Em seu quinto trabalho de estúdio, artista mineiro-capixaba criou uma obra tendo o sonho como ponto de partida
Publicado em 18/04/2023
Atualizado às 08:37 de 10/05/2023
Assunto que intriga a humanidade desde os tempos mais remotos – permeando, inclusive, a arte –, o sonho, para alguns, é premonitório e, para outros, apenas divagações sem muito sentido. Sigmund Freud, o criador da psicanálise, descreveu os sonhos como tentativas de disfarçar a realização de desejos reprimidos. Já André Breton, um dos fundadores do Surrealismo, lançou as bases desse movimento artístico a partir de uma livre interpretação dos escritos de Freud, entendendo que os sonhos seriam o lugar onde é possível escapar de uma autocensura, possibilitando, assim, uma expressão artística sem amarras e que, por isso, se manifestava muitas vezes em imagens absurdas.
Em Tenho acordado dentro dos sonhos, quarto álbum e quinto trabalho de estúdio de Juliano Gauche, o artista mineiro-capixaba criou uma obra tendo o sonho como ponto de partida, mas buscando um diálogo com algo que, conceitualmente, se pode chamar de “sonho lúcido”. O termo foi criado, no início do século XX, pelo psiquiatra e escritor holandês Frederik Willems van Eeden e se refere à percepção consciente que uma pessoa tem quando está no mundo inconsciente. Essa pessoa, inclusive, consegue exercer certo controle sobre o que está sonhando, além de, ao acordar, ter uma recordação nítida do episódio. Quem exercita essa capacidade é chamada de “onironauta” (explorador do sonho).
Essa ideia, que atrai psicólogos, místicos e artistas, bate perfeitamente com Gauche, que cita como influências trabalhos de artistas como Arthur Rimbaud, Clarice Lispector e Fernando Pessoa, nomes que, de alguma forma, tiveram a metafísica presente em suas obras. Ao olhar com lucidez para o que se passa em seu inconsciente, Gauche encontra ferramentas que servem de base para lidar com o cotidiano. Os sonhos, muitas vezes tratados como válvula de escape, passam a ter valor para a compreensão da realidade.
Gravado em São Paulo em novembro de 2022, Tenho acordado dentro dos sonhos traz sete canções que foram compostas em Manguinhos, praia no litoral norte do Espírito Santo, durante o período de isolamento imposto pela pandemia de coronavírus.
Em suas composições, Gauche, com muita sensibilidade e trazendo uma enorme carga imagética, valoriza a intensidade, ainda que de maneira sucinta, da mesma forma que consegue ser suave, mesmo quando é áspero e solar, quando é sombrio. Isso fica nítido no resultado do álbum, quando nos deparamos com os arranjos criados de maneira delicada e precisa por Gauche e Sérgio Benevenuto. Apoiadas em uma instrumentação quase minimalista, as canções ganharam a dimensão necessária para que a audiência penetre em um ambiente onírico, que em vários momentos é banhado pelo mar. Não por acaso, a capa e as fotos de divulgação mostram o cantor próximo ao mar e, em algumas delas, ele chega a estar imerso.
Além de imprimir sua voz suave e assertiva, Gauche se encarregou de guitarras, piano e teclados, acompanhado por Benevenuto nas guitarras, sintetizador e teclados. Completam a instrumentação Kaneo Ramos, no violão, Victor Bluhm, na bateria eletrônica, e Klaus Senna, no baixo, sintetizador, teclados e metalofone. A coesão dos músicos é impressionante, fazendo com que tudo soe quente e no devido lugar. O apuro na sonoridade contou com o excelente trabalho de mixagem e masterização feito por Klaus Senna, que também foi responsável pela produção, ao lado de Gauche.
Duas faixas se destacam entre as sete que compõem Tenho acordado dentro dos sonhos. Uma delas é “Ondas que acordam”, parceria do cantor com André Travassos, da banda mineira Moons, que discorre de forma cíclica, num instrumental mântrico, com Gauche em português e Travassos em inglês falando sobre pertencimento, encantamento e leveza. “Ondas que acordam” aparece mais duas vezes no álbum como bonus tracks, uma delas apenas com Gauche no vocal e a outra somente com Travassos. O outro destaque é “Nos cânticos de lá”, faixa em que o instrumental, alicerçado em uma batida com contornos pop, valoriza os silêncios, criando um ambiente solar, que abriga o desejo de seguir em frente após os reveses, em busca de dias melhores.
Seguro na sua construção poética e musical, em Tenho acordado dentro dos sonhos Juliano Gauche coloca mais um tijolo em uma obra que é pautada desde o início por um desenvolvimento conceitual extremamente cuidadoso, que utiliza arestas a seu favor, como quem aprende com as dificuldades. Ao mergulhar nos sonhos (o mar interior), o cantor encontra uma clareza que é transformada em canções que ajudam a simplificar a complexidade do que é viver. Como dizia o poeta Waly Salomão: “Chega de papo-furado que o sonho acabou... a vida é sonho!”.