Neste 20 de abril, Dia do Disco de Vinil, as DJs Carlu, Mary G e Vanessa Serra falam sobre a discotecagem com vinil
Publicado em 20/04/2023
Atualizado às 03:00 de 11/05/2025
Escutar uma música ou um álbum já foi uma experiência muito diferente do que é hoje. Se agora temos as discografias inteiras de Gilberto Gil e Maria Bethânia – e de quem mais você quiser – em streamings, se podemos encontrar a trilha sonora de um filme com toda a facilidade que a tecnologia nos permite, há três, quatro ou cinco décadas a experiência era completamente outra.
Os discos de vinil já foram a principal forma de ouvir música – ao lado do rádio (que também utilizava os discos em suas transmissões), da televisão e dos shows ao vivo. Em 2022, um relatório da RIAA (em português, Associação da Indústria Fonográfica dos Estados Unidos) mostrou que, pela primeira vez em 36 anos, a venda de vinil superou a de CDs – foram 41 milhões de discos vendidos.
Independentemente dos números, a cultura do vinil sempre teve seus seguidores, entre ouvintes, colecionadores assíduos, pesquisadores musicais e DJs – como são as três entrevistadas desta matéria de 20 de abril, Dia do Disco de Vinil, data celebrada desde 1978, em homenagem ao compositor e sambista Ataulfo Alves de Sousa, falecido no mesmo dia de 1969. Vale mencionar também o 12 de agosto, que, desde 2007, é conhecido como Record Store Day e reúne comemorações em lojas e gravadoras mundo afora.
Para entender o que é a cultura do vinil, é preciso pensar em uma experiência que estimula outros sentidos – o tato e a visão, por exemplo – além da audição. Segurar o disco nas mãos, olhar os detalhes do encarte, ler as letras e outras informações sobre aquela obra, colocá-lo no toca-discos e ouvir um som mais encorpado e com qualidade superior – tudo isso compõe uma experiência diferente da que temos com as mídias digitais.
“Os entusiastas do disco de vinil têm um apreço ao som; ele traz um som quente. Mas não é só isso. O vinil marca uma história muito importante para nós [que vivemos o auge dessa época], traz essa mágica. Desde menina eu pensava: ‘Como pode sair uma musiquinha dali, como pode passar por uma agulha de cristal ou diamante, como uma pontinha vai trazer um som?’ – e isso tudo traz uma aura, uma atmosfera diferenciada”, conta Vanessa Serra, DJ natural do Maranhão.
Mary G, DJ de São Paulo, complementa: “Vai muito além do [ato de] ouvir música. Você entende quem fazia acontecer, quem produzia, se tinha mulher ou não no meio. Às vezes, descobrimos mulheres que ninguém nunca citou. Fora a qualidade sonora – aquele som de chiado é nostálgico – e as capas que dariam um quadro”.
Esse som mais encorpado também leva um brilho a mais para as pistas de dança, por meio de DJs que preferem tocar com discos de vinil. É o caso de Vanessa, Mary e de Carla Carvalho – também de São Paulo e com o nome artístico de DJ Carlu –, que fazem seus sets, principalmente, com vinil. Esse jeito de discotecar abre um mundo de oportunidades no que se refere à pesquisa musical e à montagem do set, e até mesmo na hora de tocar.
“É outro jeito de lidar com a discotecagem. Com o computador, o céu é o limite, mas o vinil tem essa coisa – de que eu particularmente gosto – de olhar a capa, pegar com as próprias mãos, ter o som original saindo de outra forma. Você sente mais o que está fazendo”, diz Mary G. “O trabalho manual é mais presente. A forma como você segura o vinil é diferente, tem que ser com a mão mais leve, ter mais sensibilidade para colocar e tirar do toca-discos. Tudo exige um pouco mais de atenção e cuidado.”
Pesquisa e resgate de sonoridades
A pesquisa musical se torna um trabalho ainda mais importante e minucioso para DJs que tocam com vinil. O famoso garimpo pode ter vários caminhos, desde a procura por sonoridades que combinam com o set que será apresentado até uma busca mais livre, mas que pode levar a sons locais. “Alguns discos que tenho não estão no YouTube, [são] álbuns que encontrei em Recife ou no Maranhão. Há esse valor simbólico de você achar aquela obra de arte em um galpão”, comenta Mary.
Ela conta que, sempre que viaja para tocar, separa um tempo para ir a uma loja de discos em busca de novidades para a sua coleção. “Dependendo da região em que você está, muda muito o que pode ser encontrado. Vou esperando me surpreender com alguma coisa que não conheço, algo da cultura local. Quando estive em Belém, no Pará, foquei bastante no carimbó e em outras sonoridades locais, mas a cidade tem muito disco de soul funk norte-americano. Você aprende muito da história do lugar pesquisando música – por exemplo, descobri que na década de 1970 chegava muito vinil das Américas do Norte e Central por ali, que é o lugar mais próximo. Assim como o reggae também é muito presente no Maranhão.”
