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Em seu aniversário de 110 anos, o talento multifacetado de um artista plural

“Se Vinicius de Moraes fosse um só, não seria Vinicius de Moraes, seria Vinicio de Moral”, disse Sérgio Porto

Publicado em 19/10/2023

Atualizado às 09:51 de 24/10/2023

por André Bernardo

Certa tarde, Vinicius de Moraes e Sérgio Porto tomavam umas e outras em um bar em Ipanema. Lá pelas tantas, o homem por trás do pseudônimo Stanislaw Ponte Preta consultou o relógio e suspirou: “Poetinha, vou me mandar”. “Boa viagem”, desejou o parceiro de copo. Logo, o autor do Festival de besteira que assola o país, o Febeapá, entrou no carro, deu a partida e seguiu rumo a Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro. 

Certo de que nenhum carro ultrapassara o dele na subida da serra, Sérgio Porto parou na entrada da cidade para tomar um chope na extinta Confeitaria Copacabana. Quando entrou no restaurante, avistou um sujeito que lhe cumprimentava de longe. Era Vinicius de Moraes! “Quem tem razão é tia Zulmira: se Vinicius de Moraes fosse um só, não seria Vinicius de Moraes, seria Vinicio de Moral”, graceja o escritor na crônica “Os Vinicius de Moraes”, incluída na antologia A fina flor de Stanislaw Ponte Preta (2021). 

Ao longo da carreira, Vinicius de Moraes exerceu os mais diferentes ofícios: de poeta a diplomata, de cantor a dramaturgo, de letrista a crítico de cinema. “Quando se dizia que Vinicius era um ser plural, não estavam brincando”, afirma o escritor Ruy Castro, autor de Chega de saudade (1990), a biografia da Bossa Nova. 

A faceta mais conhecida talvez seja a de poeta. São dele os versos: “Eu possa me dizer do amor (que tive): / Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure”. O “Soneto de fidelidade”, escrito em Portugal, em 1939, e dedicado a Tati de Moraes, a primeira de suas nove mulheres, é, nas palavras do biógrafo José Castello, de Vinicius de Moraes – o poeta da paixão (1994), “uma das mais belas definições do amor já produzidas em língua portuguesa”. Mas, até como poeta, Vinicius foi múltiplo. “Ele tem o fôlego dos românticos, a espiritualidade dos simbolistas, a perícia dos parnasianos e o cinismo dos modernos”, descreveu Carlos Drummond de Andrade.

Retrato em preto e branco de Vinícius de Moraes. Ele é um homem branco, calvo e veste camisa preta
Vinícius de Moraes (imagem: VM Empreendimentos Artísticos e Culturais Ltda.)

Os horrores da guerra

Nem só de versos de amor é feita a obra de Vinicius de Moraes. No mês em que ele completaria 110 anos, a editora Companhia das Letras lança 50 poemas macabros. Até os títulos provocam arrepios: “Balada do enterrado vivo”, “O cemitério na madrugada”, “Soneto do gato morto”... “Vinicius foi um artista que trabalhou muito, num ritmo assombroso, quase inverossímil”, afirma o organizador da obra, o poeta e ensaísta Daniel Gil, e completa: “Aquela persona mítica, o ‘poetinha vagabundo’, é o exato oposto da realidade”. 

Dos 50 poemas do livro, o mais famoso é, sem dúvida, “A rosa de Hiroshima”, transformado em canção em 1972, pelo músico Gerson Conrad, um dos integrantes do extinto Secos & Molhados. O poema foi escrito em 1946, quando Vinicius servia como vice-cônsul em Los Angeles, nos Estados Unidos. A inspiração surgiu depois de Gerson ler Antologia poética (1954), livro emprestado de João Ricardo, o idealizador do grupo. 

Certo dia, os dois estavam gravando um programa no estúdio da TV Bandeirantes quando souberam que, no camarim ao lado, estavam Toquinho e Vinicius. “Será que eu falo com ele?”, indagou Gerson. “Claro! Vai lá e mostra a música que você fez para o poema dele…”, encorajou João. Sem disfarçar o nervosismo, Gerson pediu licença e, com o violão pendurado no ombro, disse que tinha uma música para mostrar a Vinicius. “Olha, que bom... Deixa eu ouvir”, respondeu o poeta abrindo um sorriso. 

Ele começou a dedilhar a canção, mas não chegou a concluí-la. Foi interrompido pelo próprio Vinicius: “Esse meu poema estava perdido, quase ninguém conhece. Agora, tenho certeza de que essa música vai eternizá-lo. Obrigado!”. Ele autorizou a gravação e, ao lado de “Sangue latino” e “O vira”, “A rosa de Hiroshima” tornou-se um dos maiores sucessos do grupo liderado por Ney Matogrosso. “Aos primeiros acordes, o público fazia silêncio e acendia isqueiros. Era sempre um momento emocionante do show!”, recorda Gerson. 

