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“Baixada sonora” conecta músicos à margem da produção no Rio de Janeiro

Rômulo Vieira, gestor cultural e idealizador o projeto, conta que cerca de cem artistas já foram mapeados na Baixada Fluminense

Publicado em 28/07/2022

Atualizado às 14:46 de 27/07/2022

por André Felipe de Medeiros

“Eu costumo dizer que a Baixada Fluminense é o Rio de Janeiro de costas para o mar”, conta o gestor cultural Rômulo Vieira, “é o Rio do subúrbio, da massa trabalhadora. Mesmo estando tão perto da capital, a nossa vivência artística ainda está muito aquém do que somos capazes de produzir.” Foi dessa perspectiva que nasceu o projeto Baixada sonora, plataforma digital que mapeia a música feita nos 13 municípios da região metropolitana que circunda a Cidade Maravilhosa. Apesar do grande fluxo diário de pessoas entre as cidades onde residem e o trabalho na capital, a verba destinada para arte e produção cultural no estado não se movimenta, estando concentrada principalmente na área urbana privilegiada – aquela que é o principal cartão-postal do estado.

“Eu sou um realizador local que saiu da Baixada para estudar e me especializar em cultura para poder voltar e contribuir na cidade”, explica Rômulo, natural de Nova Iguaçu. “Do meu ponto de vista, do meu lugar de fala, é uma prestação de serviço para o lugar onde nasci e cresci, e, do ponto de vista social e coletivo, é uma ação local muito importante”, conta ele. “As cidades da Baixada nem sempre são contempladas nos estudos e mapeamentos da cadeia criativa, então é também uma forma de descentralizar a informação. E é uma maneira de mostrar o que nós produzimos e que temos artistas muito potentes, e poder, com esse trabalho, fomentar as cenas daqui.”

Idealizado em 2018, o Baixada sonora foi ao ar como plataforma digital em 2021, após ter sido contemplado pelo Rumos Itaú Cultural 2019-2020. Nele, músicos de toda a região podem se conectar uns com os outros e ter a chance de ser vistos por curadores, produtores e demais profissionais que podem contatá-los para oportunidades de trabalho. São hoje cerca de cem artistas e grupos conectados, em estilos que vão do jazz ao rap, da música alternativa às manifestações populares e folclóricas.

Rômulo conta que, antes mesmo da idealização do projeto, ele já pesquisava a música da região, “principalmente os grupos de juventude, como rock, samba e pagode, que é com quem eu tinha mais contato no olhar superficial da cena. Com o Baixada sonora, consegui identificar grupos muito específicos de cultura popular – de jongo, maracatu e samba de roda, por exemplo – que foram aparecendo nesse mapeamento. Esses grupos são formados normalmente por pessoas mais velhas, com mais de 40 ou 50 anos”.

“Aprendi que existe muita diversidade na Baixada, com suas muitas cores e sotaques”, comenta o idealizador. “A própria mistura de culturas e de grupos que fazem muitas linguagens vem dessa característica de ser uma região habitada por muitas partes do Brasil, com pessoas de Minas Gerais, Nordeste, Norte e Centro-Oeste que vêm tentar a vida no Rio. Descobri uma cultura cigana bem forte, assim como grupos de congado, que é uma linguagem muito específica de Minas. Essa miscelânea de sotaques vem compondo essa camada criativa na Baixada, e aprendi muito observando esses encontros.”

Uma mulher negra aparece num espaço aberto, no que parece ser uma janela. É possível ver paredes de tijolinho ao redor dela, assim como árvores e mato atrás da mulher. Ela possui o cabelo vermelho e está com uma roupa em tons amarelos.
A cantora Iolly é uma das artistas mapeadas pelo projeto Baixada sonora (imagem: divulgação)

Direito à visibilidade

Iolly Amancio é ativista e produtora cultural de Mesquita, cidade a cerca de 26 quilômetros do centro do Rio. Na música, ela é cantora (sua parceria com Letrux em uma regravação de “Preta pretinha” obteve veiculação na grande mídia em 2020) e também está à frente da Banda Gente. Iolly diz ter conhecido o Baixada sonora durante a gravação de um podcast e, com o tempo, se envolveu cada vez mais com o projeto: “Faz parte do meu trabalho defender o território da Baixada Fluminense como um lugar de periferia do Rio que é parte da metrópole, mas vive excluído do rolê cultural”, conta ela.

