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Tradutoras literárias buscam romper com a solidão e a precarização do trabalho

Debora Fleck, Lígia Azevedo e Sofia Mariutti falam sobre o Quem Traduziu, grupo criado para refletir sobre a tradução literária no mercado editorial brasileiro

Publicado em 28/10/2023

Atualizado às 12:44 de 14/12/2023

por Milena Buarque

Se fosse possível expressar em imagens gráficas o ofício de traduzir, Sofia Mariutti estaria remando ondas gigantes e devoradoras em seu escritório. “Acho que essa é a minha sensação ao traduzir. Mas também é a coisa do dia a dia... Este trabalho que você tem todos os dias de se disciplinar para fazer três, quatro páginas que sejam, e ir avançando. Isso é muito mágico”, diz. No fim, traduzir como atividade cotidiana, silenciosa e de entrega seria também como o ato de tecer: “De repente, você tem um cachecol”.

Sofia é paulistana e, além de tradutora, é editora e poeta. Mestra em língua e literatura alemã pela Universidade de São Paulo (USP), ela é uma das integrantes do Quem Traduziu, um grupo de tradutoras literárias que tem buscado refletir sobre o trabalho da tradução e o seu espaço e reconhecimento no mercado editorial brasileiro.

Com cerca de 70 mulheres, o grupo surgiu organicamente no WhatsApp, a partir da associação de algumas tradutoras que procuravam reunir conversas e debates comuns que já estavam acontecendo em diferentes esferas, em um meio um tanto propício para que profissionais se sintam sozinhos, ainda que não estejam. Uma dessas articuladoras é Debora Fleck, cofundadora e sócia da Pretexto, mestra em literatura brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), revisora e tradutora há mais de uma década.

“Conversando com a Rita [Rita Kohl, tradutora e pesquisadora], pensamos ‘vamos reunir todo mundo?’. A gente criou um grupo no WhatsApp, teve uma primeira reunião pelo Zoom e foi superlegal. E é um alívio sentir ‘uau, encontrei a minha turma!’. Já trabalho com tradução há uns 12 anos e nunca tinha tido essa sensação”, conta Debora, que afirma não ter havido nenhum direcionamento inicial para que o grupo fosse composto apenas de mulheres. “Foi indo. Quando a gente viu, já havia ali 70 mulheres envolvidas. E mulheres superinteressantes. Somos todas tradutoras literárias, não é? E acho que isso tem uma diferença, umas especificidades de trabalhar para editoras, no mercado editorial brasileiro.”

Consolidar um espaço seguro para a troca, organizar melhor as pautas de interesse e fazer uma espécie de dever de casa têm sido, no momento, as prioridades do grupo, que procura se estruturar internamente e dar espaço para o conhecimento mútuo e o diálogo antes de promover ações voltadas para o público externo.

“Acredito que a gente tem de se unir para conseguir as coisas. Sozinha, a gente não consegue. Sabemos disso porque quem tentou já viu”, diz Lígia Azevedo, tradutora, jornalista formada pela USP e pós-graduada em língua inglesa e literaturas, com uma trajetória profissional que contabiliza mais de 120 livros traduzidos.

Do grupo, ela é uma das poucas que vive apenas do ofício da tradução. “Para que isso acontecesse, tive de abrir mão de uma vaidade intelectual, não só no sentido de deixar de traduzir livros que eu adoraria fazer, mas também entendendo que preciso realizar cada trabalho dentro de determinado prazo e contar que o resto da cadeia editorial – preparadoras, revisoras, editoras – vai me ajudar nos meus deslizes. Acho que é um trabalho eterno tentar sobreviver disso e melhorar suas laudas cada vez mais, passando a trabalhar com pessoas que a tratem melhor. E que paguem na data”, pontua Lígia.

Em entrevista ao site do Itaú Cultural (IC), Debora, Lígia e Sofia compartilham suas trajetórias e experiências na área e refletem sobre as paixões e os sofrimentos – nesses termos – de trabalhar com tradução literária no Brasil. Elas se juntam às considerações de Rita Kohl, também integrante do grupo, no primeiro texto da série Quem traduziu?.

