Cultura digital e direitos autorais: da liberdade artística à IA
O texto de Marcos Wachowicz aborda a importância da regulação dos direitos autorais quanto a obras artísticas produzidas por inteligência artificial (IA)
Publicado em 10/11/2023
Atualizado às 11:53 de 29/12/2023
Marcos Wachowicz
Resumo
O ano de 2023 é o marco da massificação do uso da inteligência artificial (IA), tal como o ano de 1995 é lembrado como o do boom da internet, que criou a sociedade informacional. A liberdade artística sempre se utilizou e se apropriou das novas tecnologias na produção e na circulação de bens no ambiente da internet, dando origem a uma nova cultura digital. Porém, com o recente uso de aplicativos de IA no processo de criação artística, novas questões surgiram no tocante à atribuição de autoria da obra produzida por IA generativa.
A internet, desde o início do século XX, é responsável pela forma com que o ser humano se comunica, se informa e se expressa num ambiente hiperconectado. Mais do que o acesso a obras raras escritas, ela contém o germe da nova invenção, da descoberta, cria ou possibilita a criação do novo, transforma, circula e permeia todos os universos humanos, desde as esferas econômica, social e política até os planos éticos, culturais e ambientais.
Vivemos numa sociedade na qual as novas tecnologias da informação têm um papel central em todos os modos de interação social, produção cultural e desenvolvimento econômico, em que a aquisição, o armazenamento, o processamento, a transmissão, a distribuição e a disseminação de conhecimento desempenham um papel central na atividade econômica, na criação de riquezas e na definição da qualidade de vida dos cidadãos e das suas práticas culturais.
Com a massificação da internet, inicia-se a denominada sociedade informacional, que se caracteriza pela criação e conexão de todos os tipos de redes informáticas, denominadas por Pierre Lévy (2010, p. 92) como “o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial de computadores e das memórias dos computadores”.
Com a internet, o ser humano é potencialmente emissor e receptor em um ambiente digital, cuja criação só foi possível por meio de programas de computador. Os avanços tecnológicos dos computadores, o aumento da capacidade de armazenamento e processamento, a miniaturização de seus elementos físicos internos de funcionamento e processamento da informação e, principalmente, a fusão do processo de informação com novas tecnologias de comunicação são exemplos clássicos do desenvolvimento de uma nova cultura digital, ou cibercultura, como descrita por Lévy.
A liberdade artística no uso das tecnologias digitais
A importância da produção e da circulação de bens culturais existentes na internet faz com que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, ganhe novos contornos e apresente novas questões, como a divisão que a nova tecnologia gera entre quem a possui e quem não a detém.
Na sociedade informacional, a questão da inclusão tecnológica é também uma questão de inclusão social e cultural. Portanto, a lacuna no acesso digital entre quem detém a tecnologia da informação e quem não a possui é superior, em quantidade e qualidade, ao hiato referente a qualquer outro avanço tecnológico ocorrido na história da nossa civilização.
Na sociedade informacional, a questão da inclusão tecnológica é também uma questão de inclusão social e cultural.
A restrição do direito humano à liberdade de receber e transmitir informações ou ideias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras, afeta também o direito humano da liberdade estabelecido no artigo XXVII da DUDH, a saber: “Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948).
Na medida em que a pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural e participar do progresso científico e de seus benefícios, é dever do Estado garantir sua promoção e o seu acesso. O artigo XXVIII da DUDH afirma com clareza ainda maior: “Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados” (idem).
Desta forma, é inexorável a responsabilidade e participação ativa do Estado na superação da distância digital, em parceria com as universidades, as associações de direito e as ONGs, cujos esforços de autorregulamentação por meio de comunidades independentes muito têm realizado em prol da efetivação desse direito.
Contudo, a participação da sociedade civil não isenta o Estado do seu papel de protetor dos direitos humanos por meio de políticas públicas e da criação de instrumentos que viabilizem aos cidadãos o efetivo acesso à informação e à cultura, segundo o que consta no artigo 30[1] da declaração, também em termos digitais.
O uso de aplicativos de inteligência artificial (IA) no processo de criação artística
A convergência de mídias para a internet com a conversão digital e a criação de ambientes virtuais imersivos, como o metaverso, as redes sociais e as plataformas de streaming, permitiu o surgimento de novas formas de comunicação na sociedade informacional (ASCENSÃO, 2022). Os impactos das novas tecnologias de IA nos planos econômico, social, cultural e ambiental são questões que vêm sendo incorporadas ao processo criativo de bens artísticos e culturais. Os reflexos dessa tecnologia são mais visíveis na produção artística e cultural, como na música e no cinema.
Em um mundo cada vez mais automatizado, era apenas questão de tempo até que o ramo da criação de obras artísticas também fosse tomado por esse fenômeno.A criação de obras por meio de aplicações de IA é um tópico que entrou muito em voga nos últimos anos, mas, na verdade, trata-se de uma questão debatida desde a concepção do primeiro computador, com os detalhes da discussão evoluindo com o tempo.