Ao ser questionada sobre o que é ser artista da Baixada Fluminense, Iolly responde: “É enfrentar o triplo de dificuldades do restante da galera. Tive a oportunidade de fazer alguns cursos de música e negócios no Centro do Rio e na Zona Sul, e você escuta constantemente artistas falando que saíram para ir à padaria e encontraram um [executivo de gravadora]. Não temos essa vivência na Baixada, só encontramos trabalhadores braçais, como nós mesmos. A maioria dos trabalhadores daqui tem outros trabalhos para poder se sustentar. Estava falando dia desses em um evento sobre como nós demoramos para nos reconhecer como artistas quando se é preto e da periferia. Parece que não estamos fazendo nada sério. Só depois de muito tempo se esforçando muito que percebemos que isso é um trabalho, que ajuda a pagar as contas, e convivemos ainda com o desrespeito de muita gente que contrata, mas não paga, ou quer colocar um valor – sempre irrisório – no nosso trabalho. Quando a pessoa vem de um lugar privilegiado da cidade, ela pode dizer quanto o trabalho dela custa. Nós aqui nem sempre temos esse direito”.

Integrante também do Coletivo Baixada Nunca se Rende, Iolly explica que a maior dificuldade da região é a falta de verba destinada à cultura e que algumas prefeituras mal sabem organizar seus editais. “Temos pouquíssimos teatros, e menos ainda casas de shows. Estamos sempre improvisando para poder fazer a nossa arte acontecer”, conta ela. “A maioria dos eventos é produzida em áreas públicas, como ruas e praças, e convivemos com o descaso e com o apagamento. Quando você mapeia essa cena, você diz: ‘Olha, há tantos artistas aqui neste lugar que já produziram tantas coisas’. Nós ganhamos uma cara, ganhamos propriedade para brigar pelo nosso direito de ter espaços públicos dedicados à arte, de ter mais dinheiro circulando.”

Nesse contexto, o Baixada sonora tem sido “aquela pracinha onde todos se encontram para ver o que pode acontecer”, comenta Rômulo. “Venho dessa ideia de produção cultural meio coletiva, o ‘Vamos nos juntar aqui para fazer um sarau, uma festa, uma feira’. Observo que a contribuição do projeto é um pouco dessa perspectiva de nos conhecermos, ver quem somos nós que estamos ali atuando com cultura, e, dessa forma, podermos nos juntar para ver o que pode ser feito.” Há também um interesse crescente no mapeamento por parte da academia, com algumas pesquisas de olho nos dados que essa iniciativa tem levantado.

Essa movimentação dentro da cena já tem dado frutos. Um deles é um projeto financiado pelo governo do estado do Rio de Janeiro, que vai entrar na programação da comemoração do bicentenário da Independência do Brasil. Outro é o Museu Efêmero de Afetividades, ocupação artística entre as cidades da Baixada Fluminense, na qual o Baixada sonora estará presente de várias formas, entre elas com uma das DJs que vieram do mapeamento se apresentando nesse circuito de intervenções urbanas. Para o ano que vem, há planos para um pequeno festival, “fruto dos investimentos no Baixada sonora”, nas palavras do idealizador.

“Olhar para a Baixada é olhar o Brasil dessa perspectiva de costas para o mar”, diz Rômulo, “uma coisa menos solar, mais de suor, de pessoas dignas dando seus ‘corres’ para fazer a manutenção dos seus sonhos. Acho que a Baixada Fluminense reflete esse Brasil que acorda cedo, que faz duas coisas ao mesmo tempo para se manter ali. É um grande jogo de possibilidades.”

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