Dayse Torres fala sobre o romance "Eu sou uma velha", contemplado pelo Rumos Itaú Cultural 2023-2024
Publicado em 17/09/2025
Atualizado às 13:39 de 17/09/2025
Projeto: Trilogia sobre a velhice – escrita do terceiro livro
Observando pessoas – de quase todas as idades – em deslocamento na estação do metrô, para compromissos de trabalho, estudo, lazer e encontros sociais, me perguntei: onde estão mães, pais, avós, avôs, tios e amigos velhos dessas pessoas? Onde vivem? Com quem vivem? Como vivem os nossos velhos?
Acontece no Brasil e no mundo um processo acelerado de envelhecimento da população. Aqui, as políticas públicas não conseguem atender à grande demanda social, e a maioria da população não dispõe de recursos individuais. Fora as dificuldades pela realidade de tornar-se velho, impostas pela condição humana, o fenômeno é agravado por desigualdades extremas: classe social, econômica, origem geográfica, grau de instrução, cultura, gênero, raça, crença religiosa, condição ambiental onde se vive e tantas outras.
Parte expressiva dos nossos velhos apenas sobrevive. Eles são considerados inúteis, por não terem mais destreza para atividades colaborativas; improdutivos, por estarem fora do mercado de trabalho; dispendiosos, por adoecerem muito; indesejáveis, por demandarem cuidados constantes; desagradáveis, por mostrarem a face e o destino que teremos quando também ficarmos velhos.
A linguagem reflete nossos preconceitos. A palavra “velho” é considerada ofensiva, enquanto o significado dela é: uma pessoa que envelheceu. Tornou-se um adjetivo para aplicar aos outros e recusado para ser admitido para si próprio.
Há duas décadas, convivo com pessoas próximas em processo de envelhecimento. Escutá-las – em suas recordações, repetições, sonhos e alegrias, medos, fantasmas e dores, com conexão ou não à própria existência, aceitando ou não a proximidade da finitude da vida – me motivou a escrever sobre esse tema.
Em 2016 publiquei, de forma independente, Vossos velhos, finalista do Prêmio Jabuti 2017 na categoria “Contos”. Permaneci no tema com mais um livro, em finalização. Iniciei a escrita de um romance para explorar uma questão que me inquieta: como vivem os velhos quando lhes falta a assistência necessária para manter sua dignidade até o fim da vida?
Tomei conhecimento do edital do Rumos 2023-2024 e inscrevi meu projeto, Trilogia sobre a velhice – escrita do terceiro livro, que foi contemplado e deu origem ao romance eu sou uma velha.
A protagonista-narradora nos apresenta seu universo: pensamentos, recordações, associações livres e a imaginação de uma mulher velha, abandonada pelo filho em uma moradia pública. Ela, irreverente, plena de memória, lucidez e inteligência, desvela uma realidade oculta em uma instituição dessa natureza.
O romance ressalta contrastes da trajetória da infância à velhice: liberdade e confinamento; antes e depois do abandono; a autonomia com que regia a própria vida e a imposição de uma rotina de miséria, submissão e impessoalidade; companheirismo e solidão.
eu sou uma velha é uma obra de ficção. Porém, essa mulher existe. E são muitas.
* * *
Trecho de abertura do romance eu sou uma velha:
o estrado da cama acordou vazio
a lâmina de espuma vai chorar no varal a saudade de ninguém
mais uma se foi aqui do meu lado
agora mesmo misericórdia
quantas morreram na mesma cama
vendo a última paisagem o mofo no teto
limparam o ranho com o lençol que me cobre a baba no travesseiro pelo cansaço da boca sem saber fechar bolinhas de cocô igual cocô de cabra
tem coisa errada uma mulher fazer cocô de cabra
as paredes ouvem o último suplício das velhas
a reza fugida da mente a voz sumida da boca a certeza de ninguém ouvir
coitadinha
foi-se de olhos abertos será
quanto tempo para os olhos pararem abertos por toda a eternidade se ninguém percebe que você finou
fica a morte arregalada ali dizendo não adianta perguntar espera tua hora para saber
a próxima posso ser eu
* * *