Segundo Vanessa, a cena de discotecagem no Maranhão é bem forte, especialmente com o vinil de reggae. “Quando comecei a tocar, as pessoas achavam que eu era DJ de reggae porque eu tocava vinil; quando me viam tocando Maria Bethânia, não entendiam nada”, lembra aos risos. Para ela, o trabalho dos DJs ajuda a resgatar sonoridades e a levá-las a um público maior: “Por meio dessa discotecagem, as pessoas podem ouvir e se imbuir daquele som, participar e comungar daquela música gostosa que a gente traz para ouvirem”. Vanessa, por exemplo, tem na coleção registros importantes da música maranhense e do bumba meu boi, como Humberto de Maracanã. “O ponto é difundir e elevar; trazer ao acesso aquela música tão interessante é a coisa mais linda”, diz.
“Eu fui uma criança dos anos 1980, então minha relação com o vinil inicia com a coleção que meus pais tinham em casa”, lembra DJ Carlu. Para além desse garimpo musical, ela ressalta que hoje há outras maneiras de ter um disco. “São os novos consumidores”, como ela chama, “pessoas que assinam clubes de discos – eu mesma assino –, que buscam uma experiência mais estética do que sonora. O disco é ‘instagramável’.” A reflexão é endossada por um estudo da Luminate nos Estados Unidos que apontou que 50% das pessoas que compraram discos nesse país – maior mercado desse campo – em 2022 não possuíam um tocador.
Mulheres na cultura do vinil
A falta de equidade entre homens e mulheres foi o motivo que levou Carlu, Mary e Vanessa a se conectarem entre si e com outras DJ para criar um canal em que elas fossem as protagonistas. A UhmanasTv surgiu em julho de 2020, logo após a explosão da covid-19. “Houve uma situação em que cerca de dez DJs foram convidados para fazer uma live e, entre esse grupo, havia apenas uma mulher. Ficamos chocadas com as desculpas dadas, de um lugar onde não imaginávamos. Portanto, a UhmanasTv nasceu para que ninguém mais diga que não fomos chamadas porque não conhecem o nosso trabalho”, afirma Carlu.
O canal trouxe uma programação inteiramente formada pela cena feminina, tornando-se um espaço de acolhimento e compartilhamento no meio da discotecagem. As transmissões ocorriam ao vivo pelo serviço de streaming Twitch – depois estenderam-se para outras redes sociais e plataformas – diariamente durante o auge da pandemia e comprovaram a vasta diversidade presente no trabalho de cada uma das DJs participantes. Com a volta dos eventos presenciais, o grupo busca manter a movimentação coletiva ao ocupar os espaços.
Vanessa é um exemplo de como essa movimentação deu certo. No meio da pandemia, começou a fazer a live Alvorada, sempre aos domingos às 7 horas, na qual tocava principalmente música maranhense. “Eu toco as músicas de que realmente gosto, daqueles discos que eram do meu pai. Procuro selecionar os discos, trabalho o repertório e busco esse elemento da surpresa”, conta. “O [cantor, compositor e percussionista maranhense] Papete tem um disco chamado Bandeira de aço (1978), gravado com o selo Discos Marcus Pereira, o mesmo que lançou Cartola, então é um disco muito representativo da nossa cultura, porque traz músicas de grandes compositores que até hoje são referências. Eu trago esses discos para a Alvorada porque quero mostrar às pessoas que essa cultura existe.”
O trabalho rendeu projetos em leis de incentivo e, agora, um convite para fazer a transmissão simultânea em uma emissora de rádio. Também foi o responsável por conectar Vanessa a Carlu e ao canal UhmanasTv. “Quando me deparei com ela, pensei: ‘Não estou sozinha’. Quando a gente vê uma mulher DJ tocando, já percebe um diferencial, na delicadeza, na sensualidade, no feeling musical. A energia reverbera de maneira diferente. Nosso som não é só Maria Bethânia, nós nos permitimos tocar de tudo”, continua Vanessa.
O UhmanasTv também rendeu um site com um mapeamento de mulheres DJs, que pode ser acessado neste link.
Música para crianças
Professora de educação infantil, Carlu também é responsável pelo projeto Disco é brinquedo, que leva a discotecagem de música infantil e vivência com toca-discos para crianças em escolas, festas e transmissões ao vivo. De Fofão a Xuxa, passando por Patati Patatá, boa parte da coleção de Carlu é formada por discos de música para crianças. Durante as apresentações, a DJ não somente toca essas músicas, mas também conta histórias dos discos e dos artistas, trabalhando a imaginação, a audição e o tato, e até mesmo explorando a tecnologia das vitrolas e os demais elementos que compõem o disco como uma obra de arte.
“Comecei a fazer essas experiências pedagógicas levando discos para a sala de aula para que as crianças pudessem pegá-los com as mãos, ver as capas e os discos coloridos, conhecer quem é aquele artista. O disco de vinil é muito lúdico”, conclui Carlu.