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Hamsters humanos

Em sua nova pesquisa cênica, grupo Ser Tão Teatro simula uma comunidade de hamsters em laboratório para abordar o processo de desumanização

Publicado em 18/12/2024

Atualizado às 15:48 de 18/12/2024

por Cristiane Batista

Prestes a completar 18 anos, o grupo Ser Tão Teatro desenvolve um experimento cênico que simula uma comunidade de hamsters confinados em laboratório para discutir um comportamento que afasta o ser humano de certas características que ainda o identificam à sua espécie, como empatia, compaixão e solidariedade. A pesquisa, com o título provisório Desumanização em miniatura, tem apoio do Rumos Itaú Cultural.

O trabalho retoma uma investigação iniciada em 2016, enquanto o coletivo desenvolvia o espetáculo Alegria de náufragos, vencedor da categoria de melhor dramaturgia no Prêmio Prio do Humor 2023. “Ali experimentamos improvisações a partir de temas como a desumanização e o condicionamento, no entanto, a pesquisa tomou outros rumos e desembocou no conto ‘Uma história enfadonha’, de Tchekhov. Agora nos concentramos nessa inquietude, a fim de provocarmos uma discussão sobre os algoritmos, sobre a sociedade neste lugar de repetição, de padrões, de resposta a estímulos, individualizada, desumana. A dramaturgia ainda está em processo de criação, mas é certo que devemos apostar em características que já são conhecidas no nosso trabalho, como a ironia e a fisicalidade. Em um primeiro momento, queremos transformar as características dos hamsters em um código do jogo, e isso muito nos instiga”, conta Rafa Guedes, ator e produtor do grupo.

No experimento, Guedes interage com os atores Cely Farias, Paulo Philippe e Polly Barros em um espaço que reproduz gaiolas – ou uma academia de ginástica –, com esteiras, rodinhas de exercício, escadas, comedouros e bebedouros. A partir de uma provocação inicial, com exercícios de repetição de estímulos e reações de recompensa coordenados pelo preparador corporal Edigar Palmeira, as dinâmicas sociais evoluem e revelam paralelos com a vida humana, com os personagens oscilando entre momentos de cooperação e competição.

Segundo Cely Farias, o público também será convidado a se envolver: “Estamos pensando em como faremos essa interação e interferência nas cenas para que ele seja uma parte ativa e criadora do espetáculo. A ideia é que, por meio de dispositivos analógicos e digitais que captem reações ou variáveis de iluminação e luz, por exemplo, a plateia altere o rumo das cenas, estimule a troca de papéis entre os atores ou mesmo participe diretamente, somando- se à comunidade hamster. Tudo ainda é um campo de possibilidades e de descoberta de novos caminhos”, diz ela.

A comicidade – outra marca do grupo – está garantida com a intervenção especial de Thardelly Lima como preparador e provocador de humor e improvisação. No ar na novela No rancho fundo, da TV Globo, o ator ficou conhecido do grande público como o prefeito Tony Júnior, do filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, prêmio do júri no Festival de Cannes 2019.

De dentro para fora, de fora para dentro

O coletivo Ser Tão Teatro foi formado em 2007, em João Pessoa (PB), no Departamento de Teatro da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Iniciou sua atuação com uma trilogia que se debruçava sobre a dramaturgia brasileira da década de 1960: Flor de Macambira, baseado na obra O coronel de Macambira, de Joaquim Cardozo; Farsa da boa preguiça, de Ariano Suassuna; e Vereda da salvação, de Jorge Andrade. Com os trabalhos, o coletivo circulou por festivais em todo o país e também na Argentina, realizando espetáculos e oficinas.

Quase 18 anos depois, o grupo segue aprofundando sua pesquisa, sempre em colaboração com outros coletivos e artistas. Na montagem de Farsa da boa preguiça, por exemplo, dividiu a cena com o grupo Clowns de Shakespeare, de Natal (RN). Em Flor de Macambira, contou com o multi-instrumentista Beto Lemos na criação musical e com a diretora, autora, ensaísta, pesquisadora e professora Rosyane Trotta na dramaturgia. Já Alegria de náufragos teve a participação do ator César Ferrario, do grupo Casa de Zoé, de Natal/RN, e do diretor e dramaturgo Giordano Castro, membro e um dos fundadores do Grupo Teatral Magiluth, do Recife (PE).

A parceria com Giordano se repete em Desumanização em miniatura. Ele já havia trabalhado, com sua companhia, em outras três dramaturgias fundamentadas em experimentos sensoriais de confinamento no período da pandemia de covid-19: Tudo que coube numa VHS, Todas as histórias possíveis e Virá, todas exibidas no ciclo Ficções Itaú Cultural. “Para o nosso experimento, ele traz sua expertise de um trabalho físico bem evidente e uma narrativa que desconstrói a dramaturgia convencional, uma vez que o texto acontece a partir dos ensaios e dos corpos em cena”, explica Cely Farias.

Para Polly Barros, essa construção coletiva que abraça outros olhares tem sido benéfica e aponta novos caminhos para o próprio grupo: “O que a gente viveu nos primeiros anos de trajetória continua pulsando nos nossos corpos e no nosso jeito de criar, mas a gente quis sempre estar aberto aos estímulos, aos movimentos, numa constante ampliação de horizontes criativos, porque tudo nos atravessa. Em dado momento, a gente quis sair da fórmula que parecia nos definir e experimentar outros pontos de vista, abrir a escuta noutras direções. A formação de público também tem sido um importante norte para essas práticas. Isso tudo tem nos proporcionado muitas alegrias, trocas artísticas e visibilidade. Cumprir esta missão de conectar o nosso trabalho a plateias distintas nos enche de vigor e desejo de continuar fazendo teatro. É a possibilidade de sair da bolha e ver se o que a gente faz sensibiliza o outro. Isso é precioso”.

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