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Reflexões sobre uma nova tradução para o alemão de "Grande Sertão: Veredas"

O tradutor Berthold Zilly comenta os desafios de verter o romance de João Guimarães Rosa para o alemão

Publicado em 14/02/2020

Atualizado às 15:25 de 29/01/2024

por Berthold Zilly

“Tudo pela poesia e por caminhos novos” (João Guimarães Rosa)

Grande Sertão: Veredas, romance de João Guimarães Rosa publicado em 1956, já foi traduzido para muitas línguas, como o inglês (1963), o alemão (1964), o francês (1965), o espanhol (1967) e o italiano (1970), de modo que uma nova tradução precisa se situar diante de versões anteriores, além de levar em consideração novas concepções tradutórias e a rica fortuna crítica, pois tudo isso pode fornecer ao tradutor sugestões para suas próprias metas e estratégias.

“Viver é muito perigoso”, diz o narrador Riobaldo, o que também vale para o traduzir, visto que o romance, já no plano puramente linguístico, é tão intransparente e misterioso quanto o próprio sertão, cheio de armadilhas e atalhos enganosos. Sabendo disso, o autor ofereceu sua ajuda aos primeiros tradutores, com dois tipos de esclarecimento: explicando palavras e trechos enigmáticos e expondo seus princípios, estratégias e procedimentos poéticos. Essas exposições têm como ideia subjacente uma homologia entre o escrever, o analisar e o traduzir, visto que o autor e seus tradutores deveriam guiar-se pelos mesmos princípios poéticos. Assim, o original nos diria, até certo ponto, como ele “quer” ser traduzido, tendo não só seu “leitor implícito” (Wolfgang Iser), mas também seu “tradutor implícito” (Berthold Zilly), que prefigura sua reconfiguração em outro idioma: “Na verdade, todos os grandes textos, e em mais alto grau os sagrados, contêm nas entrelinhas a sua tradução virtual” (Walter Benjamin).

As ideias estéticas rosianas, precoces para a prática tradutória da época, têm, hoje em dia, maior aceitação e chance de ser aplicadas. Elas correspondem à estética de Theodor Adorno, que reivindica do crítico a “capacidade de ver obras de arte de dentro, na lógica do seu estar-produzido – uma unidade de execução e reflexão”, de forma que a análise do crítico deve rastrear o processo da feitura, o modo da escrita do texto. O tradutor é um crítico muito especial, pois também é um recriador, devendo, como diz Haroldo de Campos, “submeter a escrutínio as operações formadoras do texto de partida, para reconfigurá-las em sua língua”. E deve ainda pesquisar os efeitos dessas operações no leitor do texto-fonte, para alcançar efeitos semelhantes no leitor do texto-alvo, pois uma obra não é só anatomia e fisiologia, mas um ente vivo.

Nesse sentido, Rosa recomendou a seu primeiro tradutor alemão, Curt Meyer-Clason, um cotejo crítico da tradução norte-americana – apesar de suas falhas – com o texto-fonte:

“O confronto com o original terá de ser feito linha por linha, palavra por palavra, vírgula por vírgula, PENSAMENTO POR PENSAMENTO. Muita coisa terá de perder-se, de evaporar-se, por intraduzível. Mas, que não sejam as coisas vivas, importantes”.

E à tradutora norte-americana Harriet de Onís:

“A maneira-de-dizer tem de funcionar, a mais, por si. O ritmo, a rima, as aliterações ou assonâncias, a música subjacente ao sentido valem para maior expressividade”.

Palavras que lembram a proposta benjaminiana de “distinguir o que se quer dizer (das Gemeinte) do modo como se quer dizer (die Art des Meinens)”, dando prioridade a este último. Pois a tarefa nuclear do tradutor é reconfigurar a forma, o estilo, a composição do texto-fonte.

