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Montagem do artista Denilson Baniwa a partir de uma imagem antiga, no qual há indígenas dançando em roda. A montagem se dá a partir da inserção de duas personagens europeus dançando ao centro da roda, uma bailarina em trajes típicos, e um homem com bigode e utilizando terno, como se estivessem participando da roda mencinoada anteriormente.

Desafios no acesso ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade

O artigo aborda as complicações da exploração econômica do saber de comunidades tradicionais e os necessários dispositivos legais para protegê-las

Publicado em 08/11/2023

Atualizado às 11:53 de 29/12/2023

por Roberto Porro e Noemi Sakiara Miyasaka Porro

Resumo

A repartição equitativa de benefícios é o instrumento de reconhecimento atualmente proposto por Estados-membros das Nações Unidas diante da exploração econômica por terceiros da contribuição de povos e comunidades tradicionais à conservação da biodiversidade e dos recursos genéticos. Neste artigo, apresentamos o histórico e discutimos paradoxos e desafios associados à implementação da Lei no 13.123/2015 (Lei da Biodiversidade), destacando as contradições responsáveis pelo fato de seu real cumprimento não ter sido ainda atingido. Direitos coletivos de grupos sociais cujo conhecimento não se constrói como propriedade intelectual não podem ser protegidos por aparato do direito privado.

Capa da revista observatório 36 a partir da obra do artista Denilson Baniwa. A imagem é em tons de marron e amarelo, no centro há a figura de um indígena deitado de costas no chão, com um arco nos pés e puxando uma flecha com as mãos, apontada para cima. A partir do ângulo formado entre o arco e a flecha, o artista incluiu faixas simulando a representação de sinal de internet wi-fi. No canto esquerdo há um quadrado marro com o logo e o número da revista em amarelo.

[acesse aqui o sumário da Revista Observatório 36]

O ano de 2022 marcou o aniversário de três décadas da II Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente e o desenvolvimento humano (Rio-92), que priorizou temas como o desenvolvimento sustentável e mecanismos para reverter a degradação ambiental. A partir da Rio-92, incrementa-se a visibilidade da Amazônia nos debates ambientais globais, e o potencial de suas florestas na mitigação dos efeitos negativos das mudanças climáticas. Desde então, o governo brasileiro passa a considerar de forma mais efetiva ações e políticas públicas visando reduzir o desmatamento e reverter dinâmicas socioeconômicas que têm comprometido a conservação da biodiversidade, a provisão de serviços ecossistêmicos e a reprodução social dos povos e das comunidades tradicionais[1].

Entre as deliberações da Rio-92, destaca-se a assinatura da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo no 2, de 5 de junho de 1992 (BRASIL, 2000), e promulgada pelo Decreto Presidencial no 2.519, de 16 de março de 1998, que fixou em suas disposições o valor econômico e o direito sobre conhecimentos tradicionais[2] associados à biodiversidade. A preservação e a manutenção do conhecimento tradicional associado à biodiversidade, assim como a repartição equitativa dos valores referentes a esse conhecimento para com seus detentores, foram fixadas nos termos do artigo 8o, inciso “j” da CDB, que dispõe:

Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica, e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição equitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas.

O Brasil é considerado a nação com a maior diversidade biológica e, consequentemente, o maior banco genético do mundo, abrigando por volta de 13% das espécies existentes no planeta (FERREIRA; SAMPAIO, 2013). O uso da biodiversidade tem enorme potencial de crescimento, por ser a base da biotecnologia e da bioeconomia, em suas diversas abordagens. Porém, para o Estado e setores do empresariado e da academia, é fundamental que todo o arcabouço normativo relacionado ao uso da biodiversidade seja capaz, ao mesmo tempo, de atrair investimentos e de resguardar os direitos das comunidades locais (BRASIL, 2022; FIORILLO, 2017). Com efeito, a riqueza da biodiversidade brasileira proporciona ao país material genético para produção de alimentos, medicamentos, cosméticos e outros materiais biológicos. E as comunidades que há tempos habitam determinado território possuem conhecimentos sobre propriedades de plantas e manejo de animais, entre outros saberes relacionados a seres vivos, denominados conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético[3], que são fonte de inovação para a ciência e a indústria (BENSUSAN, 2015). Conforme argumenta Cunha Filho (2000), essas comunidades não estão mais excluídas da economia nacional nem mais simplesmente localizadas na periferia do sistema socioeconômico mundial, tendo se tornado parceiras frequentes de instituições multilaterais e ONGs transnacionais.

