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Fernando Sabino, 100 anos: o escritor que nasceu homem e morreu menino

Para comemorar o centenário, Record vai lançar, por exemplo, edição de luxo de “O encontro marcado” e versão em quadrinhos de “O grande mentecapto”

Publicado em 12/10/2023

Atualizado às 10:43 de 13/10/2023

por André Bernardo

Numa manhã de 1967, o telefone tocou no apartamento de Fernando Sabino, na fronteira entre Ipanema e Copacabana, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Era João Guimarães Rosa. “O que você está fazendo?”, perguntou o mineiro de Cordisburgo. “Tentando escrever uma peça de teatro”, respondeu o conterrâneo de Belo Horizonte. “Não faça biscoitos: faça pirâmides…”, sugeriu o autor de Grande sertão: veredas (1956).

Rosa morreu pouco tempo depois, no dia 19 de novembro daquele mesmo ano, e a tal peça, adaptada de um conto, nunca saiu do papel. “Um biscoito é pequeno, portanto desprezível – uma pirâmide é monumental, portanto grandiosa; um biscoito é consumível, portanto efêmero – uma pirâmide é permanente, logo eterna”, concluiu Sabino na crônica “Biscoitos e pirâmides”, incluída no livro No fim dá certo (1998).

Ao longo da carreira, Fernando Tavares Sabino (1923-2004) construiu três “pirâmides”: O encontro marcado (1956), O grande mentecapto (1979) e O menino no espelho (1982). E produziu incontáveis “biscoitos”, como a crônica “O homem nu” (1960), a novela A faca de dois gumes (1985) e a autobiografia O tabuleiro de damas (1988). “Biscoitos finos”, como ressalta o jornalista Arnaldo Bloch na biografia Fernando Sabino – reencontro (2000).

Para comemorar o centenário do escritor, o Grupo Editorial Record lança uma edição de luxo de O encontro marcado, publica uma versão em quadrinhos de O grande mentecapto e reedita Cartas perto do coração (2001), com a correspondência trocada entre Sabino e Clarice Lispector. A editora, fundada em 1942 por Alfredo Machado, abriga a obra do autor desde 1975.

 

Fernando Sabino está sentado em uma cadeira. Atrás dele, há estantes com livros. Ele veste uma camisa de manga curta. A foto é em preto e branco.
Fernando Sabino em seu apartamento em Copacabana | imagem: acervo pessoal


“Conheci o Sabino ainda criança. Era muito engraçado, atrapalhado como seus personagens”, recorda Sônia Machado Jardim, filha de Alfredo Machado e atual presidente da Record. Ela relembra: “Certa vez, combinamos de assistir a um show no Canecão. Na hora de sair, nada de o Fernando achar a chave do carro. Até ele se dar conta de que tinha trancado o carro com a chave dentro. Naquele tempo, isso era possível, apertando-se o pino da porta. Como estávamos em cima da hora, pegamos um táxi. O motorista começou a correr e Fernando pediu que ele reduzisse a velocidade. O cidadão se fez de surdo e Fernando disse que era bom obedecê-lo porque ele era o General Artigas. Em tempos de ditadura, o motorista obedeceu, e eu segurei a gargalhada…”.

“O jovem que eu fui”

O primeiro dos três livros a chegar às livrarias é O encontro marcado. “Ao todo, levei dois anos para terminá-lo. Tive de reescrever tudo três vezes. Enveredei por vários atalhos sem saída. Escrevi 1.300 páginas para aproveitar só 320”, relata Sabino na crônica “Encontro”, de O tabuleiro de damas. Com capa dura e novo projeto gráfico, a nova edição traz uma carta da autora de A hora da estrela (1977), que se disse “espantada” com a obra. “Cada vez que penso no livro – e tenho vivido com ele nesses últimos dias –, gosto mais”, escreveu Clarice de Washington em 8 de janeiro de 1957. “Li por assim dizer de uma só vez. E não creio que se consiga interromper a leitura.”

Quem apresentou Fernando Sabino a Clarice Lispector foi Rubem Braga em 1946. Os dois logo se tornaram amigos e confidentes. Trocaram correspondência por 23 anos, até 1969. Foi Fernando, aliás, que sugeriu a Clarice que mudasse o título de A maçã no escuro (1956) – o original era A veia no pulso.

