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Com “Dádiva”, Doralyce quer que você mexa o corpo e a mente

Lançamento do novo álbum da artista, uma das selecionadas pelo “Rumos Itaú Cultural”, faz parte do projeto Dassalu

Publicado em 07/04/2022

Atualizado às 14:38 de 28/04/2023

por William Nunes

Se você ainda não conhece Doralyce, ela mesma se apresenta: “Eu sou Doralyce, cantora e compositora, mais conhecida como Miss Beleza Universal, sou embaixadora da Revolução Afetuosa e Afrocentrada. Faço música para criar imaginário simbólico. Essa criação de imaginário simbólico é a minha constituição de legado dentro do afrofuturismo. [...] Tenho mais de 400 composições, escrevo todos os dias. Sou viciada em compor. Escrevo porque preciso”.

Artista, empreendedora e ativista pernambucana, Doralyce foi contemplada pelo Rumos Itaú Cultural 2019-2020 com o projeto Dassalu – da desconolonização ao afrofuturismo, que visa ao lançamento de um manifesto e dois álbuns – Dádiva, disponível a partir de hoje em todas as plataformas de streaming, e Dassalu, previsto para o segundo semestre.

Em Dádiva, seu terceiro trabalho autoral, ela mostra uma versatilidade de ritmos latinos e brasileiros como base para narrativas de cunhos social, político e afetivo. “Para mexer o corpo e a mente juntos”, Doralyce sentencia, antes de continuar: “Para falar sobre o agora e toda a potência da musicalidade das mulheres pretas, valorizando a intelectualidade do legado ancestral preto”.

Fotografia colorida da artista e cantora Doralyce. Ela é uma mulher jovem e negra, está com o cabelo amarrado em uma trança. Veste uma roupa branca com um colar branco com detalhes em preto, além de brincos. Está sorrindo na foto, com a cabeça levemente inclinada para o lado.
Doralyce (imagem: Lil Oliveira)

Confira a entrevista completa abaixo.

Como surgiu o Dassalu, projeto que está sendo apoiado pelo Rumos?

“Dassalu” foi uma canção que recebi que trazia palavras que eu desconhecia, uma canção que fala sobre o povo Haussa, Nagô, o povo de alafim, o legado Ramadã – que depois descobri que é um feriado muçulmano. Isso acontece muito quando componho.

Quando escrevi “Exu ou Yeshua”, uma das músicas do Canto da revolução [primeiro disco da cantora, lançado em 2017], fiquei pensando de onde havia tirado o verso “a corda amarela prende a vela / ágio barco que navega nesse mar”. Que ideia, acorda mulher! O que eu quis dizer com isso? E, então, conversando com uma pessoa sábia, ela falou: “Dora, Oxum foi a única mulher que conseguiu enganar Exu, conseguiu convencer Exu de que ela está no mesmo lugar que os homens”. Entendi que estava recebendo um chamado para construir um legado afrofuturista sobre a emancipação de pessoas pretas, latinas, LGBTQIA+.

Desde 2016, tenho uma pesquisa sobre a democracia, de quando morei em ocupação. Ali entendi como era a construção de uma estrutura de ocupação, onde a gente tenta o consenso, tenta fazer escolhas democraticamente. Você precisa se comunicar. A gente tem que produzir cultura porque não podemos ocupar um espaço sem ressignificá-lo. Todas essas lógicas de ação me fizeram olhar a democracia sob vários eixos, promover encontros para manter a democracia e chegar à máxima “A democracia é uma ditadura disfarçada”.

Não é uma democracia, nunca foi democracia, nunca foi parte daquilo – os indígenas não foram incluídos, os pretos não foram incluídos. Primeiro as mulheres brancas começaram a votar, depois entraram as mulheres pretas, que sempre estiveram à margem desse sistema.

É o momento em que eu chamo a sociedade para pensar em qual é a nossa missão na Terra. Essa missão de vida atravessa todas as esferas que simbolizam estarmos vivos. Qual é o meu papel? Você tem um papel na sua família ou na sua casa, mas qual é o seu papel nesta casa grande que é o planeta? O que você pode fazer para contribuir para a diminuição das desigualdades sociais? Qual é a sua contribuição na luta pela igualdade de direitos? Dassalu é a revolta dos oprimidos.