Musa inspiradora

Além de emprestar seus versos para canções de outros artistas, Vinicius de Moraes também compôs letras de música. Segundo o ranking de abril de 2023 do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), das dez canções brasileiras mais gravadas de todos os tempos, três são de autoria dele: “Garota de Ipanema” (1962), que ocupa a primeira colocação, com 442 gravações; “Eu sei que vou te amar” (1958), em quinto lugar, com 279 versões; e “Chega de saudade” (1958), em sétimo, com 257. Coincidência ou não, as três foram compostas com Tom Jobim. Mas Vinicius também teve outros parceiros: Carlos Lyra, Baden Powell e Toquinho.

Fotografia em preto e branco de Toquinho, Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Na imagem, os três estão sentado ao redor de uma mesa. Toquinho toca violão, Tom Jobim está ao seu lado cantando e Vinícius os observa enquanto segura um maço de cigarros apoiado sobre a mesa.
Toquinho, Tom Jobim e Vinícius de Moraes (imagem: Acervo pessoal)

Em 2020, o Papa Francisco citou um trecho de uma letra de Vinicius na encíclica “Todos irmãos” (Fratelli tutti, no original em italiano): “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”, retirado do “Samba da bênção” (1963). A parceria com Baden Powell foi composta na casa de Lucinha Proença, a quinta das nove mulheres, em Laranjeiras, no Rio de Janeiro, em 1961. 

Se “Soneto de fidelidade” é, muito provavelmente, o mais conhecido poema de Vinicius, “Garota de Ipanema” é, longe de dúvida, sua letra mais famosa. A canção mais regravada do repertório do artista nasceu numa tarde ensolarada de 1962, no Rio de Janeiro. Foi ali, na esquina das ruas Prudente de Moraes e Montenegro, em Ipanema, que Tom e Vinicius, sentados à mesa de um bar, o Veloso, começaram a rabiscar em um guardanapo de papel os primeiros versos de “Menina que passa”

Rebatizada de “Garota de Ipanema”, a canção foi tocada pela primeira vez no dia 2 de agosto daquele ano, no restaurante Au Bon Gourmet, em Copacabana, por Tom, Vinicius e João Gilberto. De lá para cá, já foi regravada por astros e estrelas internacionais, como Frank Sinatra, Ella Fitzgerald, Nat King Cole, Stevie Wonder, Madonna e Amy Winehouse. E nos mais variados idiomas: italiano (“La ragazza di Ipanema”), espanhol (“La chica de Ipanema”) e, acreditem, até esperanto (“Knabino el Ipanemo”)! 

Quando Astrud Gilberto gravou a versão original no álbum Getz/Gilberto (1964), logo apareceram dezenas de moças reivindicando para si o título de musa inspiradora de “Garota de Ipanema”. Mas, afinal, quem teria sido a verdadeira musa da canção? Quem elucidou o mistério foi o próprio Vinícius, na edição de 18 de setembro de 1965 da extinta revista Manchete: a “coisa mais linda / mais cheia de graça” era a estudante Heloísa Eneida Menezes Paes Pinto, a Helô, de 17 anos. O “Pinheiro” veio depois, em 1966, quando Heloísa se casou com o engenheiro Fernando Mendes Pinheiro. 

“Uma lembrança que me marcou muito foi o primeiro encontro com o ‘Vininha’, em 1965, a convite da Manchete. Se eu não soubesse, por intermédio dele, que eu era a ‘Garota de Ipanema’, não acreditaria. Certo dia, cheguei em casa e encontrei uma multidão de repórteres e fotógrafos à minha espera. A ficha demorou a cair, sabe? Mas não mudou meu jeito de ser. Continuo sendo a pessoa que eu sempre fui”, relata Helô Pinheiro. 

Fotografia em preto e branco de Vinícius de Moraes e Helô Pinheiro, lado a lado. Vinícius é um homem branco, calvo e veste camisa preta. Helô é uma mulher branca de cabelos lonogs e lisos e veste blusa clara de gola alta.
Vinícius de Moraes e Helô Pinheiro (imagem: Acervo pessoal

Manter viva a memória de Vinicius não é difícil. “Ele está em toda parte”, afirma a cantora e psicanalista Georgiana de Moraes, filha do poeta com Lila Bôscoli. No dia 11 deste mês, Vinicius foi lembrado numa crônica do antropólogo Roberto da Matta, “Será o fim do mundo?”, publicada no jornal O Globo: “Às vezes quero crer mas não consigo / É tudo uma total insensatez / Aí pergunto a Deus: escute, amigo / Se foi pra desfazer, por que é que fez?”, diz a letra de “Cotidiano nº 2” (1972), parceria com Toquinho, citada no texto. 

