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Marcio Blanco: “A criação audiovisual interfere de forma radical na escola”

Responsável por uma recuperação histórica dos laços entre cinema e educação no Brasil, ele falou sobre exibição, criação, streaming e consciência crítica

Publicado em 15/12/2023

Atualizado às 10:26 de 19/12/2023

por Duanne Ribeiro

Como tem sido a presença do cinema nas escolas e qual papel a produção audiovisual pode cumprir na educação? É sobre esses temas que conversamos abaixo com Marcio Blanco, autor de Imagens da pedagogia – uma genealogia das relações entre cinema e educação no Brasil, livro lançado neste ano. Doutor e mestre em comunicação social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), graduado em cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e fundador do festival Visões periféricas – que amplia perspectivas sobre as periferias brasileiras –, Marcio fala ao Itaú Cultural (IC) sobre 80 anos de intercâmbio entre essas áreas, em que o foco em exibição foi preponderante; diante disso, recupera a história da criação audiovisual nas instituições de ensino e afirma a sua capacidade de formar autonomia e posturas críticas. Ainda mais, o pesquisador analisa como as mídias sociais e a democratização das ferramentas de produção alteraram a relação dos alunos – e a nossa – com filmes e vídeos.

Marcio é um homem branco. Ele gesticula falando ao microfone. Tem barba e bigode e veste uma camisa verde.
O pesquisador Marcio Blanco (imagem: Acervo Marcio Blanco)

Você lançou neste ano o livro Imagens da pedagogia – uma genealogia das relações entre cinema e educação no Brasil, fruto do seu doutorado. Comente como desenvolveu esse trabalho e como ele se relaciona com sua atividade profissional em geral.

O livro é resultado de 20 anos de trabalho e pesquisa na área de educação audiovisual. Sou cineasta de formação com experiência na área de direção e produção, mas, ainda na universidade, comecei a conduzir projetos de educação audiovisual em favelas no Rio de Janeiro, em uma época em que as redes sociais começavam a se popularizar nas periferias e o digital facilitava a produção audiovisual por meio de celulares. Naquele momento, as políticas culturais estimulavam o surgimento de projetos sociais utilizando o audiovisual nesses territórios, e começava a surgir um conjunto de filmes produzidos em contextos de educação formal e informal. Essa é a origem do festival Visões periféricas, projeto de difusão de obras produzidas nas diversas periferias brasileiras e que completa 18 anos em 2023. O acesso a esses filmes e seus realizadores me estimulou a pesquisar a relação entre cinema e educação e sua história.

A certa altura, você afirma que “a produção audiovisual ainda é um corpo estranho nas políticas educacionais”. Sua tese se inspira, em algum nível, na tentativa de transformar esse cenário? Por quê? Quais são as consequências dessa exclusão do audiovisual do ensino e o que poderíamos ganhar se as políticas públicas atentassem mais a essa área?

A relação entre o cinema e a educação tem uma longa história, que se inicia com a criação do Instituto Nacional de Cinema Educativo no governo Getúlio Vargas, na década de 30 do século passado. Foi uma política que estimulou a utilização do cinema na sala de aula, mas apenas por meio da exibição de filmes produzidos especificamente para esse fim. Essa política longeva marcou a educação brasileira, e a exibição de filmes para ilustrar diversos temas da grade curricular se tornou uma prática recorrente. No entanto, a possibilidade de trabalhar o cinema com os alunos em sua dimensão de criação existiu desde sempre. O primeiro filme produzido por alunos de uma escola pública aconteceu em 1963, conduzido por Maria José Alvarez, professora de português, com apoio de integrantes do Cinema Novo – uma experiência que ficou completamente apagada da história da educação e do cinema e que eu resgato no livro. Depois disso, alguns projetos de estímulo à produção de filmes na escola foram surgindo, promovidos por agentes externos e de forma localizada.

A incorporação mais ampla do audiovisual nessa dimensão da criação é muito recente. Então, esta é uma pergunta que norteou toda a minha pesquisa no livro: por que a escola, historicamente, não abraçou as possibilidades que a criação audiovisual oferece para o processo pedagógico? Olhando em retrospecto, eu apresento algumas respostas. Respostas complexas e difíceis de resumir, mas que, basicamente, colocam a criação audiovisual como um recurso pedagógico que interfere, de forma radical, no tempo e no espaço escolar, conferindo uma permeabilidade aos muros da escola e trazendo para a cena o protagonismo dos alunos. A criação audiovisual mexe com um modelo de ensino secular que cada vez mais vem sendo posto em xeque pelas dinâmicas sociais e tecnológicas nas quais professores e alunos estão hoje inseridos.

A sua pesquisa faz uma análise histórica de como o cinema se fez presente nas escolas, pensando essa inserção em dois âmbitos: a exibição e a produção. Como entende que cada uma dessas práticas funciona na educação? Qual pode ser o papel de cada uma, levando em conta que você enfatiza “o gesto criador do aluno” nessa prática?