A legislação, durante muitos anos, foi racista. Todos os projetos construídos nessa ideia de sociedade, de democracia, sempre se posicionaram de maneira machista, misógina, racista. Nós precisamos descumprir a lei, porque já foi parte da lei que pessoas podiam ser escravizadas, já fez parte da lei que uma mulher não podia circular à noite sozinha nas ruas. Se isso já fez parte da lei e hoje a gente vê como é discrepante e violento, a gente precisa mudar essa legislação. Dassalu vem para contestar a hegemonia desse sistema.

Como foi o processo de construção desse projeto?

Foi um processo muito doido, porque no meio da concepção de Dassalu veio a pandemia. Eu estava me sentindo forte no front da luta – apesar de ter perdido uma amiga com um tiro na cabeça, a quinta vereadora mais votada da cidade [do Rio de Janeiro], perder Marielle foi também um chamado para a luta. É uma necropolítica, um ataque direto, e a gente já sabe quem é o alvo – o alvo é preto, é mulher, é LGBTQIA+.

Diante do assassinato de Marielle, que para mim é um estopim, a gente tem uma ruptura de um fingimento social de que todos somos iguais, de que existe democracia, de que há direitos e oportunidades para todos. É como se houvesse uma ruptura real ideológica, de narrativa, e Dassalu vem muito desse processo.

A gente precisa se reconhecer, se proteger, se aquilombar, criar mecanismos de emancipação – assim como a comunidade quilombola da Boa Morte, em Cachoeira (município localizado no Recôncavo Baiano), pensou como mulheres se uniram para trabalhar pela alforria das pessoas pretas – para toda a população que vive subjugada na miséria, na pobreza, no submundo, na falta de oportunidade, de visibilidade e de imaginário simbólico positivo.

O imaginário simbólico criado para as pessoas pretas, para as mulheres, para as pessoas nordestinas é um imaginário de submissão, é um imaginário de pobreza, é um imaginário de chacota.

Sua fala está muito ligada ao conceito do afrofuturismo, de mostrar e pensar futuros possíveis para a população negra, tendo a ficção como base. Mas os cenários que você apresenta são reais, não são de ficção. Como pensar futuros possíveis trazendo esses elementos do presente?

Eu acredito que o afrofuturismo é um termo técnico norte-americano que deram para os resultados da nossa afrodiáspora. Então, quando penso sobre afrofuturismo e a construção do meu trabalho, eu falo sobre prazer feminino – primeiro falei que eu era Miss Beleza Universal [single lançado em 2017], agora em Dádiva falo que sou uma diva, mas, na construção do lugar de uma mulher diva, nunca coube uma mulher preta. Mais uma vez eu contesto o padrão hegemônico.

Dassalu e afrofuturismo vêm para ressignificar. O que a gente vive já não nos contempla mais. A construção é muito patriarcal, racista, eurocêntrica, e a gente entende o mundo e a sociedade de uma forma muito diferente.

No meio da pandemia, eu me senti muito fragilizada como pessoa. A música foi me mostrando a importância da nossa potência individual, de a gente olhar para a gente, de falar sobre a gente, de se posicionar no mundo para que outras pessoas também consigam falar o que elas sentem através das nossas palavras.

Dádiva traz para o centro de suas narrativas as mulheres negras. Você fala sobre você ou sobre outras perspectivas e histórias?

Sinto que Dádiva vem para falar do meu lugar de mulher preta nordestina bissexual. Trago várias mulheres no disco, desde a música “Mina deixa eu relaxar”, que é uma mina que está falando sobre uma ruptura de amor, mas acreditando no amor como ciclo, que a qualquer momento pode acontecer o reencontro, até outra menina que está falando que tem um “contatinho” em cada cidade e que isso é sobre prazer, carinho, sobre a liberdade dos corpos das mulheres. Isso é do nosso tempo, essas são as nossas narrativas. Como trazer isso para a gente conseguir elucidar e ver com mais nitidez?