“Temos a responsabilidade de cuidar de seu legado”, completa Georgiana, que subiu ao palco com o pai pela primeira vez em Punta del Este, no Uruguai, e chegou a excursionar com ele pela Europa. “Na Argentina, ele não queria. Dizia que eu tinha que dar muito duro antes de subir num palco. Mas, no Canecão, foi mais fácil. Miúcha intercedeu e ele topou. Mas, só por garantia, colocou o Mestre Marçal para dividir a percussão comigo”, ri. 

“Macumba para turista”

Em maio deste ano, o poeta Eucanaã Ferraz, outro especialista na obra de Vinicius de Moraes, foi convidado pelo acadêmico Joaquim Falcão para dar uma palestra no ciclo de conferências Escritores, lado B, da Academia Brasileira de Letras (ABL). Logo na abertura, Ferraz explicou que, se Vinicius fosse um LP, teria muitas faixas. No lado A, o poeta e o cancionista; e, no B, o cronista, o crítico de cinema, o dramaturgo e o diplomata. 

Como homem de teatro, Vinicius escreveu quatro peças: As feras, Cordélia e o peregrino, Orfeu da Conceição e Procura-se uma rosa. E deixou doze inacabadas. Dessas, a mais curiosa é Ópera do Nordeste, uma adaptação musical do romance Dom Quixote, com letra de Vinicius e música de Baden Powell. Na biografia O poeta da paixão, Castello conta que Vinicius chegou a imaginar João Gilberto no papel de Dom Quixote e Grande Otelo no de Sancho Pança, seu fiel escudeiro. E o cineasta Glauber Rocha como diretor do musical. 

Das peças concluídas, a mais famosa é Orfeu da Conceição. A inspiração para transformar o mito grego em tragédia carioca surgiu em 1942, quando estava hospedado na casa do arquiteto Carlos Leão, em Niterói. Se Vinicius terminou o primeiro ato numa noite só, ao som da batucada no morro, escreveu o segundo em 1948, em Los Angeles, o terceiro em 1953, no Rio de Janeiro, e a versão final em 1955, em Paris. Mas, antes de ser encenada, a peça virou filme, Orfeu negro, dirigido pelo cineasta Marcel Camus, em 1959. 

A trilha sonora foi assinada pela dupla Tom e Vinicius. Ao ser convidado, no restaurante Villarino, no Centro do Rio, em 1956, o maestro teria perguntado: “Tem um dinheirinho nisso?”. Tinha. Em duas semanas, os dois compuseram todas as árias. Vinicius aprovou a parceria. Do filme, não se pode dizer o mesmo. “Ele detestou! Chegou a ir embora do cinema, indignado. ‘Macumba para turista’, definiu”, contou Eucanaã Ferraz na ABL. Orfeu negro ganhou a Palma de Ouro em Cannes, em 1959, e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1960.

Fotografia em preto e branco de Toquinho e Vinícius de Moraes. Na imagem, Vinícius está sentado, vestido camisa preta e tem o semblante sério. Atrás dele, Toquinho está em pé e tem um violão em seu ombro.
Toquinho e Vinícius de Moraes (imagem: Acervo pessoal)

No escurinho do cinema

Há duas outras facetas menos conhecidas de Vinicius: a de diplomata e a de crítico de cinema. Ele ingressou no Itamaraty em 1943, por sugestão do amigo e chanceler Oswaldo Aranha. Formado em letras e em direito, ele prestou o concurso, pela primeira vez, em 1942. Não passou. No ano seguinte, tentou novamente. Chegou a ter aulas de português com o filólogo Antônio Houaiss. Desta vez, foi aprovado. 

Em 1946, assumiu o posto de vice-cônsul em Los Angeles, onde permaneceu por cinco anos. Em Genebra, na Suíça, travou diálogo com o poeta João Cabral de Melo Neto, diplomata de 1945 a 1990, que ficou famoso. A certa altura, Vinicius pegou o violão e, para a tristeza do autor de Morte e vida severina (1955), começou a dedilhar uma de suas mais recentes canções. “Desculpe, Vinicius”, interrompeu o anfitrião, “mas por que todas as tuas músicas falam de coração? Não tem outra víscera para cantar?”. A visita interrompeu o dedilhado. “Um dia, João, ainda hei de colocar música em um desses teus poemas de cabra”, rebateu. 

