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107 anos de Carolina Maria de Jesus, a dona de um escrever vivo

O jornalista e biógrafo de Carolina, Tom Farias, e a professora Nágila Oliveira falam da importância da escritora

Publicado em 14/03/2021

Atualizado às 09:50 de 11/02/2022

por Heloísa Iaconis

Carolina Maria de Jesus é doutora, doutora honoris causa, reconhecimento vindo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em fevereiro de 2021. Título outorgado com aprovação unânime do Conselho Universitário da instituição, ele representa um exemplo recente de como as palavras da escritora têm, cada vez mais, transitado por espaços diversos e conquistado corações leitores. Cento e sete anos após o 14 de março em que a autora veio ao mundo, nascida em Sacramento (MG), a potência de seu trabalho permanece acesa, formada por um escrever verdadeiro. Esse último adjetivo, aliás, foi a maneira que Clarice Lispector encontrou para demonstrar admiração pela obra da colega de ofício. A informação aparece em uma matéria assinada por Paulo Mendes Campos, publicada na revista Manchete em 1961. Segundo o poeta, Clarice assim disse: “Como você escreve verdadeiro, Carolina”.

E o que significa escrever verdadeiro? Não a verdade (visto que a literatura pressupõe uma elaboração no campo simbólico), nem verdadeiramente (uma vez que a escrita implica uma entrega total de quem a realiza). Verdadeiro. A essa pergunta várias são as respostas. De acordo com a professora Nágila Oliveira, “Carolina construiu um fazer literário que se inscreve na vida – não apenas particular, mas também coletiva”. E a arte narrativa, quando atada ao cerne da existência, quando sabe revelar o humano (da dor ao sonho), pode mesmo ser matéria do verdadeiro. Do vivo.

>>Verbete de Carolina Maria de Jesus na Enciclopédia Itaú Cultural

Viva está a produção de Carolina. Quarto de despejo – diário de uma favelada, o mais famoso livro da escritora, em 2020 completou 60 anos de sua publicação, volume que é, a um só passo, marcante e atual. Porém, o legado caroliniano não se restringe a um único título: de Casa de alvenaria (1961) ao póstumo Diário de Bitita (1982), há muito o que ler e reler. De novo e de novo e sempre. Nágila e o jornalista Tom Farias, por exemplo, entraram no mundo da prosadora e de lá não mais saíram: ambos são admiradores da romancista e a levam a outras pessoas. Nágila fala sobre a artista tanto em cursos quanto na revista África e africanidades, periódico on-line criado e editado pela educadora. Já Tom é autor de Carolina – uma biografia (2018), resultado de uma escavação da memória da homenageada. E são eles, professora e biógrafo, que aqui continuam a celebrar a história e as histórias de Carolina. Confira as duas entrevistas a seguir.

Carolina Maria de Jesus | arte: Girafa Não Fala

>>O grito que abriu caminho

Quando você descobriu a obra de Carolina Maria de Jesus?

Nágila Oliveira: Meu primeiro contato com a obra de Carolina aconteceu em 1990, ainda durante a adolescência. Moradora da Baixada Fluminense, na periferia do Rio de Janeiro, eu frequentava bibliotecas públicas, adquiria livros em sebos e com livreiros de rua. Foi com um deles que, após barganhar o valor, comprei Quarto de despejo – não apenas o primeiro livro de Carolina que li, mas também o primeiro título de uma escritora negra e de literatura afro-brasileira a que tive acesso. Na época, sendo eu uma jovem negra que buscava reafirmar identidades, essa leitura me impactou bastante: travei, enfim, um diálogo com outra mulher negra acerca do racismo que havia sempre vivenciado. Hoje, anos depois, a cada nova releitura, vêm à tona novas emoções e novos olhares sobre o ser mulher negra em nossa sociedade. Ninguém lê Quarto de despejo e sai indiferente. Trata-se de um processo terapêutico para negros e não negros.

Como você avalia a atualidade de Quarto de despejo?

Nágila Oliveira: Entendo a escrita de Carolina como uma literatura da diáspora negra feminina dos tempos modernos. Ela foi filha de arrendatários rurais descendentes de escravizados, forçada a migrar para São Paulo ao ver o avanço da pecuária sobre as plantações no interior mineiro e após ter conhecido o cárcere injustamente (foi presa duas vezes: da primeira, acusada de bruxaria por ler um livro espírita; da segunda, acusada de roubo por um padre). Na capital paulista, acompanhou a demolição de barracos, a retirada de moradores e o início da formação das favelas. Trabalhou como empregada doméstica e catadora de papel. A partir dessa trajetória, Carolina colocou em sua produção reflexões não apenas sobre a fome dos territórios periféricos urbanos: em suas páginas, abordou temas como a ausência do Estado, o racismo estrutural, o patriarcalismo, a violência sistêmica sofrida pelas mulheres, a truculência da polícia, o assistencialismo interesseiro dos períodos eleitorais. E toda essa indignação está em Quarto de despejo, um grito contra as mazelas sociais. Contudo, o livro não deve ser compreendido somente como uma denúncia: nele a autora toca ainda em questões existenciais e filosóficas. Essa variedade de assuntos, aliada a uma escrita visceral, explica a atualidade da obra.

Como você descreve o trabalho de Carolina com a língua portuguesa?

Nágila Oliveira: Carolina estreia o que, décadas à frente, Conceição Evaristo vai conceituar como escrevivência. O projeto literário da artista é multifacetado: mescla linguagem cotidiana com normas rebuscadas, flerta com o parnasianismo e o romantismo, além de trazer doses de deboche, ironia e sarcasmo. Esse projeto, porém, acaba, por vezes, ofuscado por quem engessa Carolina na definição “favelada que escreve”.

