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Arte e ciência para enfrentar a era das incertezas

Uma análise sobre a primeira semana da programação do projeto “Cena agora”

Publicado em 29/07/2021

Atualizado às 12:24 de 24/02/2022

Por Ivana Moura

“A história mudou. A pergunta é: para qual direção?”, indaga a dançarina Júlia Abs no seu trabalho Dez, que junta palestra e partitura coreográfica. Ela encara O anjo da história, de Walter Benjamin, articulando movimentos espelhados com conceitos de arte. Dez integra a série do projeto Cena agora dedicada à ciência e sua conexão com as artes. Realizada entre 8 e 18 de julho, on-line, a programação traz cenas inéditas de dança, teatro e performance, de cerca de 15 minutos, nos quais artistas estabelecem vínculos entre as duas categorias.

A provocação veio com a expressão “Corpos reagentes, existências em crise”. Com procedimentos e abordagens específicos, o que se percebe em comum nos trabalhos e nas conversas da programação é a emergência do conceito de antropoceno (termo cunhado pelo cientista Paul Crutzen, indicando o período em que a humanidade passa a exercer um papel central na geologia e na ecologia).

As consequências socioambientais da atuação humana são exploradas nas obras artísticas. As cenas ressaltam que essa crise global exige responsabilidade ética individual e coletiva, que ela requer estratégias macro e micropolíticas.

A primeira semana da programação (de 8 a 11 de julho) começou com um diálogo potente entre a cientista Helena Nader e a artista Rejane Cantoni, com mediação do designer e gerente do Observatório Itaú Cultural Jader Rosa. Com o título “Como pensar arte e ciência em um mundo complexo?”, o encontro discutiu alguns problemas destes tempos desafiadores. “A ciência é o sal da vida”, salientou Helena. “Sonhem!”, convocou Rejane. “O obscurantismo passa”, reforçaram, instigando confiança na ciência e na arte.

Cena da performance In vitro, de Flávia Pinheiro (imagem: Thomas Lenden)

Na obra In vitro, a performer Flávia Pinheiro leva à cena as noções de bactéria e assepsia em metáforas, estéticas e combate à colonização histórica. O corpo-bactéria busca furar bolhas e traçar estratégias de contaminação e insubordinação. Com isso, a artista investiga as relações de força e de poder do neoliberalismo. A edição do vídeo produz efeitos de duplicação e mandalas e utiliza imagens de manifestações e protestos e áudios do noticiário cotidiano sobre política, recorrendo à famosa votação no Congresso para a abertura do impeachment de Dilma Rousseff.

“Os humanos do antropoceno preservam todos os mecanismos de controle e disciplina para garantir sua superioridade frente ao mundo dos micróbios da natureza.” O trabalho esbanja ironia e estímulos de percepções “fora da caixinha” nos três breves atos. Nas micronarrativas, In vitro critica o corpo colonizado e saúda a desobediência poética das bactérias insurgentes: transbactérias, queer-bactérias, nanobactérias, pós-bactérias e bactérias alienígenas.

Integrantes do Núcleo Arte e Ciência no Palco, criadores da obra A extinção é a regra; a sobrevivência é a exceção (imagem: Adriana Carui)

O Núcleo Arte e Ciência no Palco, de São Paulo, utiliza conceitos científicos como material artístico para fascinar o público. Em A extinção é a regra; a sobrevivência é a exceção, o grupo formado por Adriana Dham, Carlos Palma e Oswaldo Mendes faz um passeio não linear por alguns marcos da ciência ou das inquietações científicas, mostrando a luta de muitos pesquisadores que precisaram enfrentar as mentes em trevas de cada período para fazer valer a verdade científica.

No trabalho do grupo, Einstein defende que ciência é inteligência, sabedoria para ponderar a utilização da criação. Mário Schenberg, físico, matemático, político e crítico de arte brasileiro, preso durante a ditadura militar, convoca os jovens a perseguir o pensamento livre com coragem.

Líder na luta pelos direitos políticos das mulheres brasileiras, a bióloga Bertha Lutz representa no vídeo essa batalha contínua pelas liberdades femininas. A luta continua... O médico, epidemiologista e sanitarista brasileiro Oswaldo Cruz, que tinha fé na ciência e só desejava a saúde do povo, diz na peça uma frase que merece reflexão: “Todo homem é culpado pelo bem que não faz”. Os atores percorrem camarim, coxia e palco com criações visuais, humor e fascinantes fragmentos de ilustres curiosos. A defesa da vida e da dignidade faz desse experimento um acalento para despertar o interesse pela ciência.

O grupo Ciênica durante a apresentação do experimento Sua companhia (imagem: divulgação)

Aquecimento, instabilidade política, desinformação, pandemia. O mundo anda muito perigoso. Mas nem todos percebem o grau do problema. O experimento Sua companhia, do Ciênica – grupo de teatro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), composto de estudantes e colaboradores –, tocou a ciência a partir da posição de amigos leigos, que, depois de mais de um ano de distanciamento, resolveram se encontrar virtualmente para falar de preocupações e expectativas.

