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Do on-line ao on-chain

Artigo de Filipe Santos discute como as organizações na web 3.0 expressam novidade em governança, monetização e comunidades colaborativas

Publicado em 22/06/2023

Atualizado às 16:45 de 05/09/2023

por Filipe Santos

 

Quando pesquisamos sobre web 3.0, a nova internet em ascensão, encontramos diversos temas correlacionados, como metaverso, blockchain, NFT, criptoativos, avatares, DEX, DApps, skins, mineração e wallets, mas pouco se fala sobre as organizações autônomas descentralizadas (DAO, na sigla em inglês). Elas tratam de governança, mas não apenas isso; são grupos ou comunidades digitais cujas regras são predefinidas por meio de códigos de programação conhecidos como contratos inteligentes, executados e validados por um blockchain, ou seja, um livro-razão imutável e compartilhado que facilita os registros de transações e o controle de ativos numa rede de negócios. À medida que a economia criativa e a era digital se expandem exponencialmente, há novas possibilidades de financiamento, de comunidade e de influência por meio das DAO.

Tendo em vista a evolução da tecnologia, o acesso a conteúdos na web 1.0 era realizado a partir de um login que demandava e-mail e senha do usuário. Na web 2.0, o processo foi facilitado pela integração de contas como Google, Facebook ou Twitter. Já na web 3.0, o acesso é feito por meio das carteiras de criptoativos integradas ao navegador, as wallets, o que reflete nos conceitos de identificação, de privacidade e de pagamento, por exemplo.

A web 3.0 tem ao menos dez tecnologias e/ou tendências ativadoras em seu ecossistema que fazem parte da transição da Quarta Revolução Industrial rumo à Quinta Revolução Industrial

A web 3.0 tem ao menos dez tecnologias e/ou tendências ativadoras em seu ecossistema que fazem parte da transição da Quarta Revolução Industrial rumo à Quinta Revolução Industrial, sendo elas: blockchain, IoT, non-fungible token (NFT), inteligência artificial, 5G/6G, vídeo em 4K e 8K, computação quântica, realidade mista (a soma de realidade aumentada e realidade virtual), vestes hápticas (recurso para experiências sensoriais remotamente) e DAO, que implicam governança e participação.

NFT e suas infinitas possibilidades

Em relação ao empreendimento no universo dos NFT, a história de Gary Vee surpreende. O empreendedor e investidor criou, em NFT, 200 desenhos autorais feitos à mão que integraram uma coleção para a sua comunidade digital, a VeeFriends. Ele agregou valor à comunidade incluindo benefícios, como o acesso à sua conferência anual e a sessões de mentoria e um presente da curadoria, atrelando utilidades exclusivas aos ativos. Resultado: vendeu todos os desenhos, e alcançou ainda vendas de 91 milhões de dólares em 90 dias ao expandir seu portfólio para obras de artistas que ainda não tinham visibilidade. Cada um deles recebia a devida participação em royalties preestabelecidos na criação do contrato inicial. Por meio do contrato inteligente (smart contract), é possível remunerar os criadores ad infinitum, já que a transação pode ser automatizada.

Outra possibilidade oferecida pelos NFT é conceder aos usuários o acesso a áreas específicas e a transações exclusivas, o chamado token-gating. Por exemplo, um comprador de uma obra de arte em uma vernissagem ganha um tíquete com acesso a um evento, senha para integrar uma comunidade ou algum outro tipo de benefício extra definido pelo artista. Um NFT permite a existência desse “pacote” integrado digitalmente.

Infelizmente, o modelo de gestão e governança para web 3.0 é o assunto menos comentado diante de tantas bolhas, como foi um dia a chamada bolha das pontocom, em 2000. Há, com isso, o risco de chegarmos apenas até as interpretações superficiais, menosprezando seus reais fundamentos, impactos, oportunidades e aplicações práticas.  

Organizações feitas para a nova economia

Jim Collins falou sobre “organizações feitas para vencer”, e Salim Ismail sobre “organizações exponenciais”; nós também precisamos falar sobre organizações autônomas. As já mencionadas DAO podem ser mais do que um modismo ou um pretexto para golpes anônimos, pois, sobre assuntos emergentes assim, normalmente acabamos nos defendendo mais do que estudando, assimilando e protagonizando, como fez Gary Vee.

Jim Collins falou sobre “organizações feitas para vencer”, e Salim Ismail sobre “organizações exponenciais”; nós também precisamos falar sobre organizações autônomas

As primeiras DAO, feitas para captar investimentos coletivos voltados para projetos digitais, surgiram em 2016, com a The DAO, que acabou resultando num grande prejuízo ao sofrer um ataque hacker. Em 2020, foram registradas mais de 200 DAO, e em 2022 esse número passou para 4 mil. Entre as razões para esse crescimento, além do aumento da adesão de criptoativos e do avanço da tecnologia blockchain, está a revolução do low-code e no-code, que fez com que as ferramentas digitais sejam menos complexas, no sentido de usarem pouco ou nenhum código para funcionar. Podemos citar aqui a neutralização da complexidade para o design gráfico, como fez a plataforma Canva, por exemplo.

Para criar uma DAO, o ideal é ter, sim, uma equipe desenvolvedora de blockchain e uma auditoria técnica para garantir a segurança e a sustentabilidade do projeto, porém, ferramentas digitais de criação simplificada, como Aragon, têm aberto o mercado para novas DAO serem criadas em minutos, sem um especialista. Isso pode ser feito, inclusive, de forma gratuita, numa rede de protótipos TestNet, que permite a compreensão de todo o funcionamento da DAO antes de realmente criar uma versão funcional.

