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Cavalos pretos são imensos: o afeto entre mulheres em cárcere

Bárbara Esmenia e Fernanda Gomes falam sobre o processo de criação da peça e as possibilidades de afeto em situações de cárcere

Publicado em 25/07/2022

Atualizado às 15:52 de 25/07/2022

Por William Nunes de Santana

A nona edição de Todos os gêneros – programação que acontece de 27 a 31 de julho – celebra o amor, o afeto, a identidade e a cultura lésbica. Entre as atrações, Cavalos pretos são imensos, da dramaturga Bárbara Esmenia, aborda a questão da afetividade no cotidiano de mulheres em cárcere.

Na peça, Nininha está em situação de cárcere. Mas, como um dia sonhou seu filho Nino, ela sabe que pode ser um imenso cavalo preto quando quiser, assim como suas companheiras de cela. Para Bárbara, o cavalo preto simboliza a transmutação, a reinvenção, a possibilidade de encontrar afeto em um ambiente onde se imagina ter apenas dor e sofrimento. “A possibilidade desse cotidiano é também a possibilidade do riso, de trazer a piada, de contar que uma vai ter a visita íntima no fim de semana e todas darem risada [...]”, diz a dramaturga.

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Na entrevista abaixo, Bárbara e a atriz Fernanda Gomes falam sobre o processo criativo da peça, a importância da escuta para a composição das personagens e a relação de afeto dentro do cárcere.

Retratos do elenco do espetáculo Cavalos pretos são imensos. Todas as artistas que participam do espetáculo são mulheres negras. A imagem mostra um rolo de câmera, com diversas fotos das atrizes.
O elenco do espetáculo Cavalos pretos são imensos participou de um ensaio fotográfico para a publicação Todos os gêneros 2022 (imagem: Anne Karr)

Eu gostaria que vocês começassem falando sobre o título da peça. Tem alguma simbologia por trás dele? O que significa?

Bárbara: O título surgiu a partir de um sonho. Quando estava pensando na peça, inicialmente, eu só tinha na cabeça que queria trazer a narrativa de Luana Barbosa [mulher negra e lésbica morta em 2016 em uma abordagem da Polícia Militar na cidade de Ribeirão Preto (SP)]. Fiquei pensando na possibilidade de uma reinvenção, que não fosse apenas em cima da dor e do sofrimento; uma narrativa de possibilidade de reinvenção e de transmutação.

E eu sonhei com um cavalo preto, ele comia o meu braço inteiro, mas eu não ficava em choque, só ficava parada vendo. Daí veio a frase inteira, com sujeito, verbo e predicado: “Cavalos pretos são imensos”. Acho que transmite essa reinvenção de grandeza.

Vocês fizeram um processo de escuta, com relatos e conversas. Qual foi a importância disso para a criação do espetáculo e das personagens?

Fernanda: A gente se encontrou primeiro virtualmente, em 2021, e ficou bastante tempo trabalhando leitura, encenação e criação. Acho que a Bárbara, como dramaturga, deixou a gente muito à vontade para pensar também na construção do espetáculo, para trazer elementos que remetiam a uma ou outra personagem.

Foi sensacional para mim, não foi só um trabalho de atriz. Eu sou uma pessoa lésbica, sapatona e periférica que conhece muito de perto o cárcere em si, então foi um período muito especial de criação. Nenhum outro dramaturgo, diretor ou equipe me deixou criar e pensar tanto como esse grupo de mulheres que me proporcionou esse presente.

Bárbara: Em 2018, participei de um projeto sobre o encarceramento. Nesse período, eu conheci muita gente que passou por situação de cárcere ou que trabalha com pessoas nessa situação, então, ali foi meio que um começo da escuta dessas narrativas em primeira pessoa. Depois, houve uma troca com a Cooperativa Libertas – um coletivo do qual sou próxima, acompanhando desde que nasceu –, que trabalha com pessoas que saíram de situação de cárcere.