Veja também:
>>> Quem traduziu? | Rita Kohl e a literatura japonesa no Brasil

ILHAS DE SOLIDÃO

Sofia Mariutti: O que eu pensei foi: “Nossa, elas estão rompendo esta ilha de solidão dos tradutores!”. Isso é muito importante. Acho que a ideia do grupo é bem essa mesmo: trocar e sair dessas ilhas. É uma parte muito difícil desse trabalho. E é legal que tem várias tradutoras muito experientes e outras mais iniciantes também. Umas aprendendo com as outras.

Lígia Azevedo: A situação disso, que não sei se podemos chamar de carreira ou não, é tão precária que acho que todas estão muito ligadas a como a profissão é tratada, e isso consome a maior parte do nosso tempo. A como, enquanto grupo, podemos alcançar coisas mínimas, até ridículas. Não é legal que a gente quase não consiga discutir a própria profissão e o próprio trabalho, mas é ótimo que a gente esteja se organizando para isso. Vai ser assim que a gente vai conseguir ter mais voz.

Sofia: Acabamos falando mais do nosso trabalho no grupo, mas é bem amplo. Porque, como a Lígia falou, não dá muito tempo de cada uma falar de questões de tradução que está enfrentando ali naquela semana. A gente entra em questões de contrato e de prazos. Enfim, da nossa condição de trabalho mesmo, que, como Lígia disse, é muito precária.

Retrato da tradutora Sofia Mariutti. Ela é uma mulher branca, de cabelos pretos e veste camisa branca. Ao fundo é possível ver, mesmo que fora de foco, arbustos e árvores.
Sofia Mariutti (imagem: divulgação)

QUEM TRADUZ NO BRASIL?

Sofia: O maior desafio dessa profissão é que não há mudanças. É tudo muito estagnado. Talvez seja justamente por não ter uma classe muito organizada. O mercado editorial mudou muito nos últimos anos, profissionalizou-se, cresceu e se internacionalizou. Chegaram editoras estrangeiras aqui, tem faculdade de editoração, livrarias especializadas de rua abrindo, então, é um mercado que está muito vivo, muito pulsante, e a profissão da tradução ainda fica um pouco de lado nesse processo todo. Nós três trabalhamos no mercado editorial antes de ser tradutoras. Eu acompanhei os últimos 10, 15 anos do mercado, e sempre vi que, para o tradutor, não mudou muita coisa, sabe?

Lígia: Cada vez mais, assinamos contratos nos quais cedemos absolutamente tudo o que existe e que possa vir a existir. Além disso, há a questão do valor da lauda, que representa o que a gente recebe. Eu não consigo nem falar sobre alguém que traduziu nos anos 1990, mas a profissão tinha outro status, você ganhava muito mais do que se ganha hoje. Uma vez, a tradutora Flávia Souto Maior mencionou que pegou o valor de lauda do primeiro livro que traduziu – 17 reais, em 2008 –, colocou na Calculadora do Cidadão do Banco Central, que corrige a inflação, e viu que seria hoje 47 reais. Era um livro comercial, e posso dizer com tranquilidade que nenhuma editora paga 47 reais pela tradução do inglês de um livro comercial em condições normais. Parece que, a cada dia que passa, você acumula experiência e perde dinheiro.

Debora Fleck: Chegam muitos relatos para nós na Pretexto. E eu acho que têm a ver com o mundo de forma geral, com a precarização da atividade mesmo. Há um submundo, também, de editoras que se aproveitam e sempre oferecem laudas com um valor que eu não recebi nem no meu primeiro trabalho. É muito assustador esse declínio. Nós vamos lutando para conseguir receber melhor, colocando esse pé na porta, mas a minha sensação é de que nunca é proporcional, nunca é adequado ao trabalho que temos. É um trabalho ao qual nos dedicamos de uma forma absurda. É um trabalho de obsessão mesmo. Vamos a um nível de detalhe que parece que nunca está sendo remunerado adequadamente. Quase todo mundo tem que fazer outras atividades para conseguir fechar as contas. Quem consegue viver apenas de tradução literária? É difícil. É muito raro.