Embora os impactos da tecnologia de IA sejam objeto crescente de estudos, percebe-se agora, contudo, um novo elemento tecnológico, que são os aplicativos de IA, utilizados na criação e na produção de bens culturais
Os aplicativos de IA são projetados para imitar a maneira como o cérebro humano processa informações, utilizando algoritmos de processamento de máquina que podem analisar grandes quantidades de dados e identificar padrões complexos (WACHOWICZ; GONÇALVES, 2019). Esses algoritmos, que estão sendo cada vez mais utilizados por uma variedade de indústrias criativas na produção de conteúdo na internet, permitem que os sistemas de IA sejam treinados para reconhecer e responder a diferentes entradas de dados, aprimorando sua precisão e sua eficácia ao longo do tempo.
Embora os impactos da tecnologia de IA sejam objeto crescente de estudos, percebe-se agora, contudo, um novo elemento tecnológico, que são os aplicativos de IA, utilizados na criação e na produção de bens culturais.
Deste modo, a cultura digital é influenciada pelas tecnologias digitais, que estão em constante evolução, assim como pelas práticas culturais e sociais, em constante mudança, compondo um fenômeno global presente em todas as partes do mundo e que se faz cada vez mais relevante em nosso cotidiano.
Com a massificação de seu uso, os aplicativos de IA se tornaram uma parte cada vez mais importante da cultura digital. Para compreender sua presença na cultura digital, é necessário entender que esses aplicativos são construídos por seres humanos e, portanto, refletem seus valores, preconceitos e perspectivas. Eles podem ser usados para aumentar a eficiência, reduzir custos e melhorar a experiência do usuário, mas também podem perpetuar desigualdades e discriminações já existentes.
Assim, é importante que os aplicativos de IA sejam construídos de forma ética e transparente, para que os usuários possam confiar em suas decisões e compreender como elas foram tomadas. Além disso, é necessário que as pessoas sejam educadas sobre os limites e as possibilidades desses aplicativos, para que possam utilizá-los ética e conscientemente na produção de conhecimento e de bens culturais.
Para compreender o uso de aplicativos de IA, é importante entender o que ela é e como funciona. A inteligência artificial é um campo da ciência da computação que busca criar sistemas que podem realizar tarefas que exigem normalmente inteligência humana, como reconhecimento de voz, visão computacional, processamento de linguagem natural e tomada de decisão. Na cultura digital, os aplicativos de IA podem ser usados para uma série de propósitos, como a análise de dados de usuários para personalizar conteúdos e anúncios, e a criação de produtos (imagens, músicas, audiovisuais) para interagir com as pessoas. Os aplicativos de IA têm um impacto significativo na produção e na difusão de bens culturais. Algumas das maneiras pelas quais esses aplicativos alcançaram a indústria cultural incluem:
●Criação de conteúdo: os aplicativos de IA podem ser usados para criar conteúdo cultural, como música, arte e literatura. Por exemplo, um aplicativo de criação de música pode gerar músicas completas a partir de um conjunto de dados de entrada. Isso pode ajudar a manter a produção de novas obras culturais, permitindo que os criadores explorem novas possibilidades e experimentem novas formas de expressão.
●Melhoria da eficiência na produção: a IA pode ser usada para automatizar tarefas repetitivas na produção de bens culturais.
●Personalização de conteúdo: trata-se de um dos principais efeitos dos aplicativos de IA na produção e na difusão de bens culturais, envolvendo a capacidade de tais aplicativos de adaptar o conteúdo aos interesses de cada indivíduo e, desta forma, influenciar sua escolha como usuário de uma plataforma de conteúdo.
Por outro lado, o uso de aplicativos de IA no próprio processo criativo poderá possibilitar novas formas de expressão artística, que serão fruto de uma criatividade informacional sempre ligada ao uso das tecnologias digitais. Das inúmeras possibilidades, destacamos três:
●Arte generativa: trata-se de arte criada através do uso de algoritmos e de regras definidas pelo artista. A IA generativa é usada para gerar variações infinitas de uma imagem, criando padrões e formas únicas que não poderiam ser obtidas de outra maneira.
●Edição de imagens: a IA é usada para criar imagens manipuladas, alterando seu conteúdo, adicionando efeitos visuais e até mesmo criando imagens a partir de imagens textuais.
●Edição de músicas: usando algoritmos de processamento de máquina que analisam dados musicais existentes e reconhecem padrões musicais, o aplicativo de IA é capaz de compor uma música original que segue esses padrões e, potencialmente, de criar novos padrões musicais. Além disso, a IA poderá ser usada para ajudar com tarefas específicas relacionadas à música, como transcrição de partituras e identificação de notas e acordes.
Em nível de produção artística, a IA poderá ser usada para automatizar processos repetitivos, liberando o artista para concentrar-se em tarefas que exijam mais do seu processo criativo.
