Indenização por direitos culturais: o caso do povo indígena Mẽbêngôkre Kayapó
A reparação de danos espirituais no âmbito da efetivação dos direitos culturais dos povos indígenas é explorada no texto de Mayalu Txucarramãe e Lucas Cravo
Publicado em 03/11/2023
Atualizado às 11:53 de 29/12/2023
por Mayalu Txucarramãe e Lucas Cravo
Resumo
Este artigo tem por objetivo discutir como as normas brasileiras viabilizam a solução de um conflito sensível no sistema de justiça, no qual diferentes ideias sobre o que é justiça se encontram. Analisamos um caso específico, o processo extrajudicial instaurado depois da queda do voo 1907 da Gol na Terra Indígena Capoto-Jarina, localizada no estado de Mato Grosso. Durante o processo, que durou mais de três anos e acabou por conceder uma indenização especial ao povo indígena Mẽbêngôkre Kayapó, as partes envolvidas chegaram a um acordo sobre os danos culturais, categoria que foi discutida ao longo do processo com outros nomes, como danos sociais ou danos espirituais.
Para esta publicação com o Observatório Itaú Cultural, apresentamos um texto decorrente de trabalhos monográficos que realizamos individualmente, intitulados: i) “Màdkà 737 da Gol, voo 1907: ‘Mekarõ Nhurukwa’ no território Mẽbêngôkre, Terra Indígena Capoto-Jarina – MT”; e ii) “Fronteiras improváveis entre tempos e direitos: constitucionalismo compartilhado entre os sistemas de justiça estatal e Mẽbêngôkre Kayapó no acidente do Gol 1907”. O primeiro foi produzido, apresentado e defendido por Mayalu Kokometi Waurá Txucarramãe (2019) para a conclusão de seu curso de graduação em geografia na Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat). O segundo foi uma dissertação desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB) por Lucas Cravo de Oliveira (2020). O texto aqui apresentado tem o objetivo de colaborar no debate público acerca das possibilidades colocadas pelo sistema de justiça e pelo constitucionalismo brasileiro quanto a uma abertura normativa para a compreensão de distintos mundos cognitivos ao se administrar um conflito pelo ordenamento jurídico brasileiro. O conflito teve início com a queda de um avião em meio ao território do povo Mẽbêngôkre Kayapó.
Neste estudo de caso, optamos por utilizar instrumentos, orientações e abordagens da história, da geografia e da antropologia para compreender um problema do direito: como esse campo do conhecimento promove uma tentativa de administração de conflito. Tentamos apresentar questões sensíveis e complexas decorrentes do constitucionalismo brasileiro. O mundo real é constantemente mutável, diverso e complexo. O sistema jurídico é convocado para lidar com conflitos que nem sempre foram previstos de forma precisa nas leis existentes. Entender casos inesperados com profundidade requer abordagens que vão além da visão limitada do direito. O documento central que compõe o arquivo relacionado ao caso Gol é o Inquérito Civil (IC) 1.20.004.000070/2016-552. Nele estão incluídos os pareceres técnicos realizados pela perícia antropológica do Ministério Público Federal (MPF), o termo do acordo extrajudicial e o registro das etapas pelas quais esse processo progrediu.
O caso
Em 29 de setembro de 2006, a uma altitude de aproximadamente 11 mil metros, ocorreu um acidente incomum no espaço aéreo brasileiro envolvendo a colisão de duas aeronaves. A empresa norte-americana Excel Aire, que operava serviços de táxi aéreo, estava conduzindo um jato modelo Legacy 600 em uma rota comercial doméstica. Na mesma direção, porém em sentido contrário, a companhia Gol Linhas Aéreas S.A. estava operando o voo 1907. A asa do jato rasgou a fuselagem da outra aeronave, resultando em um acidente amplamente divulgado na imprensa nacional e internacional.
Em relação ao jato Legacy, a aeronave não sofreu danos significativos, o que permitiu que continuasse voando até realizar um pouso de emergência em uma base militar próxima à região da colisão, localizada no estado do Pará. No entanto, o avião operado pela Gol, um Boeing 737, caiu em uma área da Floresta Amazônica, próxima ao Rio Xingu, dentro dos limites da Terra Indígena Capoto-Jarina. Infelizmente, todas as pessoas a bordo da aeronave faleceram imediatamente, totalizando 154 vítimas.
Ensaio Artístico Revista Observatório 32 | Denilson Baniwa - Sem título (imagem: Denilson Baniwa)
Para a comunidade indígena Mẽbêngôkre Kayapó, a área afetada pelo acidente se tornou um local sagrado, conhecido como Mekarõ Nhurukwa em sua língua, o que pode ser traduzido aproximadamente como “casa dos espíritos”. Como houve um grande derramamento de sangue no local em decorrência do acidente, o universo espiritual desse povo foi violado, o que ocasionou implicações significativas em sua vida cotidiana. A área afetada, que abrange aproximadamente 1.200 quilômetros quadrados, não pode mais ser habitada, o que demandou a reorganização de uma aldeia próxima ao local do acidente. Atividades como pesca, caça, cultivo e estabelecimento de aldeias não poderão mais ocorrer nessa região.