No disco, eu recebo duas participações mais do que especiais, da Preta-Rara e da Bione, duas mulheres que estão à frente do seu tempo. Bione é muito novinha, acabou de fazer 19 anos, e já tem um livro escrito. As poesias dela são geniais, e é um encontro muito precioso, genuíno, de fazer troca com essas mulheres. A Preta-Rara também com os seus livros, falando sobre suas conquistas. Ela sai de uma vida de empregada doméstica para dar uma casa aos pais, e ela fala isso na música: “A casa dos meus pais eu comprei, deixou de ser sonho”. São escritoras, são cantoras de rap.

Acho que a gente vem criando um novo imaginário simbólico sobre o aspecto, o lugar da mulher, sobre o corpo, a liberdade do corpo da mulher.

Na canção “Terreno fértil”, falo sobre os banqueiros, os garimpeiros, a turma do agronegócio, falo sobre a bancada da bala, da Bíblia, do boi, faço análises de conjuntura. Antes de falar sobre afrofuturismo, sobre a nova sociedade, sobre o empoderamento do povo preto, sobre a nossa força, quero conversar com vocês sobre onde estamos. Vamos nos situar?

“Terreno fértil, foice corta a face da verdade exposta.
Pouca escolha, muita aposta, o prêmio é tiro, bomba e bosta.
Anula a existência, paga mal e qual problema?
Agora o lucro está mantido, palmas pro sistema."

É uma crítica direta ao capitalismo. A gente precisa saber quem são os nossos aliados e quem são os nossos inimigos. Por isso continuo falando:

“Reconheça o seu inimigo!
Aliadas são as minas que correm contigo.
A matilha cresce, já não corre perigo.
Dassalu aponta a revolta dos oprimidos".

Em outra canção, falo que "a voz de uma mulher afrocentrada libertou tantos irmãos, irmãs, a quebra dos grilhões" para trazer Aqualtune. Todas as vezes que falamos do Quilombo dos Palmares, falamos de Zumbi dos Palmares. Mas o que aconteceu? Zumbi dos Palmares é neto de Aqualtune. Aqualtune foi a princesa que criou o quilombo. Antes de falar do Zumbi dos Palmares, lembrem de Aqualtune: uma mulher preta revolucionária que criou o maior quilombo da história do Brasil. A voz de uma mulher afrocentrada libertou tantos irmãos.

Assim como conseguimos fazer um paralelo com a Aqualtune, trazemos hoje a Marielle. Do mesmo jeito que aquela mulher falou que era possível ter liberdade no Brasil e viver em outro ambiente criando um quilombo, Marielle falou que era possível viver numa cidade que respeitasse os direitos humanos. E ela morreu, assim como Jesus Cristo, defendendo o amor ao próximo. Assim como a morte de Cristo, começa uma nova era para a gente, a morte de Marielle também começou uma nova era para a população preta – assim como a questão do Quilombo dos Palmares foi o início de uma jornada para a população preta do Brasil, que começou a ter esperança de lugar.

Acho que esse disco também fala de esperança, dessa espera na ação. Espera na ação, vou escrever isso.

Fotografia colorida da artista e cantora Doralyce. Ela é uma mulher jovem e negra. Está vestindo uma roupa branca e possui o cabelo cacheado longo e solto. A foto foi tirada ao ar livre, mostrando o céu azul com poucas nuvens.
Doralyce (imagem: Lil Oliveira)

Além de artista, você é arte-educadora, empreendedora, pesquisadora. Como toda essa bagagem ajuda no seu processo de escrita e de produção artística?

Eu escrevo no caos, às vezes estou florescendo muito e às vezes sou mais contida. Estou aqui conversando com você, vem uma melodia na minha cabeça, uma letra, e escrevo, canto e volto a fazer o que estou fazendo. Escrevo também quando estou precisando falar de coisas que não estou conseguindo ler, me expresso muito escrevendo. Estou numa jornada de aprender um monte de coisas.

Como surgiu a produtora Colmeia 22?

Trabalho com música desde 2010, e meu primeiro disco vai sair em 2017, é muito tempo. Nessa jornada de trabalho, desde o meu primeiro lançamento, aconteceu tanta coisa em minha vida e eu nunca parei para prestar atenção, mas a capa de Miss Beleza Universal fui eu que fiz. Outro dia, uma pessoa conversando comigo falou assim: “A gente artista faz tudo, se vira, faz arte...”.

