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A arte digital atemporal de Gilbertto Prado

Grupo Poéticas Digitais atualiza e recupera oito obras de seu acervo produzidas nas décadas de 1990 e 2000 com apoio do "Rumos Itaú Cultural"

Publicado em 16/03/2023

Atualizado às 03:00 de 11/05/2025

por Cristiane Batista

Instalações interativas e poemas visuais produzidos nas décadas de 1990 e 2000 ganham novos olhares e possibilidades com o projeto Atualização e recuperação de obras do Grupo Poéticas Digitais, do artista multimídia Gilbertto Prado. A iniciativa recebeu apoio do programa Rumos Itaú Cultural 2019-2020.

De acordo com o artista, não se trata simplesmente do restauro das obras, mas de uma espécie de releitura. “Trata-se de uma retomada da discussão dos trabalhos e seus processos de experimentação e da maneira como as pessoas interagem com eles. Alguns, apesar de mais recentes, já não conseguem ser exibidos devido à mudança de programas, equipamentos e dispositivos que já não são acessíveis. Acreditamos que resgatar esse material – o que ainda é factível – faz parte do resguardo de um pedaço da memória e de algumas produções desse período da arte digital brasileira”, explica Prado.

Também curador e professor, o artista investiga o campo da experimentação em rede desde a década de 1970, tendo como eixo pilares como poesia, memória, natureza e ciência. “Naquela época, a gente sonhava com um mundo melhor e sem barreiras, com pessoas mais próximas e conectadas, mas as tecnologias ainda estavam avançando”, conta.

Na década de 1980, o artista ajudou a organizar o Núcleo de Arte Postal da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), estimulando a interação entre artistas de todo o mundo por meio da mail art – via cartas, postais ou correios. Na década seguinte, ele contribuiu no “wAwRwT”, projeto de pesquisa pioneiro de web art que unia arte e tecnologia.

O trabalho se desdobrou, em 2002, no Grupo Poéticas Digitais, gestado no Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) como um núcleo multidisciplinar de professores, artistas, pesquisadores e estudantes com composições distintas. “Buscamos o torpor, o prazer de fazer, o momento que congela, a retomada de consciência. Trabalhamos em rede, em relação com este mundo maluco que de alguma forma agarramos e que nos agarra também. A arte é um telescópio para novas visões de mundo”, acredita o artista.

Nas obras revistas, ajustadas a novos tempos e dinâmicas, destaca-se a hibridez de elementos, que podem ser naturais, mecânicos e eletrônicos, muitas vezes de difícil instalação e conservação – exigindo-se comumente a reutilização de peças. “Mas o que importa, na verdade, são os deslocamentos poéticos e as conexões. Exploramos a relação dos campos de força muitas vezes presentes na natureza, nas crenças e construções sociais, na posição do homem no mundo e no entendimento com o outro para a construção do trabalho”, diz.

Fotografia em preto e branco de uma máquina de fax e computador. Um homem está ao lado, manipulando o equipamento.Telescanfax, projeto criado na década de 1990, com a chegada da internet (imagem: divulgação)

Telescanfax (A vendedora de ferro de passar roupa)

Como atravessar oceanos, interagir com o outro e perceber nele as reverberações de suas ações e reações? Em 1991, essa possibilidade de interação em tempo real entre artistas em espaços diferentes era uma dificuldade, já que a internet só passa a ser comercializada no Brasil em 1994. Foi quando Prado criou uma performance em que artistas de diferentes localidades interagiam com seus desenhos, seus rabiscos, seus escritos e suas marcações. O projeto, produzido na passagem do analógico para o digital, consistia na leitura de imagens de televisão com um escâner de mão e no seu envio para outro local via fax-modem. Graças à composição dos movimentos de leitura entre o escâner (numérico) e a varredura da imagem televisiva (analógica), obtinha-se uma imagem decomposta, embaralhada, de aspecto enigmático. A videoanimação em loop mostra algumas dessas imagens, realizadas entre a França e o Brasil, da série La vendeuse de fer à repasser (A vendedora de ferro de passar roupa) – nome inspirado na imagem fixa de uma moça em um canal de vendas da TV na época.

O projeto, que foi apresentado na exposição Elastic fax, organizada por Eduardo Kac no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio), foi remodelado em 1991 e participou da #20.ART, no Museu Nacional da República, em Brasília, no ano passado. A montagem recente, que também fará parte do acervo do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC/USP), recuperou e atualizou documentos, fotos e o vídeo do processo, além de trazer placas de corte a laser e um dispositivo de animação/varredura. Também foi feita uma tiragem em NFT (certificado digital protegido por uma chave) da série, NFT 8 the iron saleswoman.