O prefácio da nova edição de O encontro marcado é do escritor Michel Laub. “Minha impressão foi ótima, porque achei que não iria gostar: desconfiava que o tom da história era o de uma nostalgia datada, e me surpreendi com o quanto o livro era (e ainda é) moderno”, explica Laub. E continua: “De forma direta, não [exerceu influência], justamente porque li adulto, com meu estilo já definido. Mas é possível que, em algum sentido indireto, isso tenha ocorrido. Meus livros seguem a tradição do romance memorialístico, ou que finge ser memorialístico. E, nessa tradição, O encontro marcado é referencial no Brasil”. 

“O doidivanas que continuo sendo”

Os outros dois livros – O grande mentecapto e Cartas perto do coração – ainda não têm previsão de lançamento. Uma curiosidade: O grande mentecapto foi publicado em 1979, ou seja, 23 anos depois de O encontro marcado. Foi Lygia Marina, a terceira esposa de Sabino, quem convenceu o marido a retomar a obra, interrompida em 1945. “Nossa, isso dá um livraço!”, exclamou Lygia ao ouvir as primeiras linhas da história lidas pelo próprio autor.

Em apenas 15 dias, trabalhando dia e noite, Sabino concluiu o romance, transformado em filme por Oswaldo Caldeira em 1986, com Diogo Vilela no papel de Geraldo Viramundo. “Se eu não tivesse tido a reação que tive, talvez aquele livro admirável tivesse ficado engavetado”, orgulha-se Lygia. “Sou suspeita de falar, mas me considero a mãe do mentecapto!”, diverte-se.

Com o ex-marido, com quem viveu 19 anos, de 1974 a 1993, Lygia aprendeu a amar viagens. “Conhecemos quase o mundo inteiro”, diz a autora de Música na alma – uma história de família, amigos, amores, risos e música (2022). Das muitas viagens que fizeram juntos, ela destaca a de Buenos Aires como a favorita. “Estávamos começando a namorar, e eu tinha me separado havia pouco tempo. Foi, praticamente, uma viagem clandestina”, recorda. “Para todos os efeitos, disse à família e a amigos que tinha ido visitar uma amiga de infância que morava lá. Mal a vi para um rápido almoço”, ri.

“A criança que eu gostaria de voltar a ser”

O grande mentecapto não foi a única obra do autor adaptada para o cinema. Só o texto “O homem nu” ganhou duas versões: a primeira, de 1968, foi dirigida por Roberto Santos e protagonizada por Paulo José; a segunda, de 1997, contou com a direção de Hugo Carvana e a atuação de Cláudio Marzo no papel do professor de música que passa por tarado ao ficar sem roupa no prédio onde mora.

A mais recente de suas adaptações cinematográficas é O menino no espelho, de 2014, escrito e dirigido por Guilherme Fiuza Zenha. No romance, Sabino fala de dois de seus temas favoritos: a infância e a amizade. “Quando era menino, me perguntavam o que eu queria ser quando crescesse. Se me perguntassem hoje, responderia: quando crescer, quero ser menino”, filosofa o escritor no romance que inspirou o filme.

Em um retrato em preto e branco, Fernando Sabino aparece sério, com uma das mãos no queixo e cabelo curto.
Fernando Sabino | imagem: acervo pessoal

“Quem me apresentou o livro foi minha ex-mulher, Daniela. Quando li, fiquei encantado! A amizade é um traço forte do autor, do livro e do grupo do qual ele fazia parte”, explica Zenha, referindo-se aos “quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse” Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos.

“Vocês brigam muito?”, perguntou Mário de Andrade quando conheceu o grupo. Diante de uma resposta afirmativa, aconselhou: “Ótimo, continuem assim”. “Na verdade, sempre fomos só três: os quatro juntos nunca deu certo, acabando sempre em desentendimento e confusão, todos a falar ao mesmo tempo”, escreveu Sabino na crônica “Hélio, Otto, Paulo”. “Era preciso ter sempre um ausente, pouco importava qual, para que os outros três se entendessem falando mal dele.”

Noutra ocasião, outro poeta, Augusto Frederico Schmidt, leu um poema novo para o grupo. Como, depois de lido, ninguém dissesse nada, ele perguntou: “Vocês acham que estou decadente?”. “Achamos”, Paulo respondeu pelos quatro. E Schmidt, resignado: “Obrigado pela franqueza…”.