O princípio sintático preponderante em Rosa é a justaposição das partes da fala, uma certa “democracia” entre elas, em que cada palavra, cada sintagma, cada oração tem certa autonomia, irradiação e sugestividade. Fazem parte dessa parataxe numerosas frases incompletas, palavras em ordem insólita, elipses, escassez de conectivos, que deixam indeterminadas e flutuantes as relações entre as partes da fala. Recomenda Rosa a seu tradutor alemão:

“Observo que quase sempre as dúvidas decorrem do ‘vício’ sintático, da servidão à sintaxe vulgar e rígida [...]. Duas coisas convém ter sempre presente: tudo vai para a poesia, o lugar-comum deve ter proibida a entrada, estamos é descobrindo novos territórios do sentir, do pensar, e da expressividade; as palavras valem ‘sozinhas’. Cada uma por si, com sua carga própria, independentes, e às combinações delas permitem-se todas as variantes e variedades”.

São qualidades de uma sintaxe ora barroca e exuberante, ora concisa e lacônica, com elevada indeterminação semântica e gramatical de palavras, sintagmas e orações, que gera polissemia ou enigmaticidade, e que lembra o princípio da indeterminação na física quântica (Werner Heisenberg), em que um fenômeno pode ao mesmo tempo ter dois ou mais valores diferentes, ou até existir e não existir (como na hipótese do gato de Schrödinger). São qualidades que realçam o caráter poético do livro que o autor considerou “tanto um romance, quanto um poema grande”.

O efeito anelado deve ser, como nas vanguardas dos anos 1920, o do choque e estranhamento, através do máximo desvio do texto em relação à língua-padrão, distância que os formalistas russos chamavam de “qualidade diferencial”:

“Deve ter notado que, em meus livros, eu faço, ou procuro fazer isso, permanentemente,  constantemente, com o português: chocar, ‘estranhar’, o leitor, não deixar que ele repouse na bengala dos lugares-comuns, das expressões domesticadas e acostumadas: obrigá-lo a sentir a frase meio exótica, uma ‘novidade’ nas palavras, na sintaxe” (carta para Harriet de Onís).

As duas primeiras traduções fizeram exatamente o contrário, aplainando o texto, abusando de lugares-comuns, sem qualidade diferencial, o que deixou o autor um pouco resignado:

“A tentativa de reproduzir tudo, tudo, tom a tom, faísca a faísca, golpe a golpe, o monólogo serta­nejo exacerbado, seria empreendimento gigantesco e chinesamente minuciosíssimo, obra de árdua re­criação custosa, temerária e aleatória” (carta para Curt Meyer-Clason).

O desafio para o tradutor é justamente tentar essa “árdua recriação”, numa travessia tradutória em que ele rastreie, tateie, transfigure o original de acordo com sua feitura e sua dinâmica, fazendo jus à sua fusão de coloquialidade rural e poeticidade – sabendo que uma solução plenamente satisfatória é impossível.

Para evidenciar a dimensão oral-poético-rítmica do texto rosiano, é útil representá-lo graficamente como poema em versos livres. Cada sequência de palavras entre dois sinais de pontuação é um fôlego, unidade básica de respiração, equivalendo a um verso. Uma frase, ou seja, um período frásico inteiro finalizado por um ponto, equivale a uma estrofe. Um parágrafo equivale a um conjunto de estrofes, a um poema. E o romance todo pode ser entendido como uma longa sequência de poemas, uma epopeia em versos. É fundamental o papel estruturador e dinâmico da pontuação, pois ela assinala não só a estrutura sintática, mas sobretudo a prosódia, a melodia, a intensidade, a velocidade da voz, e os diversos tipos de pausa entre os fôlegos, organizando-os em unidades respiratórias superiores. Tudo isso é assinalado por um leque muito diferenciado de sinais gráficos: ponto, vírgula, ponto-e-vírgula, dois-pontos, travessão, ponto de exclamação, ponto de interrogação, reticências, inclusive combinações inusuais entre elas. Ainda há outros signos de sonoridade: maiúscula, grifo, aspas, grafia às vezes inortodoxa das palavras, espaço entre dois parágrafos, permitindo ao leitor imaginar e quase ouvir Riobaldo falando. Toda essa dinâmica sonora, rítmica, sintática, semântica pede para ser analisada, sentida, ouvida e transcriada.