Produção e exibição são dois setores indissociáveis na dinâmica de funcionamento do audiovisual. Embora dialoguem, são trabalhadas separadamente por diferentes agentes e instâncias. Na indústria audiovisual, quem produz não exibe e quem exibe não produz. Estou me referindo a um modelo de audiovisual em escala industrial que surgiu em um contexto de consolidação do Estado-nação e de dominação de mercados em todo o mundo. Assim como o cinema, a educação também possui essas duas dimensões, segundo as quais a ciência produz conhecimento e a escola difunde. A instituição escolar surge e se populariza em uma época na qual ciência e burguesia se unem em prol da criação de um modelo de sociedade eurocentrada, regrada pelo conhecimento científico e por uma economia liberal. Eu faço uma analogia entre a sala de aula e a sala de exibição porque existe uma correspondência de funcionamento entre uma e outra. Historicamente, ambos os dispositivos impõem uma distância entre quem produz e quem recebe o conhecimento. Ambos requerem um espectador disciplinado em um espaço e tempo delimitados. Ambos possuem processos de avaliação e legitimação alheios à consciência de quem recebe o conhecimento.

O que eu coloco em minha pesquisa é que a educação historicamente reproduziu um modelo de utilização do cinema em sala de aula que impõe essa distância entre quem produz e quem recebe o conhecimento. Essa distância, embora não tenha desaparecido, foi transformada pelas novas dinâmicas tecnológicas de produção e difusão da imagem e do conhecimento. O gesto criador do aluno deve incorporar e trabalhar conjuntamente essas duas dimensões para que o conhecimento não seja apenas delegado por uma instituição, mas sim construído de forma responsável e compartilhada por todos os envolvidos no processo pedagógico.

Você ressalta, na introdução à tese, a intensa relação dos jovens de hoje com material audiovisual, citando, por exemplo, o YouTube (poderíamos falar também do TikTok...). O trabalho escolar com o cinema pode gerar uma visão crítica dos estudantes diante do que lhes é oferecido? Como acredita que isso pode ser feito?

O audiovisual hoje é uma linguagem acessível para qualquer pessoa, tanto em termos de fruição quanto de produção. Uma obra audiovisual, seja ela um curta, um longa ou um reels, é o resultado de suas condições de produção, circulação e legitimação. Até bem pouco tempo atrás, não tínhamos acesso a essas condições como espectadores. Recebíamos a obra audiovisual, um filme premiado no Oscar, por exemplo, como uma caixa-preta. Íamos ao cinema ou esperávamos [a obra] chegar às locadoras, nos interessávamos ou não pelo conteúdo, fazendo julgamentos de valor, mas não sabíamos como ele havia sido produzido e o caminho que percorria para chegar a nós. Hoje, com as redes sociais, somos obrigados a conhecer esse processo de produção, circulação e legitimação se quisermos que nossos conteúdos sejam vistos. É claro que o algoritmo ainda representa essa caixa-preta, mas é inegável que as novas gerações ganharam outra consciência a respeito da linguagem audiovisual. O exercício dessa consciência na escola tem o potencial de preparar o aluno para uma forma de produção e circulação de conhecimento que se tornou hegemônica e servir de uma espécie de vacina contra o impacto maléfico dos conteúdos falsos, inverídicos, que hoje são uma grande fonte de ameaça para as democracias em todo o mundo. 

Nesse sentido, você elabora, ao longo da tese, a noção de alfabetização audiovisual, ressaltando que ela trata tanto de recepção quanto de produção. Qual é a importância dessa alfabetização? Ela é necessária tanto para professores quanto para alunos? Quais rotas podem ser seguidas para efetivá-la na escola? Se possível, cite algum estudo de caso da tese.

O termo letramento, usado no texto da Lei no 14.533, aparece em documentos de organizações internacionais desde a década de 1960 associado ao uso da expressão mídia-educação. Os meios de comunicação de massa são considerados responsáveis por “alfabetizar” em grande escala populações privadas de estruturas de ensino. À medida que a internet vai ocupando cada vez mais espaço em nossos modos de vida a partir de meados dos anos 1990, documentos da Unesco [sigla para Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] dão mais ênfase à participação ativa dos alunos no processo pedagógico. Isso não é mera coincidência, pois há uma relação direta entre o acesso cada vez maior aos dispositivos técnicos de comunicação e “problemas” de toda ordem relatados por educadores, como falta de atenção em sala de aula, uso indevido de informações em trabalhos escolares e a sensação de perda de autoridade do professor. O fato é que esses dispositivos hoje permitem que o aluno encontre facilmente uma informação que até pouco tempo atrás só seria legitimada no contexto escolar com o auxílio do professor e dos livros didáticos impressos. 

