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Maria Homem, a inteligência artificial e o enigma do desejo de saber

Em entrevista ao site do Itaú Cultural, a psicanalista comenta as relações entre a IA e a subjetividade humana, tratando de psicologia, de arte e de futuro

Publicado em 19/06/2024

Atualizado às 16:02 de 19/06/2024

por Duanne Ribeiro

Para a psicanalista, pesquisadora e professora Maria Homem, o pulo do gato na questão aberta e contemporânea sobre o que a inteligência artificial (IA) pode se tornar e que impacto pode ter no nosso cotidiano parece estar no desejo. Ao longo da entrevista abaixo, na qual a autora de Lupa da alma: quarentena-revelação e No limiar do silêncio e da letra – traços da autoria em Clarice Lispector fala sobre subjetividade, psicologia e arte, uma pergunta que se sobressai é: sabemos o que queremos? Na medida em que é essa vontade que dará forma ao que as IA serão e ao que farão de nós, isso surge como o ponto decisivo.

No interior dessa problemática, Maria Homem reflete sobre essas tecnologias como maneiras de “explorar o eu” e como um “grande espelho” das nossas sociedades. Além disso, comenta as aplicações das IA na psicanálise – podem elas agir como terapeutas? – e na literatura – podem elas escrever como Clarice Lispector ou Guimarães Rosa? Por fim, a psicanalista especula sobre o futuro: as máquinas vão poder sentir? Frente a esse cenário, ela entrevê duas possibilidades: criaremos um paraíso ou um inferno.

Esta entrevista foi feita em decorrência do evento Inteligência artificial em educação e cultura: estratégias para combater desigualdades, realizado pela Fundação Itaú em maio. Maria Homem foi parte da mesa “IA para a compreensão do mundo e a invenção de outros mundos”.

Maria Homem está de pé e olha para a câmera de perfil. Ela está em uma sala com diversos quadros na parede atrás dela e à sua direita. É uma mulher branca, de cabelo ondulado e veste um blusa branca.
A psicanalista Maria Homem (imagem: Divulgação)

Para começar, duas questões sobre subjetividade. Você já comentou sobre como aplicativos que mostram outras imagens de nós mesmos funcionam como “exercício de imaginação”, de exploração de outros eus. No caso das IA de linguagem, como o ChatGPT, como elas podem impactar a nossa subjetividade?

No mesmo sentido, na medida em que essas IA se baseiam em grandes arquivos e na média dos dados, pode-se dizer que elas oferecem certo espelho do que somos como sociedade e como indivíduo. Você concorda? Acha que as IA podem nos informar algo sobre a nossa subjetividade?

A pergunta é: elas podem ser espelhos interessantes para nós? Mais do que isso: elas podem funcionar como exercício de imaginação para explorar o próprio eu? E eu ainda perguntaria: elas podem ajudar para que a gente se veja melhor como sociedade, para que a gente dissemine o que tem sido a história humana, a cultura humana acumulada, e para que a gente se conheça melhor? É um grande espelho, usando o termo que está aqui? Eu diria que é a melhor aposta. Essa pode ser a maior construção possível desse salto quântico que se avizinha, chamado inteligência artificial.

Por outro lado, diria que a gente tem dois riscos. Um é o desejo de se olhar, de se imaginar, de se pesquisar. Porque você pode ter uma biblioteca inteira aberta, uma “Biblioteca de Babel”, [uma biblioteca] do Congresso, em Washington [nos Estados Unidos], ou como a gente tem a Brasiliana, na Universidade de São Paulo... E quais são os acessos? A gente vai lá? Lê esse conteúdo? A gente reflete, pensa sobre aquilo que pode ser mais desafiador, mais instigante, que eu não conheço tanto, que demanda esforço?

Tem todo um Machado de Assis, um Guimarães Rosa ou um [James] Joyce, uma literatura mais reveladora, e será que estou lendo um monte de meme com frases iguais ou parecidas? Será que estou vendo conteúdos de OnlyFans ou Privacy, consumindo conteúdo adulto, como a gente chama, um entretenimento quase pornográfico para o corpo e a alma? Então a questão mais profunda aqui não é nem a tecnologia, é como manter o enigma do desejo de saber, como isso [conseguirá] tocar os corações e as mentes.

E o segundo risco está na palavra “mediana”. A própria lógica do trabalho com muitos dados é que você chegue no que se repete mais. Então você vai chegar estatisticamente na média, na mediana, naquilo que está dentro de um certo espaço, com um certo desvio padrão dessa média. Ou seja, será que vamos fazer um imenso, um gigantesco processo de mediocrização do conhecimento?