Vejamos dois exemplos, duas frases-poemas, a começar pela 7ª frase do 1° parágrafo:            

1) Causa dum bezerro:

2) um bezerro branco,

3) erroso,

4) os olhos de nem ser

5) – se viu –;

6) e com máscara de cachorro.

 

Von wegen einem Kalb:

ein weißes Kalb,

fehl­haft,

die Augen so­was gabs nicht

– je gese­hn –;

und mit Hunde­maske.

Temos aqui uma estrofe de seis subunidades respiratórias, seis fôlegos-versos, relativamente bre­ves, de 6, 6, 3, 6, 2 e 9 sílabas, respectivamente, de modo que o último verso é o mais longo, com uma sonoridade por assim dizer conclusiva. Pode-se ver que, na tradução, nem sempre foi possível manter o mesmo tamanho dos fôlegos, mas, sim, evitar grandes discrepâncias rítmicas. Chama a atenção a diversidade de sinais de pontuação, ou seja, de pausas: em seis versos há cinco tipos de sinal, cada um variando a modulação da voz e a duração da pausa, uma enorme diferenciação prosódica e rítmica, que per­mite, acima das unidades básicas dos fôlegos, perceber três unidades maiores, constituídas pelos fôlegos 1, 2-5 e 6, respectivamente. O primeiro é uma locução adverbial relativa à frase anterior; e o que se segue são apostos relativos ao “bezerro” do primeiro “verso”, com uma minissentença intercalada: “– se viu –”, expressando es­panto, e finalmente mais uma locução adverbial. Evidentemente, essa parataxe ritmada, extremamente elíptica, merece ser transfigurada na tradução.

A locução prepositiva no primeiro folego aparece truncada, formando com o respectivo substantivo um adjunto adverbial insólito e condensado: “Causa dum bezerro” (em vez de “por causa dum bezerro”), com aférese popular, que ocorre duas vezes no romance, e só na fala de caboclos reproduzida por Riobaldo em discurso indireto livre, ou seja, não pertence ao registro mais elevado do próprio narrador, que aqui cita os homens que acharam o bezerro disforme. A preposição correspondente em alemão, “von wegen”, é de registro popular e coloquial, alternativa do mais normativo “wegen”; além disso, usa-se o dativo em vez do mais culto genitivo. Chama a atenção a repetição lexical “bezerro”, expressão de oralidade, com uma tripla aliteração: bezerro-bezerro-branco, de efeito intensificador, que mostra também o esforço de rememoração do narrador, que está procurando as palavras apropriadas para presentificar o passado. A repetição do substantivo é recuperada em alemão, mas a aliteração só pode ser dupla. O terceiro verso traz um típico neologismo rosiano, desta vez transparente, uma combinação insólita de um lexema usual com um sufixo também usual: “erroso”, formação imitada em alemão com “irrhaft”, palavra que não consta no renomado dicionário Duden, mas que se entende imediatamente.

“Máscara de cachorro”, colocação estranhadora, é um prenúncio do papel de uma das instâncias que regem o cosmos do romance e que são citadas logo no primeiro parágrafo: o “homem”, “Deus”, o “demo”, o “sertão”. Vários tradutores o verteram como “focinho de cachorro”, perdendo a importante alusão metafísica, contra a recomendação do autor de, sobretudo em trechos muito estranhos, traduzir palavra por palavra, recomendando quase o procedimento de uma versão interlinear, mais uma vez em convergência com Benjamin. Inclusive porque, no caso, a temática da máscara é central no romance, embora não de modo unidimensional, pois seres inocentes como Diadorim podem ter uma máscara, como ele realmente tem na hora da morte, além de usar a máscara da masculinidade durante toda a sua vida, sem que isso signifique necessariamente falsidade. Ao passo que criminosos como Hermógenes podem não ter uma máscara visível, exibindo porém uma lealdade que é uma máscara da falsidade. No caso do bezerro, a máscara sugere falsidade só na superstição dos agregados de Riobaldo, que acabam matando o animal, embora seu chefe Riobaldo pareça considerá-lo inocente. Assim, revela-se útil, como recomenda o autor, reparar não só nos detalhes, mas também em seu papel dentro do conjunto, para permitir ao leitor reconhecer isotopias que estruturam o texto todo.