Criei a Colmeia 22 em 2016. Eu queria tocar e achava, e ainda acho, que aqui na cidade do Rio de Janeiro é muito difícil adentrar em certos espaços, então fui desbravando espaços. E nessa comecei a produzir shows de outras pessoas, fui pegando curadoria de casa e sempre trazendo outras pessoas para formarem comigo a produtora.

Em 2020, a gente passou por um processo de deixar de ser só produtora e virou uma editora. Com a Colmeia, a gente já lançou Doralyce, Bia Ferreira e tantos outros nomes. Existe uma banda de Pernambuco que amo muito, que se chama Bongá, uma referência na cultura, e a gente lançou um disco muito amado deles, que são os 20 anos de Grupo Bongar, o qual estava só no YouTube durante muito tempo.

A Colmeia vem para abraçar outros núcleos, a gente trabalha muito com a população em vulnerabilidade, pessoas pretas, pessoas trans, esse é o nosso enfoque.

Falando um pouco sobre referências, você também terá um clipe com a participação da Conceição Evaristo. Quais são as suas referências quando falamos de ancestralidade e de potencialidade de mulheres pretas?

A Conceição Evaristo faz a gente sonhar, ela é uma criadora de imaginário simbólico. Sem dúvida, ouvir Conceição Evaristo falar é como ouvir Deus falar. É bonito, profundo, transformador. Ela consegue sintetizar sentimentos que a gente nem sabia como dizer ou que poderia dizer.

Acho que, dentro das referências que trago das mulheres pretas que me atravessam, vou pensar muito em Mãe Beth de Oxum, Dona Lia de Itamaracá, Dona Aurinha do Coco, vou pensar em Mestra Joana, em Dona Elza Soares, Dona Ivone Lara.

Consigo pensar também em várias artistas contemporâneas que estão construindo um trabalho de muita referência, um legado bonito de som, de vida, de prática de vida, construindo um imaginário simbólico também. Sou muito fã de Bione, Preta-Rara, Preta Ferreira, Luana Flores, Isadora Melo, da banda Mulamba. São muitas mulheres que me atravessam que são contemporâneas. Trago essas artistas como uma forma de celebrar as minhas irmãs que caminham comigo.

Você falou uma palavra importante, que é celebrar. Queria perguntar justamente sobre isto: o que é importante celebrar dessa luta que não acaba?

Estarmos vivas. O nosso amor, os nossos encontros. Encontros dos afrocentrados. Os encontros de amores e de mulheres. Acho que todas essas lutas – de raça, gênero, classe, território, critério etário, capacidade sentimental – são critérios para a gente entender de que lugar social essa pessoa fala e como ela se instala na sociedade ou como ela é colocada nessa sociedade.

A gente pode celebrar a capacidade de aliviar a dor com a palavra, de aliviar a dor com a música, a capacidade de organizar pensamentos através da música e da arte. Podemos celebrar as conquistas que tivemos até hoje, uma mulher preta gorda bissexual nordestina estar falando que é Miss Beleza Universal, que ela é viva, que vão ter de se curvar quando ela passar.

Vai estar cantando “Saborzinho do verão” na praia, falando para a galera que ela faz o que ela quiser, que ela é dona do próprio prazer, da própria vontade. Podemos celebrar a emancipação, o caminho emancipacionista das mulheres, das pessoas pretas.

Acho que isso é algo que a gente possa celebrar para além, do que falei, dos nossos afetos. Vou terminar de falar contigo, terminar as coisas que tenho de fazer do disco, e hoje chegam vários artistas aqui em casa para a gente se encontrar, saber como está cada um, pedir uma comida, rir juntos, chorar juntos, fazer essa terapia coletiva que a gente faz quando abre o coração da gente em grupo para ser acolhida, para ouvir outras formas de pensar.

Neste momento, podemos celebrar a força que a gente tem, a coragem que a gente tem de enfrentar o desafio que é viver num país que pratica essa política. Agora a gente pode só pegar um na mão do outro e caminhar.

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