Imagem de Connect, obra do artistaDesl Gilbertto Prado.
Connect sugere o trabalho artístico simultâneo de pessoas em diferentes locais (imagem: divulgação)

Connect

Da mesma época de Telescanfax, Connect também sugeria que pessoas localizadas em diferentes locais do planeta realizassem simultaneamente um trabalho artístico comum. Os participantes deveriam estar equipados com dois fax: um para emissão (E) e outro para recepção (R). Assim que o papel saía de R, era encaixado diretamente em E, sem ser cortado da bobina. Dessa maneira, toda recepção se tornava imediatamente emissão, e as imagens se sobrepunham e se sucediam numa única e longa página encadeada em tempo real, que circulou entre Brasil, França e Estados Unidos, produzindo um trabalho único e compartilhado numa relação/ação direta e integrada.

A obra foi atualizada com uma videoanimação que mostra imagens criadas entre os artistas a partir de uma provocação sobre o ouroboros, figura mitológica representada por uma serpente ou um dragão que morde a própria cauda. O vídeo mantém a linguagem da época, com o som característico dos aparelhos de fax.

Madrid

O poema digital Madrid foi criado em 1996, inspirado em uma vivência do autor na capital espanhola, em uma atmosfera de frio, fumaças de charuto e mulheres sensuais. Na obra, o público era convidado a navegar, por meio de textos, sons e imagens que iam se modificando com o uso do mouse, pelas palavras “nervo”, “neve” e “neva”, gerando diferentes caminhos de percepção e leitura.

Algumas imagens utilizadas na composição foram obtidas em 1992, como resultado de erros na leitura de disquetes do projeto de ação interativa Moone: la face cachée de la lune, do mesmo autor. Essas imagens embaralhadas e enigmáticas, produzidas na transcodificação de disquetes entre computadores Mac e PC, também foram impressas e apresentadas em uma série. Misto de poesia concreta e haicai, os poemas foram gravados em disquetes que dependiam de plug-ins. Agora recuperados e gravados em vídeo, mostram a feitura do trabalho e mantêm a composição de imagens e textos em branco e preto, além de alguns percursos possíveis para o poema.

Amoreiras

A obra foi pensada originalmente em 2010, quando cinco amoreiras foram plantadas em vasos na Avenida Paulista, em São Paulo, e tiveram seus sons captados por um microfone para medir as variações e discrepâncias de ruídos como um sintoma dos diversos poluentes a que estavam sujeitas. Um balançar das folhas e dos galhos era provocado por uma prótese motorizada disposta ao redor do tronco de cada árvore. A observação e o amadurecimento do comportamento das árvores foram possibilitados por um algoritmo de aprendizado artificial, e, ao longo dos dias, as árvores vibravam em diálogo com a variação dos fatores de poluição, como em uma dança. “Às vezes, as pessoas chegavam perto dos vasos e batiam palma para ver se haveria um ‘retorno’, mas não se trata disso. O conjunto dos passantes e o barulho do ambiente é que fazem parte do processo, que acionam o dispositivo. Queremos, com este trabalho, lembrar de uma infância sonhada, vivida ou a ser vivida em convivência e diálogo com outros elementos da natureza. O que a gente pode fazer para manter isso? A natureza aponta caminhos!”, diz Prado.

A obra recebeu novos dispositivos eletrônicos e sensores, além de um registro em vídeo do processo de execução. Será montada novamente neste ano, em frente ao MAC/USP, e fará parte de seu acervo.

Encontros / / meetings / encuentros / बैठक / اجتماع / встреча / ミーティング/ rendez-vous / treffen / pertemuan / spotkanie

De 2012, a obra fala da impossibilidade do encontro, e foi produzida no Rio Amazonas a partir de trechos onde os fluxos de água apresentam tonalidades distintas: de um lado, a predominância da cor preta, do outro, da cor marrom. Trata-se de uma experiência literalmente imersiva do artista. “Amarrei uma boia na cintura e me joguei entre as águas com uma câmera de vídeo. Dois celulares, um de frente para o outro, com uma mola entre eles, tensionando e abrindo possibilidades. Os vídeos vão mudando e só tem uma posição em que as águas se misturam, possibilitando assim a poética de um encontro imaginário. O que acontece quando estamos no meio dessa linha? Porque, como o Sol e a Lua, a interação dessas forças da natureza impossibilita o encontro”, afirma. O dispositivo busca informações em tempo real, de modo a refletir as mudanças das marés e das fases da Lua de um lado, em contraponto ao fluxo de acesso à palavra “encontro”, que aparece em diversos idiomas, do outro. O trabalho já foi exposto no Brasil, na Argentina, na Colômbia, no México, na Polônia e em Portugal.