A versão alemã tenta reconfigurar a radical parataxe, a escassez de conectores, a consequente autonomia das partes da fala, o ritmo, a formação inusual de algumas palavras, e de modo geral a qualidade diferencial do texto, o choque e o estranhamento.

Vamos contemplar outra “estrofe” do grande poema que é Grande Sertão: Veredas.

10ª frase-estrofe:

1) Cara de gente,            —◡◡—◡

2) cara de cão:                —◡◡—

3) determinaram –          —◡◡—◡

4) era o demo.                —◡◡—◡

Leutegesicht,                    —◡◡—

Hundegesicht:                  —◡◡— 

sie haben entschieden –   ◡—◡◡—◡

es war der Dämon.            ◡—◡—◡

Uma estrofe perfeita, radicalmente paratática, elíptica, pouco coesa no plano sintático, e muito coesa, regular, robusta no plano sonoro, o que gera um efeito impactante, esconjurador, inclusive pelas imagens polivalentes e sugestivas. Consiste de quatro fôle­gos-versos isomorfos, cada um com duas tônicas, e com número de sílabas praticamente igual (5, 4, 5, 5), todos obedecendo quase ao mesmo metro, um dátilo seguido de um troqueu, este incompleto no segundo verso. O ritmo dá uma impressão de regularidade sem uniformidade, pois o poema está sofisticamente estruturado por quatro tipos de sinal de pontuação, ou seja, com quatro pausas de duração diferente, e diferentes mo­dulações da voz. Os dois primeiros versos formam paralelismos anafóricos, com três aliterações. A sequência /ara/ aparece três vezes, seguida por outra, parecida, /era/, o que reforça a coesão e o caráter quase mágico do período frásico.

Os primeiros dois versos, divi­didos por vírgula, formam uma relativa unidade rítmica, finalizada por dois-pontos, cesura importante, mar­cando manutenção da voz medianamente elevada, tensa, gerando suspense. O travessão depois da terceira subunidade tem função parecida, de modo que a quarta subunidade seria anunciada pela terceira, e as duas últimas anunciadas pelas duas primeiras. O narrador Riobaldo coloca-se na mente de seus cabras que se assustam com o bezerro disforme, e refere, nos versos 1-2 e 4, a fala de seus homens no estilo indireto livre, forma narrativa de apresentar o pensamento das classes subalternas sem o gesto distanciador do discurso direto, e sem as “correções” do discurso indireto.

A tradução procura manter, na medida do possível, a regularidade insistente do ritmo, reconfigurando a anáfora (“cara de”/ “cara de”) por uma epífora (“-gesicht” – “-gesicht”), com aliteração apenas dupla, reconstruindo também a estrutura paratática lacunar e indeterminada. Algumas vezes, nas formas verbais do pretérito, o português pode ser de uma concisão invejável que é difícil de se refazer em alemão, por exemplo “determinaram” (3). Impossível reconfigurar o jogo do narrador com os sinônimos “cachorro” e “cão”, assinalando sua cautelosa e gradual aproximação, em etapas, a um ente poderoso e assustador: “cachorro”, “cão”, “demo”, “que-diga”, antes de chegar a seu nome “oficial”: “diabo”.

Há tarefas que um tradutor pode assumir sem maior envolvimento com a obra a ser traduzida e há tarefas que ele não pode cumprir sem se envolver profundamente com ela, sua feitura, sua sonoridade, seu ritmo, seus personagens, suas ideias e emoções, com todo o seu cosmos ficcional, e também com a subjacente realidade extraliterária. Assim, o tradutor se impressiona não só com o valor estritamente literário do texto, mas também com seu valor humano e sua capacidade reveladora de estruturas e processos psíquicos e sociais, também no plano político, diante de numerosas regiões no mundo em que o Estado de direito está debilitado ou falido, gerando violência onipresente, além de outras calamidades, mas sempre há tentativas de construir um convívio pacífico entre os homens. Se o sertão, como diz Riobaldo, é o mundo, o grande livro sobre o sertão e suas veredas é um laboratório de ideias e emoções da condição humana.

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