Para o Estado e setores do empresariado e da academia, é fundamental que todo o arcabouço normativo relacionado ao uso da biodiversidade seja capaz, ao mesmo tempo, de atrair investimentos e de resguardar os direitos das comunidades locais. (...)  A repartição de benefícios pode ser considerada uma questão de justiça para a soberania das nações sobre o seu patrimônio genético e para os povos tradicionais sobre os seus saberes 

A repartição de benefícios (RB), tratada na CDB e aprofundada no Protocolo de Nagoya[4], é necessária para reconhecer o valor e o esforço de uma nação em proteger e preservar sua biodiversidade e seus recursos genéticos, além de reconhecer a contribuição de práticas e saberes dos povos e das comunidades tradicionais para essa conservação, para o desenvolvimento tecnológico e para a exploração econômica de produtos oriundos do acesso a esses conhecimentos. A RB pode ser considerada uma questão de justiça para a soberania das nações sobre o seu patrimônio genético e para os povos tradicionais sobre os seus saberes (OLIVEIRA; SILVA, 2016). No Brasil, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) conceitua repartição de benefícios como a divisão dos benefícios provenientes da exploração econômica de produto acabado ou material reprodutivo desenvolvido a partir do acesso a patrimônio genético (PG) ou a conhecimento tradicional associado (CTA), sendo que esse último representa toda “informação ou prática de população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional sobre as propriedades ou usos diretos ou indiretos associados ao PG” (Lei no 13.123/2015, art. 2o, inciso II ).

O Brasil foi um dos países pioneiros na implementação de uma lei de acesso ao patrimônio genético, ao conhecimento tradicional associado e à repartição de benefícios: a Medida Provisória (MP) no 2.186-16, de 2001, alinhada à Convenção sobre Diversidade Biológica. A intenção da MP era evitar a biopirataria e garantir a repartição de benefícios oriundos do uso dessa biodiversidade de forma justa e equitativa. Segundo os usuários, porém, a MP criou barreiras e não viabilizou a repartição de benefícios de forma satisfatória, sendo alvo de críticas de usuários do setor privado e de parte da comunidade científica, que reivindicavam uma legislação com regras mais claras e que proporcionasse segurança jurídica para estimular a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico que faz uso da biodiversidade brasileira. Setores de pesquisa e desenvolvimento consideravam a MP no 2.186-16 prejudicial no que diz respeito à dinâmica das inovações, principalmente as previsões de exigência do Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios (Curb), visto como incompatível com incertezas técnicas, tal como a real viabilidade de obter benefícios a partir do que se pretendia produzir (TÁVORA et al., 2015). No entanto, o grande desafio era a determinação de um sistema de proteção diferente da usualmente conferida à propriedade intelectual (PINTO, 2022).

Após cerca de 15 anos de amadurecimento do marco legal, foi sancionada, em 20 de maio de 2015, a Lei no 13.123 (Lei da Biodiversidade), que entrou em vigor no dia 17 de novembro de 2015. Ela objetiva estabelecer mecanismos para conciliar demandas das partes interessadas e envolvidas na geração, provisão e utilização do conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético[5], e criar um maior incentivo à bioprospecção, com redução dos custos de transação e uma repartição de benefícios “factível” que resguardasse os interesses e direitos das comunidades tradicionais (TÁVORA et al., 2015, p. 10). A lei alcança todas as atividades realizadas com a biodiversidade brasileira, incluindo pesquisas relacionadas a taxonomia, filogenia, estudos ecológicos, biogeografia e epidemiologia, entre outras (OLIVEIRA; SILVA, 2016).

