Acessibilidade
Agenda

Fonte

A+A-
Alto ContrasteInverter CoresRedefinir
Agenda
Revista Observatório 31 | Carta ao leitor

Revista Observatório 31 | Carta ao leitor

Carta ao Leitor por Ana Paula Guljor, editora da Revista Observatório 31 "Arte, cultura e saúde mental"

Publicado em 29/03/2022

Atualizado às 15:51 de 15/08/2022

[acesse o índice da Revista Observatório 31]

por Ana Paula Guljor, editora da Revista Observatório 31 "Arte, cultura e saúde mental"

No ano em que comemoramos o centenário da Semana de arte moderna de 1922, a Revista Observatório Itaú Cultural lança sua 31ª edição, dedicada ao diálogo entre arte, cultura e saúde mental. Partindo do pressuposto de que as artes e as culturas são formas de construção de novas subjetividades, de resgate de identidades e publicização das histórias de vida, resistências e lutas dos povos, o diálogo destas com o campo da saúde mental permite compartilhar reflexões sobre sua interação ao longo dos séculos XX e XXI. 

A questão da saúde mental tem surgido como uma preocupação da sociedade com maior ênfase a partir da pandemia de covid-19, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020. Desde então, as intervenções artístico-culturais assumiram um lugar privilegiado na vida cotidiana como forma de expressão das angústias e de resgate de prazer e alegria. No entanto, a relação do sofrimento psíquico com as artes não começa agora. Ela pode ser identificada ao longo dos séculos em experiências socioculturais que são formas de ruptura de estigmas e reverberação de tradições que reafirmam as riquezas e mazelas sociais. 

Assim, falar de saúde mental pressupõe a compreensão de seu significado não apenas como ausência ou cura de doenças, mas como um conceito que se constitui de um arcabouço complexo de inter-relações no qual a diversidade, as dores e sua superação e o devir da existência de cada sujeito em seu ser-estar no mundo se apresentam como uma teia de vida. As culturas e as artes são ferramentas de promoção de saúde e de cuidado. 

No Brasil, seu papel estratégico tem em Osório César e Nise da Silveira personagens pioneiros, que usaram a arte como forma de intervenção para o tratamento de pessoas em sofrimento psíquico. Em uma visada na perspectiva do campo cultural, essa concepção ampliada de saúde mental pode ser reportada às antropofagias de 1922, um momento de inauguração libertária da luta pela ruptura com o conservadorismo e com as tradições patriarcais e elitistas não apenas da produção artística, mas também da sociedade da época.

Em fins dos anos 1970, a reforma psiquiátrica brasileira e o movimento da luta antimanicomial, com o lema “Por uma sociedade sem manicômios”, iniciam um processo, que se perpetua nos últimos 40 anos, de desconstrução de instituições asilares como lugares de tratamento de pessoas em sofrimento psíquico em prol de uma rede de dispositivos que têm na liberdade o eixo norteador. Considerada um processo social complexo, a busca por um novo lugar social para a “loucura” tem nas artes e nas culturas um de seus pilares estruturantes. Para além de um papel terapêutico, essas estratégias vêm se configurando em uma forma de produção de novas subjetividades, de desconstrução de estigmas e afirmação da diversidade como potência. Artistas nas diversas áreas e manifestações da cultura popular reconstroem as histórias de comunidades, raças, credos e anseios individuais. 

Nos dias atuais, a interação entre arte e saúde tem tido destaque cada vez maior tanto no campo cultural quanto na saúde. Em específico na saúde mental, a perspectiva de uma incidência significativa das artes na promoção, prevenção e reabilitação cognitiva tem incentivado a abertura de linhas de pesquisa no âmbito das neurociências com resultados que corroboram a hipótese de uma alteração positiva no funcionamento cerebral. A observação de aumento das interconexões neuronais, reflexo de sua influência na neuroplasticidade das células do cérebro, abre possibilidade de invenção de novas formas de pensar terapêuticas para pessoas em sofrimento psíquico. 

Em diversos países do mundo, disseminadas pelos cinco continentes de modo heterogêneo, experiências de arte e cultura são desenvolvidas como estratégias de promoção da saúde e, em muitos lugares, direcionadas ao cuidado em saúde mental. Seja no aspecto subjetivo individual, seja no que tange à melhoria da qualidade de vida de comunidades, é crescente o número de programas, projetos e pesquisas avaliativas que consideram a vivência artística como uma potente ferramenta de redução das desigualdades, aumento da resiliência das comunidades e promoção de novos modos de pensar e se relacionar com as adversidades, incluindo as presentes no sofrimento psíquico. 

Agências internacionais como a OMS reconhecem o papel das artes e da cultura na promoção da saúde e do bem-estar das populações, incentivando a criação de redes colaborativas para o desenvolvimento de estudos avaliativos sobre o impacto dessas intervenções. O incentivo à construção de políticas públicas que permitam o acesso a um cuidado não invasivo cuja incidência reverbera em grupos populacionais ao mesmo tempo que em sujeitos em sua existência singular se coloca no mundo contemporâneo como uma agenda a ser priorizada. Encontra-se em pauta a importância de análises também sobre seus impactos sociais e econômicos, reforçando a complexificação necessária para uma compreensão multidimensional dessa inter-relação entre arte, cultura e saúde mental. Essa complexidade se reflete em estratégias que se configuram desde terapêuticas prescritas por serviços de saúde até experiências socioculturais que mobilizam grupos e comunidades, reinventando formas de interação e produzindo protagonismos e inclusão.

Esta edição se propõe a resgatar formas de fazer e de pensar o cuidado em saúde mental e a reverberar esperanças de um processo civilizatório. Assim, convidamos todos a um passeio pelos diálogos da saúde mental com a ciência, com as artes e as culturas.

Ana Paula Guljor é psiquiatra, mestre e doutora em saúde pública (Fiocruz). Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fiocruz-RJ; vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme); membro da Comissão Permanente dos Direitos da População em Privação de Liberdade do Conselho Nacional dos Direitos Humanos.

Compartilhe