Para entender esse novo contexto na educação, eu pesquisei para o livro as condições de produção, circulação e legitimação do curta O suicídio, um filme de animação feito por alunos da Escola Pública Municipal Roraima (E.M. Roraima), no bairro de Cordovil, no Rio de Janeiro. O filme foi resultado de uma parceria de 16 anos entre o Anima escola, projeto educativo do Festival Anima Mundi, e a Gerência de Mídia-Educação da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (Semed/RJ). O suicídio é a adaptação para a linguagem de animação de uma história em HQ criada em uma disciplina de português no 1o bimestre de 2017. A equipe responsável pela produção da animação na escola foi composta de oito alunos do 9o ano do ensino fundamental, com média de idade de 13 anos, sob a orientação de duas professoras. 

O suicídio é inspirado em uma história real que aconteceu com os alunos da Escola Roraima. Havia entre eles casos de automutilação, atribuídos ao jogo que ficou conhecido na internet como “Baleia azul”, e chegara ao seu conhecimento o suicídio de um adolescente pertencente à rede de amizades de alunos da turma. A comoção em torno desses casos inspirou a criação de uma das HQs da aula de português e, posteriormente, da animação. Se não fosse essa possibilidade de expressão, talvez os alunos não tivessem encontrado um canal apropriado para colocar suas opiniões, expressar suas angústias sobre um acontecimento que estava muito próximo e refletir sobre um meio de comunicação cotidianamente utilizado por eles.

Sobre um desenho colorido e feito a lápis, veem-se as mãos de uma mulher negra.
Registro do processo de produção do curta "O suicídio" (imagem: Acervo Marcio Blanco)

Imagens da pedagogia mapeia 80 anos das relações entre cinema e educação. Nas últimas décadas, contudo, talvez tenhamos tido as mudanças mais drásticas nesse eixo: com a ascensão do streaming, o consumo audiovisual se modificou completamente. Como você vê os impactos dessa transformação tecnológica no encontro de cinema e educação?

A ascensão do streaming oferece um problema e uma oportunidade. O problema para a escola é que o acesso ao conteúdo audiovisual se ampliou de forma vertiginosa com as plataformas de streaming. Hoje muitos alunos estudam, de forma gratuita ou paga, por meio de conteúdos disponíveis nessas plataformas, o que se tornou um grande mercado de ensino a distância. Essa vertente é apenas uma continuidade da ideia presente há 80 anos na criação do Instituto Nacional de Cinema Educativo, mas sem o controle do ensino formal básico e agora competindo com ele. A oportunidade é que a tecnologia streaming pode se tornar uma aliada da educação, uma vez que ela pode ser usada em sala de aula para disponibilizar conteúdos agregados às matérias curriculares e abrigar a produção audiovisual feita por alunos na escola. Além disso, é uma tecnologia que pode servir à regulamentação da Lei no 13.006/2014, que obriga que haja a exibição de filmes de produção nacional nas escolas de ensino básico por, no mínimo, duas horas mensais. Poderia ser criada uma plataforma de streaming exclusivamente para abrigar a produção nacional com uma curadoria de filmes voltada para o ensino básico e orientações de como utilizar cada filme em sala de aula.

Aprofundando a última pergunta – e tendo em vista que o streaming é corriqueiro para os alunos, seja quando produzem, seja quando assistem a lives –, teríamos necessidade hoje de uma alfabetização para o streaming? Exibição e produção aqui têm uma nova cara, pois os alunos muitas vezes são já prosumers, ou seja, produtores/consumidores. Como você vê isso? 

Acredito que uma alfabetização audiovisual deve estar sempre implicada no tempo e no espaço em que ela acontece, levando em consideração que crianças, jovens e professores devem ser protagonistas e corresponsáveis pela produção do conhecimento. Portanto, o streaming é apenas mais uma nova forma de produzir e difundir o audiovisual, a qual incorpora tudo o que foi construído em mais de cem anos de existência dessa linguagem, trazendo para o contexto atual em que a aprendizagem acontece.

Nós disponibilizamos coleções na nossa plataforma de streaming, a IC Play, com foco no tema de ancestralidades indígenas e negras. A partir dessa lista e desses temas, você sugeriria abordagens para a sala de aula, seja no âmbito da exibição, seja no da produção?

Quando se fala de qualquer aspecto ligado à cultura indígena, sempre se desconsidera a diversidade de etnias que existem no Brasil e como cada uma aborda de forma singular uma série de aspectos, como a ancestralidade. No que se refere ao tema indígena, seria interessante mostrar a diversidade de etnias no Brasil a partir da produção audiovisual feita em cada uma delas. 

Sobre a ancestralidade negra, seria interessante abordar as diferentes matrizes religiosas e de que maneira cada uma delas manifesta sua visão de mundo em aspectos como alimentação, vestuário, música e rituais. Acho que já existe um grande acervo de obras audiovisuais que podem ser organizadas dessa forma.

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