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Revista Observatório 30 | Do que precisamos, afinal?

Revista Observatório 30 | Do que precisamos, afinal?

Maria Carolina Vasconcelos analisa a política cultural voltadas para as artes da cena para além das políticas de fomento dos editais.

Publicado em 06/12/2021

Atualizado às 17:08 de 15/08/2022

[acesse o índice da Revista Observatório 30]

por Maria Carolina Vasconcelos Oliveira - https://orcid.org/0000-0002-0393-1690

A pandemia de covid-19 reacendeu, em diversos países, discussões sobre as condições de trabalho na cultura e nas artes. Trouxe à tona uma questão que, em alguns momentos históricos, ganha o debate público, para logo depois ser invisibilizada por outras agendas: do que precisam os trabalhadores da cultura e das artes, afinal? Apenas de medidas contingenciais em situações de crise ou, sobretudo, de um olhar mais sistemático do Estado sobre as especificidades de seu fazer, na lógica dos direitos básicos e de uma política cultural mais orgânica? 

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Não à toa, em países como Portugal e Espanha, a questão dos impactos da pandemia no setor cultural reavivou discussões sobre um estatuto específico para o trabalho artístico e cultural – cuja principal referência ainda segue sendo a lei de intermitência francesa. No Brasil, essa questão rearticulou o debate sobre o Sistema Nacional de Cultura (SNC), nossa tentativa mais recente de política cultural estrutural, que foi completamente desmantelada nos últimos anos. Uma pergunta que ouvimos bastante: se tivéssemos o SNC operando e políticas culturais mais estruturais, os efeitos da pandemia não teriam sido menores e a própria articulação de ações emergenciais mais simples?
Não acho banal também o fato de a pandemia ter desencadeado um breve lapso de consciência acerca dos limites da ideologia liberal, segundo a qual tudo poderia ser resolvido na lógica do mercado ou por meio de investimentos para aumentar individualmente o capital dos trabalhadores, como também pressupõem algumas correntes da economia criativa. Infelizmente, sabemos que isso também tende a ser rapidamente esquecido. A      questão é que, neste momento, como em outros de crise aguda, fica bastante evidente que é o Estado quem precisa atuar para "salvar" as pessoas, as economias e as instituições. Não é o mercado que irá fazê-lo.

E constatamos que são os Estados com maior capacidade de investimento e os governos com maior capacidade de planejamento os que mais conseguem atenuar os efeitos da crise.

No país, infelizmente, estamos aprendendo pelo contraexemplo, testemunhando os efeitos nefastos de um governo completamente incapaz. Isso é válido para todos os setores, e não seria diferente com a cultura.
A meu ver, é impossível dissociar qualquer reflexão específica sobre as artes dessa discussão mais ampla acerca do papel e da capacidade de planejamento do Estado. De qualquer maneira, aterrissando mais especificamente nas artes cênicas, sabemos que elas provavelmente estão entre os campos de produção social (não estritamente econômica) mais afetados pela pandemia. Em primeiro lugar, porque os setores artísticos, de forma geral, como se sabe, costumam ser especialmente sensíveis a contextos de contingência econômica, já que não são considerados atividades de primeira necessidade nem pelos Estados nem pelos "consumidores" finais. Depois, porque as artes cênicas, de forma específica, dependem mais de investimentos públicos – com exceção de algumas linguagens que conseguem se garantir no mercado, há um gap entre a capacidade de arrecadação em bilheterias e o custo das produções. E, por último, porque as artes cênicas historicamente tiveram seu significado construído sobre a ideia da presença, do encontro real entre espectadores e realizadores, além de envolverem muito trabalho coletivo mesmo em casos de cenas solo, o que torna o imperativo do isolamento um tanto mais impactante.

Faixa de areia e mar, com algumas pedras. Na areia tem um corpo deitado e desfocado. Mais ao fundo o céu ao entardecer com algumas estrelas.
"Escavar o Escuro" (2015), Daniela Paoliello (imagem Daniela Paoliello) 

 

Ilustro essa breve reflexão com alguns dados sobre as condições de vida e de trabalho das pessoas que atuam nesse setor, a fim de enfatizar a necessidade de um tratamento mais sistemático por parte do Estado, que vá além de programas emergenciais em momentos de crise. Para isso, utilizo microdados da pesquisa Impactos da covid-19 na economia criativa, desenvolvida pelo Observatório da Economia Criativa da Bahia, gentilmente cedidos pelos coordenadores Carlos Paiva e Daniele Canedo. A pesquisa coletou respostas de 1.910 indivíduos e organizações culturais do Brasil sobre as suas condições de trabalho e os impactos da pandemia entre março e julho de 2020 – ou seja, antes mesmo do início dos repasses da Lei Aldir Blanc. 