O encontro busca fortalecer vínculos afetivos e, de forma muito direta, apresenta posições corriqueiras de dúvidas em meio ao turbilhão de informações e fake news.

O jogo desenvolvido pelos personagens Atila (Leonardo Moreira), Miguel (Nico Serrano), Jaqueline (Carol Haber) e Natália (Cássia Gomes) tem um tom coloquial, com diálogos naquela pegada de saudade da aglomeração. A turma conversa sobre dúvidas e os entraves das informações, e o experimento expõe de forma simples as conexões das decisões políticas, econômicas e sanitárias que são sentidas pela população no cotidiano, em ações simples como fazer feira, pegar um transporte coletivo, tomar uma vacina.

Cena de Fábulas antropofágicas para dias fascistas: a raposa no divã, do grupo Pigmalião Escultura que Mexe (imagem: divulgação)

Um fascista no divã é uma peça de teatro escrita pela filósofa Marcia Tiburi e pelo jurista e psicanalista Rubens Casara. O protagonista é um sujeito metido a engraçado, daqueles que falam o que vem à cabeça, e que busca encontrar nas sessões de análise um pouco de apaziguamento para seu estado de nervos.

O Pigmalião Escultura que Mexe, grupo mineiro, junta a peça com subversões fabulescas de Esopo e cria Fábulas antropofágicas para dias fascistas: a raposa no divã. A raposa “que não pode fraquejar”, a lebre psicanalista e o corvo traduzem sem romantização um cenário decadente, preconceituoso e negacionista. E os bonecos incríveis assumem o papel do teatro como um espaço de resistência ao neofascismo.

A raposa fala clichês e absurdos, diz coisas tenebrosas com muita certeza. “Ele é deputado”, diz a lebre, “descobri que meu irmão votou nele”. A lebre tem voz mansa. A raposa tem a voz de quem tem por especialidade, ou hobby, matar. Esses animais antropomórficos, marionetes de fios, ganham existência com Igor Godinho, Liz Schrickte e Eduardo Felix.

Essa figura que está no divã é uma caricatura de outra que envergonha a humanidade. Por seu apego ao poder o sangue escorre. Em duas versões finais, o povo, ou O Corvo, enfrenta o infeliz que deixa marcas de brutalidade por onde passa.

Moral da história, dita pelo Corvo: “A ignorância gera realmente mais confiança e segurança do que o conhecimento”. Penso em Drummond. E vislumbro que a estupidez um dia cai do cavalo, animal que não entrou nesse enredo.

Cena de Memórias enferrujadas, do grupo De Pernas pro Ar (imagem: Tayhu Wieser)

O grupo De Pernas pro Ar, de Canoas, Rio Grande do Sul, é uma trupe familiar que cria mundos fantasiosos a partir de objetos descartados em ferros-velhos e de ferramentas de tecnologia. O experimento Memórias enferrujadas está repleto da fascinante e questionadora linguagem do teatro de máquinas, que coloca em xeque os limites do humano.

O trio principal é formado por Luciano Wieser (dramaturgia, direção-geral, ator, criação e construção), Raquel Durigon (produção, figurinos, maquiagem, dramaturgia e captação de imagens) e Tayhú Durigon Wieser (direção de audiovisual, captação e edição de vídeo, design gráfico, trilha sonora, dramaturgia e ator animador das tecnologias digitais e robótica).

Tem algo de nostálgico, mas também de aposta no futuro alimentado de um passado mais vigoroso. Um velho inventor, solitário, encontra vida nas suas criações. Quase sem palavras, cada peça, cada máquina autômata, aciona lembranças, subverte tempos. Permite que o velho fabricador de vidas nos encante com a cabeça da mulher oráculo ou com o gato com movimentos surpreendentes.

Júlia Abs em cena da performance "Dez" (imagem: divulgação)

Dez, de Júlia Abs, chega como um cântico esperançoso, no qual as urgências se revelam nas sobrevivências das imagens, que surgem em rápidas aparições, como a do Homem Vitruviano (desenho de Leonardo da Vinci). Ou são conduzidas por ideias de que o universo abarca todas as culturas – noção materializada na imagem da planta baixa de uma aldeia Ianomâmi em justaposição com uma rosácea medieval europeia que forma o piso da dança.

A fabulação da cena remete para a origem da vida, para os seres vivos – animados e inanimados – que partem da mesma natureza de estados mentais. O trabalho é uma aplicação do princípio budista “três mil mundos num único momento da vida” (itinen sanzen, em japonês). O título se refere aos dez mundos que correspondem às condições de inferno, fome, animalidade, ira, tranquilidade ou humanidade, alegria, erudição, autorrealização, bodisatva e buda.

Enquanto Júlia Abs dança, nós esperançamos de vida – para usar a expressão do professor, pedagogo e filósofo Paulo Freire. Segundo ele, esperançar é se levantar, ir atrás, construir, não desistir, levar adiante. Esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo.

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