De acordo com a Lei da Biodiversidade, a repartição dos benefícios deve ocorrer somente quando existir a comercialização dos produtos derivados, estando obrigados a repartir benefícios os fabricantes de produto acabado, ou material reprodutivo, cujo componente do PG ou do CTA seja um dos principais elementos de agregação de valor ou apelo comercial do produto. Contudo, para realizar qualquer atividade com a biodiversidade brasileira, a partir de novembro de 2017 passou a ser necessário o cadastro no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado (SisGen). Posteriormente, devem ser realizados nesse sistema eletrônico os procedimentos de notificação de produto acabado e material reprodutivo. Entre março e junho de 2018, o plenário do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen), presidido pelo MMA, aprovou medidas que simplificam o cumprimento da lei e o preenchimento do cadastro no SisGen.

Obra de Denilson Baniwa  a partir da intervenção em uma representação antiga de um indígena preto e branco, utilizando roupas europeias, segurando um maracá que o artista coloriu de verde, e na cabeça um penacho também colorido pelo artista mas em cor vermelho. Ao lado em letras grandes e pretas a frase
Ensaio Artístico Revista Observatório 36 | Denilson Baniwa - Tupy or not tupy that's the question (imagem: Denilson Baniwa)

A Lei no 13.123/2015 distingue entre CTA de origem identificável e CTA de origem não identificável, e estabelece a necessidade de consentimento prévio para o acesso e a utilização desse conhecimento somente em relação à primeira categoria, quando é possível a identificação de sua origem e de seus titulares. Visando reduzir dispêndios na etapa inicial de acesso ao CTA, a lei determinou a dispensa do consentimento em relação à segunda categoria. Contudo, essa dispensa não é estendida para a obrigação de repartição de eventuais benefícios decorrentes da exploração. Assim, quando o CTA for de origem identificável, será necessária a realização do Acordo de Repartição de Benefícios (ARB), e, quando se tratar de CTA não identificável, haverá o depósito dos valores oriundos de sua exploração no Fundo Nacional de Repartição de Benefícios (FNRB), vinculado ao MMA e instituído pela lei, o qual deverá financiar atividades destinadas à promoção e ao desenvolvimento social, cultural e econômico das comunidades tradicionais.

Conforme a categoria prevista de aplicação da lei, a modalidade de repartição de benefícios derivada da exploração econômica de produto acabado ou de material reprodutivo oriundo de acesso a patrimônio genético nacional pode ser de natureza monetária ou não monetária. A modalidade monetária se dá por meio de pagamentos ao FNRB, enquanto a não monetária, via ARB que compreenda projetos de conservação, capacitação de pessoas e distribuição de produtos, entre outros meios, destinados a unidades de conservação ou territórios dos detentores de conhecimento tradicional (tabela 1). No caso de RB monetária, o percentual a ser pago será de 1% fixado ou até 0,1% (por acordo setorial) da receita líquida obtida com a venda do produto acabado ou material reprodutivo. A União será indicada como beneficiária da repartição de benefícios no caso da indicação de acesso apenas ao patrimônio genético. E, no caso de conhecimento tradicional associado, os beneficiários serão os povos indígenas, as comunidades tradicionais e agricultores tradicionais. No caso de exploração econômica de produto ou material reprodutivo originado de conhecimento tradicional associado de origem identificável, além de depósito no FNRB de 0,5% da receita líquida anual, deverá ocorrer ARB com o provedor. Em meados de 2023, a Câmara Setorial dos Detentores debatia no CGen as especificações no uso do FNRB.

Tabela 1: Modalidade, destino e montanta da repartição de benefícios conforme objeto do acesso

As empresas de pequeno porte, microempresas, microempresários individuais, agricultores tradicionais e suas cooperativas com receita bruta anual igual ou inferior ao estabelecido em legislação pertinente serão excluídos da obrigação de repartir benefícios. É também isento da obrigação de repartir benefícios o fabricante de produto intermediário, utilizado em cadeia produtiva, que o agregará em seu processo produtivo, na condição de insumo, excipiente e matéria-prima, para o desenvolvimento de outro produto intermediário ou de produto acabado.