Lígia: E isso tem um impacto que não é só pessoal. Qual é o tipo de pessoa que vai trabalhar com tradução? Acaba não sendo democrático. Muitas vezes, são pessoas que possuem privilégios que permitem que elas possam fazer tradução. E aí a cultura acaba ficando na mão de certos grupos, da elite mesmo, que é outra coisa que acontece na cultura de modo geral, não só na literatura. Na minha visão, a precarização é de toda a cadeia editorial. O editor não tem tempo de conversar... É um editor que está ganhando menos e fazendo mais. É um preparador que consegue ganhar pior do que o tradutor, por exemplo.

ESTADO DE ACOMODAÇÃO

Sofia: Ao meu ver, a situação do tradutor é mais delicada. O editor ainda tem contrato de trabalho. Já o tradutor é um profissional freelancer. Acho que a gente pode contrapor um pouco o tradutor ao autor. Porque o tradutor, de certa forma, é um criador também. E eu acho que a diferença básica é que o autor é remunerado como criador e o tradutor não. Ele não toma parte nessa criação. Nas discussões acadêmicas, a gente já chegou a esse ponto de considerar o tradutor um criador. E se a gente partisse desse pressuposto para pensar nos direitos dos tradutores? Isso necessariamente se traduziria em royalties, mesmo que fosse uma parcela muito pequena. Trata-se de um pensamento que ainda não existe no Brasil, mas já existe em outros países. Quer dizer, no Brasil existem certos casos, quando o livro está em domínio público. Mesmo assim, nem sempre. Por exemplo, se o livro que traduzimos vira um best-seller, faz alguma diferença?

Lígia: Nos livros comerciais, que vendem mais, você ganha menos por lauda, não é? O valor da lauda também varia de acordo com isso, se o livro é um best-seller ou não.

Debora: O valor da lauda às vezes soa como algo completamente aleatório. E acho que a gente também está querendo abrir esta caixa preta para poder entender alguns parâmetros, e também para ser mais assertiva. Em alguns casos, é raro assinar contrato, ou o assinamos depois de entregar o trabalho. Então, acho que tem um estado de acomodação e não acho que seja necessariamente por mal, mas algo como: "É assim há tanto tempo, por que mudar, mexer nesse vespeiro?". É uma questão sistêmica, estrutural. A gente quer ser propositiva, fazer alguma diferença.

Lígia: Na verdade, quando a gente recebe o contrato, o direito que ele continua preservando para a gente é um direito moral, que não pode ser tirado, de qualquer maneira. E o valor da lauda, por exemplo, é uma coisa que está no e-mail, nem precisaria do contrato. Ah! E a gente recebe dois exemplares [risos].

Sofia: Cessão total e definitiva, eterna. Seus herdeiros estão assinando este contrato e ele é irrevogável [risos].

Retrato da tradutora Lígia Azevedo. Ela é uma mulher branca, de cabelos castanhos e sorri para a câmera. Ao fundo, um gramado, pétalas de flores rosas no chão e árvores.
Lígia Azevedo (imagem: divulgação)

UMA NOVA VISÃO

Debora: Por outro lado, para as tantas editoras que trabalham de um jeito muito velho, acho que tem um movimento mais recente de editoras menores que valorizam o nosso trabalho. Ainda precisamos melhorar muito, temos um longo caminho pela frente, mas é legal ver algumas iniciativas de editoras que dão maior destaque para o tradutor, que já têm essa visão de que o tradutor é um coautor da obra. Acho que isso melhorou um pouco. Em algumas editoras mais jovens e menores, há uma visão mais fresca da coisa.

Sofia: Tem editoras, como a Carambaia, que colocam o nome do tradutor na capa. Estou citando só uma, mas tem mais.