Dentre os respondentes que se dedicam às artes cênicas (aqueles que declararam atuar primária ou secundariamente nos campos de teatro, dança, circo ou artes de rua), mais de 54% afirmaram que pelo menos 75% de sua renda eram provenientes das atividades culturais (como apresentações ou docência). Ou seja, trata-se de um contingente de pessoas que, de fato, depende de suas atividades técnicas ou artísticas para sobreviver. Um resultado já esperado, mas ainda assim admirável, foi que menos de 20% desses respondentes são servidores públicos ou empregados com carteira assinada, sendo 73% autônomos/freelancers. 

Além de variáveis relacionadas diretamente à renda, a pesquisa traz outras que podem servir para diferenciar grupos com melhores ou piores condições de vida e de trabalho. Por exemplo, mostra que menos de 50% dos entrevistados das artes cênicas contribuem para a previdência. Para se ter um parâmetro, em 2019, cerca de 63% dos trabalhadores brasileiros contribuíram para o INSS, segundo a Pesquisa nacional por amostra de domicílios (Pnad). Chama a atenção o fato de encontrarmos uma proporção menor de não contribuintes entre os homens (cerca de 37% não contribuem, contra 42% das mulheres) e os brancos (cerca de 38% não contribuem, contra 43% dos pretos e pardos).      No mesmo sentido, apenas 25% dos trabalhadores das artes cênicas declararam possuir seguro de saúde, e, entre os que não possuem, novamente temos uma proporção menor de pessoas do gênero masculino e brancas. São 37% de brancos e 63% de pessoas de outras cores dentro desse grupo mais vulnerável. Ou seja, a proporção de pessoas não masculinas e não brancas é maior no grupo mais vulnerável. 

Em relação aos impactos da covid-19 e do isolamento, a Pnad mostra que 86% dos trabalhadores das artes cênicas declararam ter tido mais da metade de suas atividades de trabalho canceladas no mês de abril de 2020 – proporção que sobe para mais de 89% no mês de maio. Trata-se de um valor maior do que a média encontrada para todos os setores culturais, o que sugere que o impacto nas artes cênicas tenha sido ainda mais drástico. A pesquisa também indagou por quanto tempo os respondentes conseguiriam se manter no caso de uma suspensão total de suas fontes de receita e, entre os trabalhadores das artes cênicas, quase 75% responderam somente 1 mês ou entre 1 e 3 meses. Ou seja, menos de um quarto teria reservas para um período superior a 3 meses, o que também diz muito sobre a vida do trabalhador por projeto (freelancer) no setor.

Entre aqueles que afirmaram ter capacidade de se manter somente por 3 meses, a proporção de pessoas do gênero feminino e não binárias é 25% maior que a do gênero masculino, e a proporção de pessoas não brancas é 15% maior que a de pessoas brancas.

Além de defender a necessidade de tratamento mais sistemático e estrutural por parte do Estado para as artes cênicas e os seus profissionais, considero fundamental tomarmos consciência de que a possibilidade de "reinventar-se" no contexto pandêmico – apropriar-se das ferramentas digitais, criar novos modelos de trabalho e de produção, migrar para o mundo on-line – está longe de ser uma realidade para todos os trabalhadores e trabalhadoras.

Ela é atravessada por muitos marcadores de desigualdade, e esse processo certamente irá desencadear cisões internas bastante profundas entre aqueles que conseguiram ou não "sobreviver" (inclusive simbolicamente) à pandemia.    

As possibilidades dessa reinvenção são muito mais limitadas para os mais pobres, que precisaram arrumar trabalho em outras áreas para garantir sua subsistência; assim como para mulheres mães (especialmente de famílias monoparentais), que enfrentaram longos períodos sem escola para os filhos. Na área do circo, em que trabalho, vimos muitos artistas de rua ou de famílias que prestavam serviços para circos itinerantes que nem mesmo conseguiram concorrer a recursos da Lei Aldir Blanc. É fundamental questionarmos a ideologia      de que se trata apenas de "ser criativo", "ter uma boa ideia" ou "ser bom naquilo que se faz". 

Que a catástrofe da pandemia e a experiência inovadora dessa lei – marcada pela articulação entre os três níveis federativos e por um relativo engajamento da sociedade civil – possam se desdobrar em novas discussões e perspectivas para políticas mais sistemáticas de apoio às expressões culturais e artísticas e aos trabalhadores desses campos.

Como citar este artigo

OLIVEIRA, Maria C. V. Do que precisamos, afinal? Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 30, 2021. Disponível em: [https://www.itaucultural.org.br/secoes/observatorio-itau-cultural/revista-observatorio/do-que-precisamos-afinal]. Acesso em: [data_atual]. DOI: https://www.doi.org/10.53343/100521.30.05

 

Maria Carolina Vasconcelos Oliveira Artista circense, docente e pesquisadora em cultura e artes. É pós-doutoranda pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (IA/Unesp) e integra o Instituto Cultura e Democracia e o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).      

Referência

CANEDO, Daniele Pereira; PAIVA NETO, Carlos Beyrodt (coord.). Pesquisa impactos da covid-19 na economia criativa. Salvador: Observatório da Economia Criativa; Santo Amaro: Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, 2020.

 

Expediente da Revista Observatório 30

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