Discípulo e mestre

Fernando Sabino publicou seu primeiro livro, Os grilos não cantam mais, em 1941, aos 17 anos. Pagou a edição de mil exemplares com a sua parte na venda de um lote que o pai, Domingos, dividiu entre os seis filhos. Um desses exemplares foi endereçado à casa de Mário de Andrade. Para a surpresa do remetente, o destinatário respondeu. Era o início de uma amizade que durou quatro anos, até a morte do poeta modernista, em 1945.

“Pra que imaginar se do outro lado do túnel faz dia ou faz noite? Só tem um jeito de saber: é ir até lá”, filosofou Mário de Andrade numa de suas cartas, reunidas na antologia Cartas a um jovem escritor (2003). Entre outros conselhos, o autor de Macunaíma (1928) recomendava: ler muito e escrever sempre. “Assumi o compromisso de ler um livro por dia. Lia durante horas seguidas, em casa ou na Biblioteca Pública. E até mesmo em plena rua: andava de livro aberto diante do nariz. Volta e meia, chegava com um galo na testa, porque ia lendo pelo caminho e dava com a cabeça num poste”, recorda em outra crônica, “Iniciação”. Foi Mário de Andrade, a propósito, quem sugeriu a Sabino que, ao publicar seus livros, encurtasse seu nome. Em carta, deu três sugestões: Tavares Sabino, Fernando Tavares ou Fernando Sabino. “O que é impossível é Fernando Tavares Sabino”, decretou. 

No Rio, onde passou a morar em 1944, Fernando Sabino acordava às 5, tomava café e saía para caminhar. Na volta para casa, gostava de bater papo com admiradores anônimos: contava histórias, anotava endereços, distribuía sorrisos. Trabalhava das 10 da manhã à 1 da tarde, e das 5 da tarde às 8 da noite. “Como Raymond Chandler, não faz mais nada no tempo dedicado à atividade, mesmo que não saia uma linha”, observa Bloch. Dia sim, outro também, Sabino recebia originais para analisar. “Não tenho competência para tanto. Mário era único.”

Quarteto fantástico

Em 1974, Fernando Sabino foi convidado a participar de um projeto da Editora Ática chamado Para gostar de ler. O objetivo da coleção, criada pelo editor Jiro Takahashi, era reunir crônicas de autores nacionais e apresentá-los às novas gerações. Os primeiros cinco volumes foram dedicados a Carlos Drummond de Andrade, Sabino, Rubem Braga e Paulo Mendes Campos. Com publicação semestral, cada volume trazia 20 crônicas, cinco de cada autor. O primeiro volume saiu em 1975, com tiragem inicial de 100 mil exemplares.

Fernando Sabino, Hélio Pelegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos estão conversando, um ao lado do outro. Atrás deles, há estantes com livros. A foto é em preto e branco.
Fernando Sabino, Hélio Pelegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos | imagem: acervo pessoal


“Ouvir Fernando Sabino contar histórias, principalmente de viagem, era tão divertido quanto ler suas crônicas”, relata Takahashi. “Certa ocasião, ele viajou para Frankfurt e, ao chegar ao saguão do hotel, espantou-se com a quantidade de mulher bonita em um mesmo lugar. ‘Nossa, nunca imaginei que houvesse tanta beleza assim na Alemanha!’, pensou. Foi quando o atendente do hotel explicou que, naquela noite, haveria um concurso de Miss Universo na cidade, e todas as candidatas estavam hospedadas ali.” 

A coleção Para gostar de ler deu tão certo que, ao longo de quase cinco décadas, a Ática publicou outros gêneros, incluiu autores internacionais e chegou ao 47º volume, dedicado a histórias sobre o meio ambiente. 

Eternamente jovem

O ofício de escritor incluía, além de ler muito, escrever sempre, distribuir autógrafos e visitar escolas. Numa dessas visitas, ao Colégio Farias Brito, em Fortaleza, Sabino conheceu o professor de literatura Edmilson Caminha. “Sua alegria e sua jovialidade eram contagiantes”, conta o amigo educador. “Não consigo imaginá-lo com 100 anos: permanecerá, para sempre, aquele amigo que, embora nascido 30 anos antes, era muito mais jovem do que eu…”.

Volta e meia, os dois se reencontravam, no Rio ou em Fortaleza, para conversar sobre literatura, viagens, cinema e música – jazz, para ser mais específico (Sabino gostava tanto de jazz que chegou a tocar numa banda, a The Ramblers Traditional Jazz Band). “Era profundo conhecedor do gênero, e praticante, pois tocava bateria”, explica Caminha, que ganhou de presente, num desses encontros, os originais do livro O gato sou eu (1983), os quais guarda até hoje como “relíquia”. “Sabino contava histórias como se estivesse conversando com os leitores”, resume. 