Você acredita que as IA podem transformar a psicanálise ou a psicologia de forma geral de algum modo? Um exemplo nesse sentido é a produção de modelos de linguagem que agem como terapeutas, tendo sido treinados em bases próprias. Como você vê isso?

É um bot que faz isso, com um modelo de linguagem, e é interessante porque... eu diria que é enigmático. Acho que a gente precisa viver um pouco para ver se a máquina vai conseguir, de fato, conversar com a gente – e disso eu não duvidaria. Não duvidaria que a gente vai conseguir fazer uma conversação mediana. Essa é grande virada, na verdade, é o grande modelo de linguagem, o LLM [large language model] é exatamente isso.

Só que a minha pergunta, a minha reflexão, vai em outra direção, que é a seguinte... O que é um setting analítico? É você, por meio de uma conversação com o outro, de um divã com um terceiro – um outro que não você –, [acessar] coisas do seu próprio inconsciente, ou seja, coisas que você nem sabia que sabia. 

Então não é só poder bater um papo com alguém – e que, tudo bem, pode ser ótimo para a solidão contemporânea, pode ser interessante para ter um namorado artificial, sexo, uma reunião de negócio, um insight, um planejamento estratégico, um business, uma conta, mas é outra coisa que a gente quereria aqui. É você ter acesso ao que nem a máquina sabe porque nem você sabe, porque transcende a sua própria consciência.

Então é esse modelo pós-linguagem racional que eu quereria criar.

Parte da sua pesquisa lida com a literatura, principalmente com Clarice Lispector. Como você enxerga a questão da IA nesse campo da arte? A IA pode fazer literatura – “expressar o irrepresentável”? Ou falta a ela algo próprio do humano?

Insistindo um pouco nessa questão, se uma IA fosse treinada só com textos de Clarice e produzisse “novas” obras da autora – como está sendo feito com outros autores –, essas obras poderiam mesmo ser comparadas ao original? Como fica a autoria aí?

Acho que a gente vai conseguir mimetizar o estilo. 

Ano passado, quando saiu o ChatGPT, eu estava em Boston, na [Universidade de] Harvard; estava um tempo como visiting scholar, professor visitante, e justamente aí saiu o GPT. Eu tinha feito uma coluna sobre a Maratona de Boston de 2022, e um amigo pediu para [que o ChatGPT escrevesse] colunas como Maria Homem. E foi muito interessante. Ele deu dois ou três temas [típicos da autora] e foi muito curioso, porque ele mimetizou muito bem. E, ao mesmo tempo, não sei o que ele falou de novo, o que teve de criação, qual foi o insight, a ideia.

Dei essa volta, com esse pequeníssimo exemplo pessoal, para falar que, se você pegar Clarice, Virginia Woolf, Joyce, Thomas Mann, será que eles não têm uma vivência que os faria olhar o mundo de uma forma inédita, que ainda não estava no texto escrito deles e, portanto, não tem como uma máquina criar? Porque o novo é o que você ainda vai elaborar do que você viveu. Então, precisa ter a vivência, a elaboração e a tentativa de expressão do irrepresentável.

Para terminar, você especula algo sobre o futuro dessas ferramentas, sobre o que podem ser as IA? Podemos transcender inteligências artificiais e chegar a subjetividades artificiais? Como moldar esse futuro – o que devemos recusar e o que podemos construir?

A inteligência artificial pode virar uma subjetividade? Ou seja, ela vai poder sentir? Essa foi uma questão que pus no debate da mesa, acho que isso é muito importante, porque – vamos pensar, daqui a 10, 30, 50 anos, quando a gente conseguir decifrar um pouco melhor a bioquímica dos afetos – não duvido que [seja algo que] a gente vá poder fazer. Será que a gente vai poder colocar, num sistema que opera a linguagem, também um sistema bioquímico – com neuro-hormônios, neurotransmissores, grandes correntes de proteínas de carbono – , que vai fazer a química orgânica interagir com um chip

Eu iria nessa direção. E a gente quer máquinas afetivas? A gente quer transumanos? A gente vai querer interagir, por exemplo, com bonecas do amor, love dolls, como fazem os japoneses ou como o mundo talvez venha a fazer? A gente vai ter bonecas amantes, amigas e, com os vestíveis [aparelhos, como os óculos de realidade virtual, que se usam no corpo], vai criar as companhias que deseja e tirar as que são chatas?

O inferno são os outros, como diria Sartre, e a gente vai se aventurar a criar o paraíso?

E será que a gente vai criar um inferno gigantesco? Isso aí, boa sorte.

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