Qual é a importância de Carolina Maria de Jesus na literatura brasileira?

Nágila Oliveira: Antes mesmo de Quarto de despejo, Carolina já elaborava poemas e romances. Com Pedaços da fome (1963), vale ressaltar, ela se tornou a terceira mulher negra a publicar um romance no Brasil (a primeira foi Maria Firmina dos Reis, seguida por Ruth Guimarães). Há ainda outros títulos publicados e uma gama de produções que não chegaram ao grande público (em sua maioria, ao contrário do que muitos imaginam, não é de caráter testemunhal, tendo a ficcionista transitado por diferentes gêneros literários, de contos a peças de teatro).

Como educadora e pesquisadora, de que modo você costuma apresentar a obra caroliniana aos estudantes?

Nágila Oliveira: A inserção de Carolina Maria de Jesus em sala de aula deve ocorrer em diversos momentos, pois a pluralidade de sua literatura permite variados usos e pontes com outras disciplinas. Na Educação Básica, trabalho com as obras de Carolina no contexto da sociologia: os livros suscitam discussões a respeito de temas como racismo, indústria cultural e reconhecimento de privilégios. Tem-se um aprendizado coletivo e muitas meninas passam a fazer referências a Carolina, procuram por mais autoras negras e se abrem para expor suas ideias e seus escritos. Em cursos para docentes do Ensino Básico e Superior, percebo uma grande identificação, principalmente por parte de docentes negras e periféricas que não tiveram acesso, em sua formação inicial, à literatura produzida por artistas negras. Várias dessas profissionais me contam que, se tivessem tido contato com Carolina Maria de Jesus durante a graduação, teriam construído outros trajetos pedagógicos com seus educandos.

Se você tivesse tido a chance de dizer algo a Carolina, o que teria dito?

Nágila Oliveira: Carolina, seu grito foi capaz de abrir caminho para outras mulheres negras, o que possibilita que nós, as mulheres de agora, não deixemos que erros do passado se repitam. Seus ecos estão presentes em nossas tessituras, práticas pedagógicas, pesquisas, coletivos, marchas, lideranças. Estamos recriando espaços de reexistência de Carolina Maria de Jesus.
 

>>Eu sei como é que dança

Quando você descobriu a obra de Carolina Maria de Jesus?

Tom Farias: Sou escritor, crítico literário, professor, atuo na área de literatura. Desse modo, Carolina fazia parte das minhas leituras há algum tempo. Em 2014, em seu centenário, fiz uma homenagem em um evento e, para tanto, li bastante sobre ela. Foi então que notei: havia uma distorção em torno da personalidade literária da autora. Tudo o que encontrei acerca de Carolina a associava à pobreza e uma parcela considerável dessas análises vinha de pesquisadores brancos. Isso me incomodou bastante. Pensei: vou escrever um livro sobre Carolina, porque quero entender quem ela foi antes, durante e depois do sucesso de Quarto de despejo.

Como se deu o processo de realização de Carolina – uma biografia?

Tom Farias: Meu trabalho para a feitura de uma biografia parte de uma investigação histórico-literária e de um envolvimento com as fontes. Fui às cidades de Sacramento (MG), Araxá (MG), Ribeirão Preto (SP), Franca (SP) e São Paulo, passei por cartórios, cemitério, pela escola onde Carolina estudou, conversei com pessoas antigas, com os filhos dela (José Carlos e Vera Eunice), com Audálio Dantas, rodei por todos os lugares onde ela pudesse ter passado. Cavei uma memória de Carolina para achar um fio condutor e, dessa maneira, humanizar sua figura, tirando o peso de “escritora favelada”. Um escritor que morou na zona sul é identificado como “zonasulnense”? Esse preconceito reduz o valor da literatura caroliniana.

Qual é a importância de Carolina Maria de Jesus na literatura brasileira?

Tom Farias: Carolina era engajada na atividade literária, tinha a missão de ser artista da palavra: costumava redigir cartas e bilhetes, escreveu romances, peças, esquetes para o circo, chegou a colaborar em jornal. Sua importância vem do fato de que ela insere um viés novo na literatura brasileira. Não se esperava o surgimento de uma voz narrativa do porte de Carolina, responsável por uma centelha de revolução na linguagem (igual, nesse aspecto, a Cruz e Sousa e Mário de Andrade), como se afirmasse: “É assim que se faz. Eu sei como é que dança”. Ela inovou, experimentou e há ainda tanto a ser descoberto (posto que muito de sua produção permanece inédita).

Se você tivesse tido a chance de dizer algo a Carolina, o que teria dito?

Tom Farias: Eu faria um bilhete para Carolina. Nele iria agradecê-la por tudo o que ela representou e representa para nós, brasileiros negros, 56% da população no Brasil. Agradeceria pelo grito de indignação que ela deu em uma pátria que não protege seu povo. Agradeceria pelas denúncias que fez contra a mortalidade, o feminicídio, o extermínio. Agradeceria por seus escritos, por ter dedicado sua vida para que esta nação se tornasse, realmente, uma nação brasileira: um lugar de iguais, onde as pessoas possam se alimentar todos os dias, morar bem, estudar. Agradeceria a Carolina por ter existido. Ela nos mostrou, mais nitidamente, as desigualdades que pesam sobre nós (sobretudo, em homens, mulheres e crianças negros, mas atingem também os não negros). Carolina Maria de Jesus é uma das nossas maiores intelectuais e é preciso que reconheçamos isso.

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