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Em seu centenário, o que aprender com Maria Clara Machado?

A destacada dramaturga e diretora teatral completaria 100 anos em 2021. Professores de O Tablado, escola de teatro fundada por ela, lembram sua prática e ensinamentos

Publicado em 17/04/2021

Atualizado às 17:07 de 25/10/2021

por Duanne Ribeiro

Ensaios, para Maria Clara Machado – diretora e dramaturga que completaria 100 anos em 2021 –, eram coisa séria. “Se havia sido marcado às 20h, Clara se dirigia para a sala de ensaio às 19h50. Em ponto ela iniciava e fazia uma cara bem feia para os retardatários”, recorda o ator e diretor Ricardo Kosovski. “Essa questão da pontualidade pode parecer besteira, mas não é: imprime seriedade, respeito e compromisso com o trabalho.”

Criadora de peças como Pluft, o fantasminha, Maria Clara Machado (1921-2001) foi uma das maiores autoras de teatro infantil no país. No centenário, esse aspecto sempre tem sido lembrado. Entretanto, a recordação de Ricardo demonstra que a perenidade dessa artista se dá também na prática e na filosofia de trabalho que ela deixou como marcas nos alunos e nos profissionais que trabalharam com ela. Esta reportagem trata disso.

Para falar desses “ensinamentos preciosos”, como diz Ricardo, legados pela dramaturga, conversamos também com a diretora teatral Cacá Mourthé, sobrinha da homenageada, e com a atriz Renata Tobelem. Os três são professores de O Tablado, escola fundada por Maria Clara em 1951 – em outubro, o espaço comemora 70 anos de atuação.

A dramaturga Maria Clara Machado
A dramaturga Maria Clara Machado (imagem: Acervo da artista)

O fracasso dá caráter

As entrevistadas também lembram os ensaios com Maria Clara. Descreve Cacá: “Era muito engraçado quando o ator ficava sem saber o que fazer, ela subia no palco, baixava o personagem e mandava o ator imitá-la: ‘Você faz assim, ó, você faz este gestual, você abaixa a cabeça e você anda para lá’”. A diretora ri com a lembrança: “Ela fazia tudo muito físico! Acho que é porque estudou bastante pantomima”, a arte da narração corporal.

No caso de Renata, vêm à sua mente uma cena e uma frase. A cena é de uma montagem, em 1997, da última peça dirigida por Maria Clara, O Gato de Botas. “Teve um momento muito emocionante, a última cena estava sendo muito difícil. Ela chamou então o Ricardo Kosovski e a Cacá Mourthé. Tenho esta imagem: um do lado direito, um do lado esquerdo, e ela no meio, de maestra, os três dirigindo juntos a cena final.”

“Nesse dia”, continua ela, “ou em algum outro que não lembro qual, ouvi uma frase dela que depois foi escrita no banco do Tablado: ‘O fracasso dá caráter’. Eu não sei quando ela falou isso, não sei em que circunstância, mas eu uso essa frase como lema”. Renata pondera: “Não como lema, que eu não quero sair fracassando por aí, mas entendo que o fracasso dá um caráter diferente, dá um estofo diferente, dá uma base diferente para a gente seguir com o pé no chão sendo amador ainda, mesmo que profissional, sabe?”.

Amador, aquele que ama

Este último ponto aparece igualmente em um memorial que está sendo preparado por Ricardo para o concurso de professor titular da Escola de Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), onde leciona: “Na filosofia de Maria Clara Machado, a manutenção do amadorismo cria autonomia, independência e coerência artística. Pode-se definir em parte essa questão, vislumbrando-se também sua paixão pela arte, com suas próprias palavras: ‘Amador, aquele que ama’”. Ele também escreve:

Ingressei no Tablado em 1976 e apesar de ter me profissionalizado no ano seguinte, em 1977, continuei participando do grupo. Foi no teatro amador que compreendi o verdadeiro valor de se devotar ao palco. Foi O Tablado que me apresentou os mistérios da caixa preta, os intrincados processos de produção, os diferentes modos de se operar a cena e a diversidade de olhares artísticos, aprendizado que ganhei dando aulas, dirigindo, experimentando linguagens e materiais, fazendo cenários, montando luz e escrevendo peças.

Renata também fala de como O Tablado, sob Maria Clara, era um ambiente de constante e variado aprendizado: os alunos assumiam funções diversas, no palco ou atrás da cena, em rodízio – cita ela, atuação, contrarregragem, operação de som, “e por aí vai: é como se o teatro tivesse essa generosidade, desse oportunidade dessas experiências para todo mundo”. Por vezes, adiciona a atriz, “essa possibilidade que a Maria Clara Machado dava de todo mundo aprender um pouco fazia com que as pessoas encontrassem de fato seus lugares”. O estudante notava, por exemplo, que gostava mais da técnica mesmo.

Algo disso permanece até hoje na escola, afirma ela: “Onde a gente continua praticando isso são nas peças de final de ano”. Os alunos podem trabalhar com luz, figurino, cenário, em uma estrutura aberta: “Não tem essa posição do professor em cima de um pedestal e alunos que estão ali só para aprender: é uma troca orgânica que é totalmente herança da Maria Clara e dos meus mestres. Aprendi com eles assim e acabo ensinando assim”.

Farinha pouca, dividir o pirão

Com essas definições, O Tablado se fez a casa de muita gente, como Renata aponta – e causou, vimos isso com Ricardo, mudanças de vida. “Eu entrei lá com 11 anos, comecei a trabalhar nas peças com 13 para 14 anos”, rememora a atriz, “eu era uma adolescente meio rebelde, meio perdida, meio sem rumo e o teatro de fato me salvou. O Tablado de fato me salvou. Eu aprendi a ter disciplina, a ter respeito pelo outro, pelo compromisso”.

Esses valores passados por Maria Clara, pensa Cacá, foram aprendidos por ela também jovem. Aos 15 anos, a diretora entrou no Movimento Bandeirante – grupo de educação não formal de jovens. Para sua sobrinha, “o espírito de bandeirantismo da Clara criou na escola a ideia da importância do coletivo. Num mundo de ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’, esse espírito e a poesia que ela semeou são muito importantes”.

Talvez por essa importância do coletivo é que os finais de peça, para Maria Clara, fossem coisa séria do mesmo jeito: ela procurava resguardar essa ocasião de reconhecimento. “Ela nos ensinava a se deixar ser aplaudido”, destaca Renata. “Há muitos atores que se aplaudem junto, aplaudem a plateia – parece que a gente não pode só ser aplaudido. Ela falava: ‘Não se aplaudam. Recebam os aplausos. Eles estão aqui para aplaudir vocês’”.

Afinal, era hora de valorizar o trabalho de todos e todo o processo, assim como é hora, no centenário, de comemorar a artista. Receba nossos aplausos, Maria Clara.

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