçam contexto. O que a atrai nesse formato mais observacional?
A cada filme que faço, eu me transformo. A realidade, quando se apresenta para mim, é diferente do que imaginei. E, por mais doído que seja, tento entender o que estão me dizendo e mudo a rota, me calo, escuto, saio diferente. Tento montar um filme que faça com que o espectador passe pelo mesmo caminho pelo qual passei, e que a gente saia mais confusa do que cheia de certezas, mas que viva um pouco aquele tempo, naquele universo. Neste filme eu até coloco alguns dados no início, mas realmente não sou jornalista nem socióloga. Meu único compromisso é contar uma história com responsabilidade.
Seus filmes são muito ligados aos direitos humanos e já retrataram a realidade de pessoas trans, estudantes da rede pública e imigrantes bolivianos. Que outra ou outras comunidades você tem vontade de registrar em seus futuros trabalhos?
Não sei, não penso muito assim. Acho que todos os filmes, talvez de forma bem difusa, estão investigando uma mesma coisa, que é uma maneira de olhar, de como contar uma história, posicionar a câmera, refletir sobre esses encontros com esses personagens e como fazer cinema a partir de uma relação. Sigo tendo muita vontade de filmar o presente. E filmar é estar pensando junto com outras pessoas, que são diferentes entre si e estão ali fazendo o exercício de entrar num consenso, de combinar uma cena, combinar o dia seguinte, criar histórias juntas. Acho que isso é potente.
Platamama está estreando direto no streaming. Como está sendo a experiência? Você vê as plataformas digitais como um caminho interessante para o documentário nacional?
Acho que estamos vivendo um momento bem delicado, porque os streamings estão chegando do jeito que eles querem, passando por cima de muitos cinemas, como se só interessasse um tipo de produção e pensamento. Então acho que é o momento de lutar por regulação e para que o cinema autoral e artesanal não seja engolido, porque estamos olhando para nossa sociedade e comprometidos com ela. Isso é um ponto, mas também acho que sim, todas as janelas são interessantes. Os streamings podem fazer o filme chegar a muitos lugares que só a sala de cinema não alcança, e estou feliz, sim, com a estreia na Itaú Cultural play, uma plataforma gratuita. Estou bem feliz de darem espaço para o Platamama.