Na perspectiva dos usuários de PG e CTA, como o setor empresarial e, em parte, as instituições de pesquisa, uma legislação que pretenda impor medidas para a proteção do patrimônio genético, como é o caso da Lei da Biodiversidade, resulta em carga burocrática (custos) e perdas de competitividade no cenário internacional (prejuízos) superiores a eventuais benefícios que a lei proporcionaria, ao menos no tocante à pesquisa básica, na medida em que sua implementação constituiria um desestímulo ao efetivo desenvolvimento tecnológico e à pesquisa aplicada. Para estes, uma adequada lei sobre a biodiversidade deve proteger tanto os recursos naturais quanto as inovações, de forma que estas possam gerar lucros àqueles diretamente envolvidos (empresas, pesquisadores etc.), ao país e à sociedade, gestando um ciclo virtuoso de incentivo para o desenvolvimento científico, econômico e social (FIGUEIROA et al., 2020).

Por outro lado, a efetiva proteção ao conhecimento tradicional associado se mostra como um desafio para o ordenamento jurídico brasileiro, que precisa criar normas que assegurem aos seus verdadeiros titulares o acesso às vantagens advindas da exploração desse conhecimento que compõe o patrimônio cultural imaterial de uma comunidade. Com efeito, as leis nacionais, assim como tratados, frequentemente falham diante da necessidade de estabelecer sistemas de monitoramento e aplicação das normas (FERREIRA; SAMPAIO, 2013). De acordo com Miranda (2018), o marco legal da biodiversidade parece impor a lei em questão com o pretexto de “flexibilizar” normas para incentivar a pesquisa com o patrimônio genético brasileiro, quando na verdade o objetivo é facilitar a apropriação da biodiversidade nacional por grandes grupos farmacêuticos e agroquímicos transnacionais. Assim, o marco se insere em um discurso político para justificar o novo colonialismo biocultural e ratificar o exposto por David Harvey (2005) quanto a estratégias para assegurar direitos monopolistas de propriedade privada mediante leis internacionais de comércio, com destaque para as patentes e os pretensos “direitos de propriedade intelectual”. A Lei no 13.123/2015 teria, portanto, incorporado anseios do setor empresarial com disposições prejudiciais ao direito intelectual coletivo das comunidades tradicionais, o que fragiliza sua proteção quando comparada com a MP no 2.186-16/14.

Obra de Denilson Baniwa a partir da montagem de uma gravura antiga de um homem branco, sentado em uma rede e escrevendo em um papel com uma pena. Na frente da imagem há a colagem da fotografia de um indígena sentado em um pedaço de tronco e olhando para esse homem escrevendo. Ao lado dele, ocupando o canto inferior esquerdo, está escrito
Ensaio Artístico Revista Observatório 36 | Denilson Baniwa - O antropólogo moderno já nasceu antigo (imagem: Denilson Baniwa)

Mais do que isso, nas principais normativas do ordenamento jurídico nacional que tratam do conhecimento tradicional, existe uma associação automática entre conhecimento e patrimônio, expressa no termo “conhecimento tradicional associado a patrimônio genético”. Essa preponderância de uma entre as inúmeras dimensões do conhecimento lesa direitos que podem não ser valorados pecuniariamente, tampouco cedidos, sendo a lesão aos atuais povos e comunidades tradicionais extensiva à humanidade. Embora a noção de patrimônio já tenha evoluído, partindo do sentido estrito vinculado à personalidade do indivíduo para a vinculação a sujeitos coletivos, ainda se faz imprescindível a reflexão crítica no campo jurídico antropológico sobre as desigualdades que levam à apropriação excludente desse patrimônio. No atual Estado de direito, aqueles agraciados por relações capitalizadas pelo patrimônio financeiro são também os que mais se beneficiam do patrimônio genético associado ao conhecimento tradicional, como as grandes indústrias farmacêuticas e de cosméticos. A noção de patrimônio é, em sua origem, marcada pelo cunho econômico e pecuniário, tratando-se como extrapatrimonial aquilo que não o é (PORRO et al., 2023).