Em 2013, os Mẽbêngôkre Kayapó mobilizaram o MPF para que a Gol retirasse os destroços do avião e reparasse os danos causados. Um inquérito civil público foi instaurado para investigar a responsabilidade da empresa. Após extensas negociações, em março de 2017 um acordo extrajudicial foi firmado, prevendo indenizações tanto materiais quanto imateriais, abrangendo os danos ambientais e culturais. Especificamente, o dano causado à ordem espiritual do povo Mẽbêngôkre Kayapó foi incluído entre os prejuízos a serem compensados. A Gol concordou em pagar uma indenização de 4 milhões de reais, encerrando, assim, suas obrigações perante o povo Mẽbêngôkre Kayapó. Além disso, ficou acordado que a empresa não removeria os destroços do avião, devido aos riscos envolvidos nessa operação, que poderiam causar danos adicionais a outras áreas florestais. As informações descritas no caso constam no Termo de Acordo 01/2017 e no Inquérito Civil 1.20.004.000070/2016-552, instaurados pela Procuradoria da República – órgão que integra o MPF –no município de Barra do Garças.
Sob uma perspectiva normativa, o ordenamento jurídico brasileiro permite a convergência de diferentes concepções de justiça? Como os atores institucionais lidam com essas questões? Na administração de conflitos desse tipo, os diferentes significados de justiça são tratados de forma equitativa? Ao buscar essa convergência, nem sempre é possível traduzir expectativas de direitos distintas em uma linguagem comum.
A participação indígena no resgate
Devido à gravidade do acidente, ficou claro para todos que a operação de resgate não seria destinada à busca por sobreviventes, mas sim pelos corpos das vítimas. O avião Boeing do voo 1907 da Gol sofreu uma destruição significativa devido à alta velocidade que a aeronave atingiu no momento da queda. É evidente que uma tragédia de tal magnitude afeta até mesmo os oficiais treinados e preparados para lidar com qualquer situação. O mesmo se aplica ao povo Mẽbêngôkre, que vivia na área onde o Boeing caiu. Alessandro Mariano Rodrigues, que participou da operação de resgate junto com os guerreiros indígenas, relata como foi informado sobre o acidente:
Já estava em casa quando Megaron entrou em contato comigo dizendo que seu povo havia avistado “um avião muito grande caindo do céu”, nas mediações da aldeia Piaraçú. Ele me pediu ajuda mais uma vez. Queria saber do ocorrido, se havia ou não alguma aeronave desaparecida naquela região. Tentei contato com o quartel de Alta Floresta, mas não sabiam ainda de nada. Apenas me disseram que um militar da base aérea do Cachimbo havia entrado em contato para saber de alguma ocorrência envolvendo uma aeronave daquele porte, na região de Peixoto de Azevedo (RODRIGUES, 2022, p. 36).
Ensaio Artístico Revista Observatório 32 | Denilson Baniwa - Aldeia Cidade (imagem: Denilson Baniwa)
Durante uma entrevista realizada para o seu trabalho monográfico, Mayalu Txucarramãe conversou com Mytxan Metuktire, um dos guerreiros indígenas que participaram do resgate, que revelou ter apenas 19 anos na época, sendo o mais jovem entre os experientes indígenas. Ele mencionou que o compadre Megaron, o tio Bedjai – por ele referidos como Megaron Txucarramãe e Bedjai Txucarramãe – e sua mãe não queriam que ele fizesse parte do grupo devido à sua idade. No entanto, ele persistiu e acabou acompanhando o grupo. Após a localização dos destroços, o próximo passo para os militares foi abrir uma clareira na mata para facilitar a entrada da equipe. Enquanto isso, os indígenas se concentraram inicialmente em estabelecer comunicação para buscar possíveis formas de ajuda. Durante 50 dias de operação, os povos indígenas foram fundamentais para realizar as buscas empreendidas após o acidente. Para os indígenas, a maior tragédia já vivenciada pelas comunidades da Terra Indígena Capoto-Jarina deixa um registro na memória coletiva e na própria territorialidade. A área afetada não sofreu alterações desde o acidente, mantendo vestígios que remetem a essa triste ocorrência.
A concretização dos direitos indígenas estabelecidos na Constituição brasileira ocorreu devido à ação ativa de diversos atores sociais envolvidos no caso. Foram os Mẽbêngôkre Kayapó que mobilizaram a empresa Gol, buscando o respeito ao seu direito cultural, especialmente no que se refere à criação da Mekarõ Nhurukwa, um local sagrado, e as consequências disso. Uma vez criado esse local sagrado, os indígenas não poderiam mais retornar àquela localidade, ficando impedidos de caçar, fazer roçado ou até mesmo morar no lugar, uma vez que ele passou a ser habitado por espíritos que lá permanecerão. Embora esse direito estivesse protegido pelo texto constitucional, a empresa inicialmente se recusou a atender às demandas dos indígenas, o que os levou a procurar o MPF.