A imagem mostra pessoas em um espaço expositivo com luz LED azul, ao redor da obra Desluz, de Gilbertto Prado.
Criado em 2009, a obra Desluz explora campos invisíveis de força (imagem: divulgação)

Desluz

De 2009, a obra explora campos invisíveis de força. Utiliza no espaço expositivo um cubo de LEDs transparentes que emitem luz infravermelha, comprimento de onda que o olho humano não enxerga, mas que é um potente atrator de insetos – que normalmente usam a luz da Lua e das estrelas como baliza de localização, mantendo-se em ângulo constante para ir e vir de seus criadouros. Com a luz artificial das lâmpadas elétricas, eles se confundem, buscando se aproximar dessas fontes. A movimentação de pessoas na área da luz vermelha é capturada por uma câmera local, que registra uma visão de topo do espaço e do fluxo dos transeuntes, que não são identificados. As informações adquiridas alimentam simultaneamente o sistema instalado na exposição, que também compreende caixas de som. “A obra fala dos desejos que não são vistos e/ou percebidos, dos nossos desejos incontidos, como uma maneira de trazer o que está de fora para dentro. São pedaços de mundo que a gente não vê”, explica o artista.

Imagem digital da instalação
Cozinheiro das almas é uma instalação que mescla literatura e jogo (imagem: divulgação)

Cozinheiro das almas

A instalação mescla literatura e jogo e foi inspirada no livro O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, de Oswald de Andrade (Garamond, 2014). O texto retrata o romance do escritor com a estudante Maria de Lourdes Castro de Andrade, que ganhou o apelido de Deisi (ou Miss Ciclone), morta aos 18 anos, logo após se casar com o escritor, por complicações no parto. A obra também retrata o relacionamento de Oswald com jovens intelectuais e artistas que ajudaram a fundar o movimento modernista no Brasil, frequentadores de sua garçonnière. O espaço, alugado originalmente para encontros amorosos, ficava na Rua Líbero Badaró, no Centro de São Paulo.

O jogo foi desenvolvido experimentalmente entre 2005 e 2006. Nele, um personagem principal se perde na cidade de São Paulo de 1918, em um roteiro virtual duplamente labiríntico: tanto no aspecto espacial (os vários ambientes) quanto no temporal, já que as tramas dentro de cada ambiente eram lineares, mas o jogador poderia aportar nelas em qualquer fase do desenvolvimento do jogo. Em 2015, o icônico espaço que se imaginava perdido é redescoberto na mesma rua, mas em outro número, em razão do crescimento da cidade. Em 2022, o jogo tem uma nova proposta, que atualiza os softwares já defasados e o transforma em uma instalação temática. No processo, ganhou nova programação, remodelagem dos objetos e retoques na iluminação dos ambientes. Agora, também está disponível na versão Unity, plataforma de desenvolvimento para a criação de jogos e de experiências interativas. A versão original também está acessível para consulta.

O novo jogo conjuga diferentes momentos ficcionais em projeções simultâneas e se passa em 1918, 2006 e 2022. Apresenta personagens e ambientes imaginados a partir de uma visita à garçonnière, que hoje abriga um centro de formação de bombeiros civis. “Lá, encontrei uma moça bordando uniformes e resolvi incluí-la na trama. É a única personagem que ganha movimento, ela faz a ligação entre os outros personagens, os ‘fantasmas’, e no jogo borda as palavras ‘amar’, ‘desamar’, ‘amar’. A obra trata de todas essas dimensões que a cidade abriga, com seus personagens antigos e atuais, a sobreposição de tempos e histórias, desejos, caminhos e efemeridades, encontros possíveis e não possíveis, nossa forma de imaginar o mundo”, explica.

O trabalho já foi exposto em países como a Alemanha, a Espanha e a França, e fará parte do acervo do MAC/USP.

Caixa de choque 

A obra, inspirada nos toqueros mexicanos, foi produzida em dois anos e exposta pela primeira vez em 2018, no Convento de San Diego, no México, construído em 1594, época da colonização espanhola no país. Na experiência artística e sensorial, uma série de máquinas de choque é associada aos toqueros e suas caixas de choque, atividade popular no centro histórico da Cidade do México em que as pessoas se autoinfligem correntes elétricas para aliviar o estresse e a embriaguez – ou para testar sua valentia.

Foram usados dínamos, baterias e elementos da cultura mexicana como o milho (muito presente na cultura latino-americana), a pimenta (picante e que, em seu estado bruto, pode provocar lágrimas e queimar a língua) e laranjas (vindas da Ásia e da Europa e indicadas, pela vitamina C, ao tratamento do escorbuto, a chamada “doença do explorador”).

“O que é nosso e o que é do outro? Como as culturas de gostos, costumes, conhecimentos e mesmo a fé são impostos de forma violenta aos povos originários? Somos feitos desses curtos-circuitos culturais. Somos camadas, já fomos queimados e queimamos pessoas e fogueiras”, analisa o artista.

As obras Amoreiras, Caixa de choque, Encontros e Desluz estão no livro Circuito alameda, de Gilbertto Prado e Jorge La Ferla, publicado em 2018 pelo Instituto Nacional de Bellas Artes da Cidade do México.

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