E também teve o material de pesquisa da Natália Corazza Padovani, que fez mestrado e doutorado sobre a aplicação da lei e o afeto, sobre a questão da afetividade. Ela pesquisou os corpos sapatões lá dentro, essa questão de como o Estado pensa e viola essas afetividades pela lei, estruturalmente.

Fernanda, quais vivências vocês, como atrizes, puderam trazer para compor as personagens?

Fernanda: Eu faço duas personagens, a Lúcia e o Chuvisco, muito diferentes uma da outra. Sou muito próxima da Lúcia e, ao mesmo tempo, do Chuvisco. Enfim, a gente mora em bairro periférico, favela, quebrada, então não é novidade conhecer diversas pessoas que passaram pelo sistema do cárcere, inclusive familiares bem próximos. Você vai buscando memórias, ouvindo o barulho do cadeado, o relato das pessoas que você conheceu na fila do presídio, o relato de uma mãe, de uma mulher que foi visitar um parente. A gente passa em frente de qualquer presídio feminino e percebe o tamanho da fila que se dá.

Em Osasco (SP), tem três complexos: o masculino, o feminino e a Febem [Fundação Estadual do Bem Estar do Menor, hoje chamada Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação Casa)]. No horário de visita, você pode passar na frente dos três e o feminino é o mais vazio, uma fila que tem 10, 15 pessoas, enquanto no masculino as pessoas dormem na fila, vão um dia antes para poder ter acesso ao seu parente, à pessoa que está lá.

Então, acho que essas trocas e as vivências com os vizinhos, com o pessoal da família, com o meu próprio corpo frequentando esse espaço – e sendo sapatona –, observando como essas mulheres vivem, se movimentam e se articulam depois do presídio e do encarceramento, me ajudaram muito a pensar e compor a personagem.

E também me trouxe uma grande dificuldade, porque diversas vezes eu não conseguia me desvincular do meu eu pessoal, da minha vivência, da minha história, da história de pessoas que passaram pelo cárcere e das personagens que estavam ali. Fiquei um pouco chocada, mas rolou.

Quais são as possibilidades de afeto que esses corpos conseguem encontrar nessas situações?

Bárbara: Acho que o retorno do público é um pouco nesse lugar. Quando se lê a sinopse, com a questão do cárcere, isso se sobrepõe ao cárcere, à questão de gênero e de sexualidade, então, você espera um pouco do que comentei sobre a narrativa do sofrimento como se fosse a única possibilidade dessa vivência.

A gente tem cinco personagens em cena, que convivem no dia a dia. A possibilidade desse cotidiano é também a possibilidade do riso, de trazer a piada, de contar que uma vai ter a visita íntima no fim de semana e todas darem risada, ou que uma tomou um chifre. São esses pequenos arranjos na microestrutura que acabam se sobrepondo para o macro. Uns pequenos cuidados que você observa. Por exemplo, uma personagem diz que está com saudade da filha e essa frase não é esperada dela, porque é um corpo sapatão, preto, periférico, masculinizado, e você nem pensa que é uma mãe.

Você quebra a expectativa da narrativa que já estava dada para esse corpo. Então, o afeto chega nesses pequenos detalhes da peça, ao quebrar o que é esperado desses corpos.

Fernanda: Isso é algo muito importante e sensível na escuta da Bárbara, porque existe um senso comum de que o cárcere é um lugar de muita violência de umas com as outras. E, na maioria das vezes, o principal afeto que elas têm é de uma com a outra. Esse é o cotidiano que a Bárbara traz para a peça.

Acho que o público esperava uma coisa mais violenta, mais sangrenta, e a peça humaniza essas mulheres, essas pessoas com vulva. Humaniza e fala de afeto também nesse lugar, que é interno. Porque o cárcere está aí, ele existe, a gente ainda não está numa fase de abolicionismo penal. Ele existe e tem milhares de pessoas lá dentro. E como circula o afeto naquele convívio, dentro daquele quadrado?

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