As chamadas DAO clássicas não têm dependência nenhuma do time de fundadores para sua sustentabilidade, ou seja, eles podem deixar a organização a qualquer momento sem gerar qualquer tipo de impacto. Na prática, sua principal característica é a descentralização e a governança autônoma da comunidade. Já as DAO flexíveis ou semiautônomas dependem dos fundadores e de sua tomada de decisões para posteriormente descentralizar de forma gradual. Na prática, entre as suas principais operações estão a captação coletiva de investimentos, a contratação de freelancers e os repasses de pagamentos.

No mercado blockchain, ficou famosa a atuação da consultora norte-americana Tribute Labs, que multiplicou milhões de dólares em bilhões de resultados e nos permitiu compreender as possibilidades de aplicação de alguns tipos de DAO voltadas para o financiamento coletivo, como a Flamingo DAO, de crowdfunding e compra coletiva de NFT com alto potencial de crescimento; a Neon DAO, de projetos de metaverso; a Red DAO, de projetos de moda; e a Noise DAO, voltada para projetos de música. E a lista de tipos dessas organizações só aumenta.

O influenciador de web 3.0 conhecido como Coopahtroopa construiu um mapa do ecossistema de DAO que destaca os maiores players do segmento em sistemas operacionais: DAO de investimentos, de colecionáveis, de protocolos, de serviços, sociais, de mídia e de subsídios.

A Bored Ape Yacht Club (BAYC), por exemplo, é uma DAO, uma coleção de NFT de desenhos de macacos entediados que se tornou famosa. É possível perceber o papel da DAO na construção de comunidades com seus participantes transacionando ativos e direitos de propriedade? Se no mundo industrial tínhamos a lógica convencional de preparar, apontar e fogo, no mundo digital temos a lógica do fogo, apontar e preparar. Em outras palavras, vemos primeiramente os investimentos em narrativas, em comunidades e em criações desmaterializadas amparadas por tecnologia, e posteriormente a chance de se tornarem prática, sucesso e disrupção (termo tão empregado recentemente na nova economia).

Regras e regulações

De acordo com o levantamento da empresa de segurança da informação Kaspersky realizado em 2022, o Brasil é o país com maior número de vítimas de fraudes eletrônicas na internet – 20% de todas as transações on-line. Em segundo lugar vem Portugal (19,7%), seguido da França (17,9%), da Tunísia (17,6%), de Camarões (17,3%) e da Venezuela (16,8%). O cenário em que estão inseridas as DAO envolve o risco de golpes, além de elas terem que lidar com o contexto regulatório de cada país.

As Ilhas Marshall, em 2022, modificaram sua legislação e reconheceram essas organizações como entidades legais em seu território, conferindo a elas os mesmos privilégios que as sociedades de responsabilidade limitada. Como em qualquer segmento, há boas e más iniciativas, e até mesmo as criminosas. Pesquisa, educação, informação e principalmente fundamentos permitem garimpar o que é bom, o que tem impacto positivo e gera soluções para a sociedade.

No Brasil, vemos projetos como Bankless, Alma DAO, Echoaland e eAgro. É interessante destacar também a Kairos DAO, que tem uma abordagem diferenciada de DAO como organizações autônomas distribuídas.

De certa forma, até mesmo a mineração de bitcoin, que acontece desde 2009, é uma expressão primitiva das DAO.  A mineração de bitcoin refere-se ao processo em que uma rede global descentralizada de computadores, executando o código bitcoin, trabalha para garantir que as transações sejam legítimas e adicionadas corretamente ao blockchain da criptomoeda (uma espécie de livro-razão público e inviolável). A mineração também é a maneira como uma nova fração de unidade de bitcoin entra em circulação.

De certa forma, até mesmo a mineração de bitcoin, que acontece desde 2009, é uma expressão primitiva das DAO

As transações concluídas corretamente geram frações de bitcoin como recompensa para os mineradores. E isso também se dá com diversos tokens e/ou criptoativos, como é o caso do segundo maior ativo digital em blockchain, o Ethereum, criado pelo jovem programador russo-canadense Vitalik Buterin. Assim, os mineradores são participantes dessa espécie de DAO que é o data center descentralizado do bitcoin. Eles colocam à disposição das transações da rede seus computadores com boa capacidade de processamento lógico via placa de vídeo, internet banda larga e obviamente energia elétrica. Quanto mais potente o processamento computacional e mais barato o serviço de energia e internet, mais lucrativa será a mineração. Daí surgem debates pertinentes à pauta da governança ambiental, social e corporativa (ESG, na sigla em inglês), pois há mineradores que utilizam fontes de energia limpa – solar, eólica ou geotérmica –, ao passo que outros utilizam as usinas fósseis de carvão.

Conclusão

Uma síntese das três ondas da internet pode ser esta: na web 1.0, os usuários leem/acessam, mas apenas os portais criam conteúdo e monetizam. Na web 2.0, os usuários criam/promovem conteúdo, os portais supervisionam e ganham dinheiro diretamente, e há baixa privacidade e transparência. Na web 3.0, os usuários criam/promovem conteúdo, têm controle e monetização, e graças ao blockchain há alta privacidade e transparência.

A tendência das DAO na web 3.0 é de um ambiente com cada vez menos intermediadores e atritos e mais “power to the people”. Com critério, aprendizado e antecipação, precisaremos ter boas perguntas num mundo em que o Google tem muitas respostas.

Assim, vemos elementos fundamentais para o potencial da era da descentralização: a web 3.0, as criptomoedas, os blockchains e as DAO.

 

Filipe Santos

Empreendedor de inovação aberta e de transformação digital, com jornada acadêmica em administração, design thinking, antropologia, marketing, publicidade, blockchain e educação executiva. É consultor das maiores empresas do mercado, arquiteto de ecossistemas de ventures e startups, mentor de hackathons da Nasa e idealizador de hubs de inovação e aprendizagem.

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