A atribuição de autoria da criação artística produzida por IA
A questão da atribuição de autoria da obra de arte produzida por meio de IA será mais complexa à medida que a participação do autor humano se tornar quase indetectável no processo criativo, restando somente o uso da criatividade informacional do aplicativo de IA. Ainda não há propostas consolidadas para lidar com essa questão no cenário internacional, mas, desde a metade de 2018, a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi) tem promovido notáveis esforços para fomentar a discussão e instigar possíveis consensos, especialmente entre especialistas e governos, para a criação de políticas públicas sobre propriedade intelectual e inteligência artificial (WIPO, 2019).
Ao admitir que a criação artística de uma obra de arte fruto da aplicação de IA poderia ser protegida pelo direito autoral, a primeira proposta afasta-se da visão antropocêntrica e não considera a criatividade como uma capacidade exclusivamente humana. Com base na capacidade e liberdade artística do autor de fazer uma adição que vá além das inspirações e das experiências da pessoa, porém, seria então possível falar de uma criatividade informacional fruto de uma IA generativa (GUADAMUZ, 2017).
A segunda proposta, dentro de uma visão antropocêntrica, atribuiria a proteção pelo direito autoral ao desenvolvedor do aplicativo de IA da obra produzida ou ao usuário que treinou a capacidade do algoritmo de produzir determinado tipo de obra, ainda que não tenham eles contribuído com qualquer esforço intelectual ou criativo na produção da obra fruto da IA. Para efetivar tal proposta, seria necessária a criação de um direito conexo como forma de remuneração ao titular (desenvolvedor ou usuário).
A terceira proposta, dentro da perspectiva do domínio público, sugere que a obra intelectual gerada por IA estaria livre, sem restrições de uso por qualquer pessoa que quisesse utilizá-la, transformá-la ou reproduzi-la. Assim como não há direito autoral sobre obra da natureza, por analogia, também não haveria sobre a obra da máquina, que, do ponto de vista econômico, seria de uso livre e gratuito.
É preciso ficar claro que somente uma solução adequada, fruto de uma única modalidade de direito mais abrangente, dará segurança jurídica e facilitará a tutela das obras geradas por aplicações de IA como um conjunto, afetando especificamente o mercado de desenvolvimento de inteligências artificiais e evitando a insegurança que existe hoje na indústria da inovação, a qualcostumaseguir o caminho da proteção por segredos de negócio em vez de o do registro de programas de computador (WACHOWICZ; GRAU-KUNTZ, 2021).
É preciso ficar claro que somente uma solução adequada, fruto de uma única modalidade de direito mais abrangente, dará segurança jurídica e facilitará a tutela das obras geradas por aplicações de IA como um conjunto
A regulação adequada do uso da tecnologia de IA poderá auxiliar em muitos setores culturais, analisando dados para identificar tendências e padrões que possam servir para que governos e empresas compreendam melhor o comportamento de seus cidadãos e clientes e, desta forma, possam melhorar os produtos e serviços culturais, personalizando-os com base em comportamentos individuais e coletivos. Para isso, é fundamental que as empresas e os desenvolvedores sejam responsáveis e transparentes em relação ao uso de aplicativos de IA na cultura digital, levando em conta seus possíveis impactos sociais, éticos e culturais.
Marcos Wachowicz é professor de direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor em direito pela UFPR e mestre em direito pela Universidade Clássica de Lisboa, em Portugal. Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Autoral e Industrial (Gedai), da UFPR. Professor da Cátedra de Propriedade Intelectual no Institute for Information, Telecommunication and Media Law (ITM), da Universidade de Münster, na Alemanha. Docente do curso de políticas públicas e propriedade intelectual do Programa de Mestrado em Propriedade Intelectual na modalidade a distância na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), na Argentina.
Referências
ASCENSÃO, José de Oliveira. Estudos de José de Oliveira Ascensão sobre direito autoral e sociedade informacional.1. ed. Curitiba: Ioda, 2022.
GUADAMUZ, Andres. Do androids dream of electric copyright? Comparative analysis of originality in artificial intelligence generated works. Intellectual Property Quarterly, v. 2, 2017.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 2010.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em:https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 23 de ago. 2023.
WACHOWICZ, Marcos; GONÇALVES, Lukas Ruthes. Inteligência artificial e criatividade: novos conceitos na propriedade intelectual. Curitiba: Gedai/UFPR, 2019.
WACHOWICZ, Marcos; GRAU-KUNTZ, Karin (org.). Estudos de propriedade intelectual em homenagem ao prof. dr. Denis Borges Barbosa.Curitiba: Ioda, 2021.
[1]“Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de maneira a envolver para qualquer Estado, agrupamento ou indivíduo o direito de se entregar a alguma atividade ou de praticar algum ato destinado a destruir os direitos e liberdades aqui enunciados” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948).