A apropriação indevida de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade pode ocorrer com amparo em direitos de propriedade intelectual como a patente[6]. Pelo sistema de patentes, o Estado confere ao titular o direito de exploração da tecnologia por um tempo determinado como forma de incentivo à exploração do invento (BARBOSA, 2010). Tal exclusividade por vezes esconde elementos que foram obtidos de maneira irregular para alcançar a tecnologia. A patente, como um direito de propriedade intelectual, descaracteriza o próprio processo de formação do CTA, construído de forma coletiva, sendo insuficiente para uma efetiva proteção dos sistemas de conhecimento (SHIVA, 2001). As patentes dão direito à apropriação privada desse conhecimento e uso exclusivo do produto que ele proporcionar, “[...] um direito de monopólio sobre algo que foi gerado e acumulado ancestralmente, [...] o benefício, para essas comunidades, é coletivo, nunca particular. O que as patentes proporcionam, porém, é a privatização desses conhecimentos” (IADEROZZA, 2015, p. 207). Para evitar que o CTA seja indevidamente apropriado, busca-se um regime no qual direitos intelectuais coletivos se sobrepõem a direitos de propriedade intelectual (SANTILLI, 2004; IADEROZZA, 2015).

Para evitar que o conhecimento tradicional associado seja indevidamente apropriado, busca-se um regime no qual direitos intelectuais coletivos se sobrepõem a direitos de propriedade intelectual

Como agravante, as hipóteses de isenção previstas na Lei no 13.123/2015 em favor do setor empresarial e em detrimento dos povos tradicionais contrariam o direito dos titulares desses conhecimentos (OLIVEIRA, 2016), criando requisitos que dificultam ou até mesmo impossibilitam o acesso das comunidades tradicionais aos benefícios decorrentes da exploração de seu conhecimento. Pode-se, assim, considerar um retrocesso as isenções previstas no artigo 17 da Lei no 13.123/2015 que vinculam a repartição de benefícios a situações específicas e tratam a obrigação de repartição como exceção, já que poucas são as hipóteses em que as comunidades tradicionais terão algum retorno pelo uso de seu conhecimento, o que acaba prejudicando o desenvolvimento dos povos titulares (MOREIRA, 2017). A previsão de “elementos principais de agregação de valor” confere à lei um grau de indeterminação que acaba por comprometer a proteção dos CTAs. Conforme exposto por Pinto (2022), a lei confere imunidade aos elos intermediários da cadeia do produto, estando a obrigação de repartição de benefícios estipulada apenas quanto ao último elo da cadeia produtiva. Em outras palavras, a lei estipula a responsabilidade somente em relação ao último explorador do conhecimento tradicional na cadeia de produção, não introduzindo qualquer responsabilidade subsidiária quanto aos elos intermediários (OLIVEIRA, 2016), sujeitando o direito das comunidades tradicionais a apenas um eventual resultado final do processo de inovação, o que cria a possibilidade de não haver repartição de benefícios (TÁVORA et al., 2015).

Ao analisarem o funcionamento do CGen como aparato coordenador da política de repartição de benefícios, Castro e Santos (2022, p. 15) apontam que a ausência de empoderamento dos grupos tradicionais para influenciar a política resulta em um “ciclo vicioso de rejeição da legitimidade tanto da própria política quanto do CGen para as comunidades tradicionais, que deixam de participar do mesmo e acabam não pressionando para o pagamento da repartição dos benefícios”. É sintomático que, desde a vigência da Lei da Biodiversidade, de 2015, até a data da submissão deste artigo, apenas seis empresas nacionais (e três pessoas físicas) tenham inserido no SisGen notificações de produto acabado referentes a acesso a conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético de flora, obtido de comunidades tradicionais nos nove estados da Amazônia Legal. Em pesquisa na base de dados do SisGen, constatamos que, até março de 2023, foram registradas 716 notificações, sendo que 93% foram inseridas por apenas duas empresas. Dessas notificações, somente 26 registram repartição monetária de benefícios. No caso de acesso apenas a patrimônio genético (da flora), são 1.683 notificações, de 27 empresas (e 7 pessoas físicas), sendo que 75% foram notificações de uma única empresa (tabela 2).