Em Hollywood, Vinicius reencontrou a atriz e cantora Carmen Miranda, que conhecera no Cassino da Urca, no Rio de Janeiro. Ele e a família passaram a frequentar a casa da “Pequena Notável” em Beverly Hills, na Califórnia. Enquanto Susana, de 6 anos, gostava de brincar no seu closet, Pedro, de 4, aprendeu a nadar na piscina de sua mansão. Ainda em Los Angeles, Vinicius fez amizade com o desenhista Walt Disney, assistiu a um show do cantor e trompetista Louis Armstrong e, a convite do próprio diretor, acompanhou as filmagens de A dama de Shanghai (1947), dirigido por Orson Welles e estrelado por Rita Hayworth. 

Fotografia em preto e branco de Alex Viany, Orson Welles e Vinicius de Moraes. Na imagem, os três homens estão em pé, vestindo blazers e conversando entre si.
Alex Viany, Orson Welles e Vinicius de Moraes (imagem: VM Empreendimentos Artísticos e Culturais Ltda.)

Dessa época, a jornalista Gilda Mattoso, última mulher de Vinicius, guarda uma carta de Charles Chaplin como relíquia. “Um dia, Vinicius escreveu ao Chaplin e confessou sua paixão pelo cinema mudo. E o Chaplin, muito amigavelmente, respondeu. Os dois, porém, não chegaram a se conhecer ou a ficar amigos. É uma pena. Chaplin não sabe o que perdeu…”, brinca. Os textos sobre a sétima arte foram reunidos no volume O cinema de meus olhos (1991), organizado pelo crítico Carlos Augusto Calil. 

“Um labirinto em busca de uma saída”

Em 2021, a jornalista Maria Lúcia Rangel descobriu mais uma faceta de Vinicius: a de frasista. Ela é a organizadora de Vinicius por Vinicius – um retrato em 150 frases. Para chegar à seleção final, pesquisou jornais, revistas, cartas e bilhetes. Em vez de pinçar aforismos manjados, como “As muito feias que me perdoem / Mas beleza é fundamental”, do poema “Receita de mulher” (1959), Maria Lúcia deu preferência a tiradas inusitadas, como “Eu sou um labirinto em busca de uma saída”, dita ao jornalista Otto Lara Resende numa entrevista do programa Painel, da TV Globo, em 1977. 

Filha de Lúcio Rangel, o crítico musical que apresentou Tom a Vinícius no Villarino, Maria Lúcia conheceu o poeta em 1963, durante um ensaio do musical Pobre menina rica, em Copacabana. “Os dois [Lúcio e Vinicius] estavam tentando escrever um livro sobre música. Mas o álcool impediu. Bebiam e ouviam música”, recorda. Das frases selecionadas, destaca uma: “Não adianta você querer fazer poesia política de propósito. O poema tem que nascer da tua revolta”. “Vinicius não tentava politizar os mais jovens, mas estava sempre em passeatas e gostava de lembrar o quanto a liberdade é importante”, ressalta a jornalista. 

Vinicius nasceu no dia 19 de outubro de 1913 e morreu 66 anos depois, no dia 9 de julho de 1980. Seu corpo foi encontrado deitado na banheira, pouco antes das sete da manhã, pela empregada. Ela chamou Toquinho, que estava hospedado na casa do amigo e parceiro para concluir o álbum infantil Arca de Noé (1980). “Nossa amizade extrapolou a relação profissional. Em muitos aspectos, Vinicius era muito mais jovem do que eu”, recorda o coautor de canções como “Tarde em Itapoan”, “Regra de três” e “O filho que eu quero ter”. “Vinicius era um grande músico e tinha um ouvido muito aguçado. Às vezes, ao me ouvir dedilhar improvisos, me alertava: ‘Toco, você acabou de deixar passar uma música…’. Aí, eu recuperava aquele acorde e surgia uma nova canção.” 

Fotografia em preto e branco de Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal e Carlos Lyra sentados em um sofá. Em frente ao sofá há uma mesa de centro com equipamentos gravadores, copos e uma garrafa de bebida.
Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal e Carlos Lyra (imagem: Acervo pessoal)

Dias antes de morrer, Vinicius jantou com Carlos Lyra no restaurante Barbas, em Botafogo, Rio de Janeiro. Durante a refeição, uma repórter pediu para entrevistar o poeta. Consentimento dado, veio a primeira pergunta: “Você está com medo da morte?”. A resposta entrou para a antologia de Maria Lúcia Rangel: “Que medo da morte, nada! Estou é com saudade da vida!”. 

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