Fernando Sabino está tocando bateria. Ele é um homem branco, com barba branca e veste um paletó azul-marinho.
Fernando Sabino tocando bateria | imagem: acervo pessoal


Certa vez, o escritor encontrou em Los Angeles um brasileiro que confessou ter se mudado do Rio por causa do barulho. “Um sujeito na casa vizinha não me deixava dormir”, reclamou. “Pelo endereço descobri que o sujeito era eu”, confessou Sabino. Por razões óbvias, o aprendiz de baterista se desfez do instrumento. Doou para Dom Hélder Câmara. O fundador da Feira da Providência aceitou a doação de bom grado, mas logo se desapontou ao descobrir que, em vez de uma bateria de cozinha, era uma bateria de música. 

Os sabiás da crônica

Ao longo de sua carreira, Fernando Sabino fundou, ao lado de Rubem Braga, duas editoras: a Editora do Autor, que funcionou de 1960 a 1966, e a Editora Sabiá, de 1967 a 1972. “Rubem sempre foi aquele amigo com quem se pode contar”, destacou Sabino. “Em caso de algum problema, se eu tivesse de pedir ajuda a alguém, seria a ele, a qualquer hora do dia ou da noite.” 

Em cinco anos de existência, a Sabiá publicou importantes autores nacionais, como Vinicius de Moraes, Cecília Meirelles e Sérgio Porto, e internacionais, como Gabriel García Márquez, Pablo Neruda e Mario Vargas Llosa. Sabino decidiu vender a editora em 1972, quando, certa manhã, chegou para trabalhar e encontrou um relógio de ponto instalado na parede. “Meu Deus, isso aqui virou uma empresa!”, arregalou os olhos. “Tem gente aqui que eu nem conheço!” A Sabiá foi vendida para a José Olympio por 1 milhão de dólares. 

Ainda em 1972, abriu a produtora Bem-te-Vi, com o cineasta David Neves. Juntos, rodaram dez documentários, todos em 35 milímetros e com dez minutos de duração, com grandes nomes da literatura brasileira, como Manuel Bandeira, Jorge Amado e Érico Veríssimo. Do curta-metragem O fazendeiro do ar, sobre Drummond, ficou a lição de amor ao próximo: “Não se deve exigir das pessoas mais do que elas podem dar”. 

Otimista incorrigível

Hoje, quem visita escolas para estimular o hábito da leitura entre os alunos é Bernardo Sabino, um de seus sete filhos. No projeto Encontro marcado com Fernando Sabino, os estudantes leem alguma obra do autor e, em seguida, realizam atividades artísticas e culturais, como teatro, dança, rap e grafite. “Meu sonho é ter um espaço dedicado à memória de meu pai em Belo Horizonte”, confessa o presidente do Instituto Fernando Sabino. Desde 2006, quando foi inaugurado, o projeto já atendeu um público estimado de 1 milhão de alunos. No centenário do autor, as cidades visitadas serão Cabo Frio (RJ), Itabira (MG) e Itabirito (MG).

Fernando Sabino está sentado em uma cadeira. No colo dele, está Bernardo ainda criança, seu filho. Um olha para o rosto do outro.
Fernando Sabino e o filho, Bernardo | imagem: acervo pessoal


Das muitas lições que aprendeu com Fernando Sabino, Bernardo destaca duas: a empatia e a solidariedade. “Meu pai tinha umas frases ótimas: ‘As coisas são como são e não como deviam ser – e muito menos como gostaríamos que elas fossem’, ‘O que não tem solução, solucionado está – não adianta gastar boa vela com mau defunto’ e ‘No fim dá certo. Se não deu, é porque ainda não chegou ao fim’. Mas a minha favorita é: ‘A única forma de resolver um problema nosso é resolver primeiro o do outro’.” 

Fernando Sabino nasceu em 12 de outubro de 1923, Dia das Crianças. E morreu em 11 de outubro de 2004, um dia antes de completar 81 anos, vítima de câncer no fígado. Foi sepultado no Cemitério São João Batista, em Botafogo, no Rio de Janeiro, ao som do gênero de que mais gostava: o jazz. Na lápide da sepultura, o epitáfio que ele mesmo inventou: “Aqui jaz Fernando Sabino. Nasceu homem, morreu menino”.

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