Tabela 2: Notificações de produto acabado referente a acesso a PG e CTA nos estados da Amazônia Legal, considerando patrimônio genético de flora (exceto algas) a partir da vigência da Lei n 13123/2015

Neste contexto marcado pela dicotomia de narrativas, os próprios grupos sociais dos povos e das comunidades tradicionais que praticam o extrativismo se deparam com necessidades distintas de acordo com situações específicas. Essas necessidades contrastam demandas de um segmento ainda minoritário – mas que já avança em complexas negociações comerciais com empresas adquirentes – com aquelas no âmbito de uma grande maioria de pessoas e famílias cuja inserção no mercado se dá por meio de uma cadeia de valor extremamente injusta. De forma semelhante, o setor industrial abrange segmentos que desconsideram a relevância da repartição equitativa de benefícios, buscando formas de se posicionar à margem da aplicação da lei, enquanto outros encontram dificuldades para compreender os requerimentos necessários para estar em conformidade com ela.

Considerando a atual ênfase direcionada a abordagens de bioeconomia, é preciso que iniciativas relacionadas à repartição equitativa de benefícios a partir do acesso ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade, assim como as barreiras ainda existentes para que tal repartição de benefícios ocorra, sejam mais bem compreendidas e disseminadas para preencher lacunas na produção de conhecimento e potencializar situações em que acordos comerciais efetivamente contribuam para a conservação da biodiversidade e para o fortalecimento de comunidades locais. Sobretudo, é imprescindível considerar que a política em questão se insere num contexto mais amplo, em que as comunidades tradicionais que mais dependem dos recursos da sociobiodiversidade ainda lutam pelo direito ao seu próprio território. Portanto, consideramos que os processos envolvendo direitos referentes a conhecimento tradicional associado a patrimônio genético são parte da luta histórica que esses povos e comunidades travam por seus direitos territoriais.

 

Como citar este artigo

PORRO, Roberto; PORRO, Noemi. Desafios no acesso ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 36, 2023. Disponível em: https://itaucultural.org.br/secoes/observatorio-itau-cultural/conhecimento-comunidade-tradicional-lei-biodiversidade. Acesso em: [data]

 

Roberto Porro é engenheiro agrônomo e antropólogo, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental e docente do Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Noemi Sakiara Miyasaka Porro é antropóloga e docente do Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas da UFPA.

 

Referências

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[1] Diegues et al. (1999) sintetizam o conceito de comunidade tradicional: “[...] grupos humanos diferenciados sob o ponto de vista cultural, que reproduzem historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base na cooperação social e relações próprias com a natureza. Essa noção refere-se tanto a povos indígenas quanto a segmentos da população nacional, que desenvolveram modos particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos” (DIEGUES et al., 1999, p. 22). O Decreto no 6.040/2007 instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento dos Povos e Comunidades Tradicionais. Em seu artigo 3o, inciso I, adotou-se a seguinte definição para povos e comunidades tradicionais: “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição” (BRASIL, 2007).

[2] Conhecimento tradicional é o conhecimento, know-how, habilidades e práticas que são desenvolvidos, sustentados e transmitidos de geração em geração dentro de uma comunidade, muitas vezes formando parte de sua identidade cultural ou espiritual (WIPO, 2015).

[3] De acordo com a Lei no 13.123/2015, artigo 2o, inciso I, patrimônio genético consiste em “informação de origem genética de espécies vegetais, animais, microbianas ou espécies de outra natureza, incluindo substâncias oriundas do metabolismo destes seres vivos”.

[4] O Protocolo de Nagoya é um acordo complementar à CDB, estabelecido na X conferência das partes (COP), em 2010, e que passou a vigorar em 2014. Fornece uma estrutura legal transparente e estabelece obrigações essenciais para que as partes contratantes tomem medidas em relação ao acesso a recursos genéticos, repartição de benefícios e conformidade, particularmente em situações nas quais os recursos genéticos são transferidos para outro país. A carta de ratificação da participação do Brasil no protocolo foi assinada pelo presidente da República em 4 de março de 2021.

[5] A Lei no 13.123/2015, art. 2o, inciso II, define conhecimento tradicional associado como: “informação ou prática de população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional sobre as propriedades ou usos diretos ou indiretos associada ao patrimônio genético”.

[6] Conforme definição da Organização Mundial de Propriedade Intelectual, a patente é um direito exclusivo por uma invenção, sendo produção ou processo que oferece uma nova solução técnica para um problema. Disponível em: https://www.wipo.int/patents/en/#:~:text=A%20patent%20is%20an%20exclusive,public%20in%20a%20patent%20application.

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