A concretização dos direitos indígenas estabelecidos na Constituição brasileira ocorreu devido à ação ativa de diversos atores sociais envolvidos no caso. Foram os Mẽbêngôkre Kayapó que mobilizaram a empresa Gol, buscando o respeito ao seu direito cultural, especialmente no que se refere à criação da Mekarõ Nhurukwa, um local sagrado, e as consequências disso
Com a entrada do procurador Wilson Assis, foi estabelecido um canal de diálogo entre a Gol e os indígenas. Após várias reuniões e negociações, a empresa concordou em indenizá-los nos termos propostos pelos Mẽbêngôkre Kayapó. Essa conquista só foi possível devido à atuação das instituições que operam dentro do sistema de justiça. A Constituição, por si só, teria pouco significado além de uma folha de papel (LASSALLE, 1933) sem a ação comprometida desses atores. Sem eles, as instituições se tornariam apenas uma burocracia organizada, sem efetividade real.
Constitucionalismo em defesa de direitos indígenas
O caminho para chegar ao acordo extrajudicial aqui empreendido foi diverso. Houve o acidente; houve a perturbação da ordem espiritual da comunidade; houve a tentativa de diálogo pelos povos indígenas com a empresa Gol; houve, por fim, a intervenção do MPF no conflito para tentar chegar a uma solução comum. Com avanços e retrocessos, a negociação para o acordo por danos espirituais, socioculturais ou apenas culturais foi longa e só terminou em março de 2017, com a firmação do acordo que previu uma indenização no valor de 4 milhões de reais ao povo Mẽbêngokrê Kayapó, em razão dos impactos em seu universo espiritual ocasionados pela queda do avião. Em decorrência do acordo, os Mẽbêngokrê Kayapó não podem mais utilizar aquela área, interditada para fins de respeito à Mekarõ Nhurukwa agora criada.
Há conflitos que são potencialmente intratáveis, e a obtenção de um acordo capaz de satisfazer a todas as partes envolvidas dificilmente será alcançada. Neste caso, testemunhamos o esforço do constitucionalismo brasileiro evidenciado pelo artigo 123 da Constituição Federal, que determina que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. O engajamento de atores institucionais em prol do respeito aos direitos indígenas viabilizou que uma solução possível fosse estabelecida para os Mẽbêngokrê Kayapó.
Mayalu Txucarramãe é possui graduação em Licenciatura em Geografia, pela Universidade do Estado do Mato Grosso - Campus Universitário Vale do Teles Pires. Atualmente é secretária executiva do Conselho Distrital de Saúde Indígena Kaiapó do Mato Grosso, do Distrito Sanitário Especial Indígena-Kayapó/MT. É neta do Líder Cacique Raoni e idealizadora e fundadora do Movimento Mebengokrê Nyre (Movimento Jovens Indígena)
Lucas Cravo é advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal (OAB/DF). Doutorando em direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em direito, Estado e Constituição pela mesma instituição (2020), com período de visita técnica na Universidade Flinders. Graduado em direito pela Universidade Federal Fluminense [UFF (2016)], com período de mobilidade acadêmica na Universidade de Coimbra. Coordena a estratégia de advocacy em energia do Instituto ClimaInfo (2023-atual). Consultor jurídico no Instituto Amazônia Alerta (2023-atual). Assessor jurídico da organização indígena Munduruku Dace (2023-atual). Professor na especialização em direitos e políticas para povos indígenas da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro [PUC-Rio (2022-atual)]. Foi consultor jurídico da Conservação Internacional – Brasil (2021-2023). Foi advogado no Departamento Jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil [Apib (2020-2023)]. Atuou na Secretaria-Geral de Articulação Institucional da Defensoria Pública da União [DPU (2018-2020)]. Pesquisador no campo da história constitucional, tendo interesse nas áreas de interlocução entre o direito, as ciências sociais e a história, com ênfase nas abordagens empíricas de pesquisa e as relações de interlegalidade produzidas a partir da administração institucional de conflitos socioambientais. Advogado nas áreas de direito constitucional, direitos humanos e direitos indígenas.
Referências
CRAVO DE OLIVEIRA, Lucas. Fronteiras improváveis entre tempos e direitos: constitucionalismo compartilhado entre os sistemas de justiça estatal e Mẽbêngôkre Kayapó no acidente do Gol 1907.Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2020.
LASSALLE, Ferdinand. Que é uma constituição? São Paulo: Edições e Publicações Brasil, 1933.
RODRIGUES, Alessandro Mariano. O Kayapó (Mẽtyktire) e o fogo: narrativas e práticas observadas no tempo e no espaço. Ponta Grossa: Atena, 2022.
TXUCARRAMÃE, Mayalu Kokometi Waurá. Màdkà 737 da Gol voo 1907: “Mekarõ Nhurukwa” no território Mẽbêngôkre, Terra Indígena Capoto Jarina – MT.Monografia (Licenciatura em Geografia) – Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), Colíder, 2019.