Lígia: É mais fácil não pagar e não oferecer condições de trabalho para pessoas que são invisíveis. Se ninguém acha que existiu uma tradução, se a pessoa acha que está lendo o livro “como ele é”, fica mais fácil de não se valorizar isso financeiramente mesmo. Acho que tem uma coisa muito importante que é a história de o tradutor ser autor. É a lei, o tradutor é autor da obra derivada. Do jeito como está agora, eu faço um contrato de edição com a editora X. Aí, a editora X perde o direito de publicação da obra e pode simplesmente vender a minha tradução para a editora Y sem eu saber. E a editora Y pode fazer o que quiser com a minha tradução, pois eu não tenho contrato com ela. Entende? Quanto mais a gente aparecer, e não por uma satisfação pessoal, por um status, mas para saber que existe essa profissão, que esse trabalho está sendo feito, que o que você está lendo é outra obra, derivada do original... Essas coisas contribuem umas para as outras.

Sofia: Nos Estados Unidos, por exemplo, que traduzem menos do que a gente, existe muito essa invisibilidade do tradutor e até esta tendência de as edições serem mais domesticadoras, de tentarem apagar um pouco o fato de que é um livro traduzido de outra língua, que pode ter algumas estranhezas da língua de origem. É essa ideia de você apagar o tradutor para, de certa forma, enganar o leitor. Para o leitor achar que está lendo um livro no original. Como se ele fosse dar menos credibilidade para o que está lendo se soubesse que é uma tradução. Por isso, também, que escondem o nome do tradutor da capa.

É um trabalho extremamente especializado que demanda muita formação, leitura e conhecimento da língua de partida e da língua de chegada, além de sensibilidade. Então, isso é uma coisa de que a gente fala muito, sobre como o ofício da tradução é um trabalho criativo e que exige a habilidade de recriar o texto tendo sensibilidade para o som, o ritmo, as diversas questões formais e também as camadas de sentido e de interpretação que ele pode ter. Tudo isso demanda do tradutor.

FIDELIDADE X LIBERDADE

Sofia: O texto é atravessado pelo sujeito. Tentar apagar isso seria impossível. Quem é esta pessoa, onde ela vive, o que ela leu? Quais são as referências dela? Acho que isso está no texto que ela lê, na leitura que faz de um texto e no jeito que vai reescrevê-lo ou recriá-lo. E, pensando na teoria da tradução, acho que antes se falava muito desta ideia de fidelidade. Isso foi perdendo um pouco a força. Esta ideia de que a fidelidade é o valor maior de uma tradução. O texto é aberto, não é absoluto, não é essencial. Não é um debate tão recente assim o de que a tradução é uma forma de criação.

Debora: O que eu acho que mudou é certa concepção da tradução no sentido da liberdade. Se a gente ler traduções mais antigas, fica muito nítido certo descolamento maior em relação ao original. Até por falta de recursos. Como era traduzir antes do Google? Acho que, em geral, as traduções tinham um grau de liberdade maior. Em muitos casos, parecem adaptação, em vez de tradução. Cortava-se um trecho que estivesse difícil. Hoje, a tradução está muito mais profissional nesse sentido. As editoras estão mais profissionalizadas.

Retrato da tradutora Debora Fleck. Ela é uma mulher branca, de cabelos castanho avermelhados e está de perfil na imagem.
Debora Fleck (imagem: divulgação)

PAIXÃO E SOFRIMENTO

Debora: É um trabalho de muita paixão e, por isso, pode ser um pouco perverso. São condições ruins de trabalho que muita gente acaba aceitando. Para quem é apaixonado por livros, é quase como se as editoras estivessem fazendo um favor ao lhe dar um livro para traduzir. É muito sedutor, especialmente para quem está começando e quer montar um currículo.

Sofia: A minha primeira tradução de fôlego foi um volume de 700 páginas, uma biografia muito extensa do [escritor tcheco Franz] Kafka, para a editora Todavia. Foi um aprendizado enorme. Como a Debora falou, é uma coisa de muita paixão, mas de muito sofrimento também. Como administrar essas páginas e não ser engolida? É como se eu estivesse remando, e ondas gigantes me devorando. Acho que essa é a minha sensação ao traduzir. Mas é a coisa do dia a dia... Este trabalho que você tem todos os dias de se disciplinar para fazer três, quatro páginas que sejam, e ir avançando. Acho que é muito mágico isso. Você vai tecendo uma coisa, sabe? De repente, você tem um cachecol.

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